Para falar do corpo, deveríamos dar às palavras a elasticidade célere dos músculos, a longa densidade dos ossos, a electricidade inquieta dos nervos, a pulsação cadenciada das artérias, a obscura complexidade dos cérebros, a química incansável dos rins, o fluxo fino dos fluidos, o brilho brusco das peles, a árdua e ardente insubmissão dos sexos.

A campanha fotográfica revelada neste «Livro de Horas» foi recentemente realizada por Daniel Blaufuks no Japão, com imagens captadas em Osaka, Kyoto, Kobe Koyasan, Hiroshima e Himeji. Às imagens, o fotógrafo juntou as palavras dos haikus do grande poeta Matsuo Bashõ (O Eremita Viajante, Assírio & Alvim, 2016), criando um diálogo de ressonâncias mútuas e múltiplas, que alude encantatoriamente à vida da natureza e à natureza da vida. De Blaufuks, a Electra já publicou o diário fotográfico «Os dias estão numerados», registado durante os tempos de confinamento da pandemia de covid-19. A publicação deste «Livro de Horas» resulta de uma parceria entre a Electra e o Comissariado-Geral de Portugal para a Expo 2025 Osaka. As imagens do trabalho deste fotógrafo são apresentadas numa exposição do Pavilhão de Portugal nesta Exposição Universal.

Olhada do fim para o princípio, a vida de Yukio Mishima parece um destino em que tudo o que aconteceu não podia ter acontecido de outra maneira. Mas é essa visão de um fatalismo fácil que tem gerado muitos mal-entendidos na interpretação da sua obra e no conhecimento da sua figura. No centenário do nascimento do autor de Confissões de Uma Máscara, Thomas Garcin, professor de Estudos Japoneses na Universidade de Paris e profundo conhecedor do legado do escritor, traça-nos um retrato que contraria os lugares-comuns que sobre ele se acumularam. Neste «Registo», cada um de nós é convidado a criar (ou a recriar) a sua imagem de Mishima.

Neste «Furo», apresentamos um conjunto de imagens inéditas da fotógrafa japonesa Sakiko Nomura, um dos nomes mais prestigiados da fotografia japonesa actual. A sua vasta e poderosa obra, que balança entre a claridade e o mistério, quase parece feita contra a linguagem verbal, acreditando que há coisas fundamentais que apenas a fotografia permite transmitir. Num ensaio muito informado, o professor, ensaísta e fotógrafo José Bértolo apresenta-nos a obra desta artista que tem exposto nos mais conceituados museus e galerias, analisando a sua singularidade e o seu poder de subverter a tradição e as suas leis.

O corpo — no passado, no presente e no futuro — é o tema deste dossier da Electra. Na época em que vivemos, os códigos culturais, sociais e estéticos que estão na base dos discursos do corpo dominantes têm uma ligação estreita com as tecnologias que produzem os corpos como marcadores de identidades e subjectividades. Dos avanços científicos às tecnotopias, dos cyborgs aos corpos queer, passando pelos mutantes e os monstros, a condição do transumanismo é uma característica do nosso tempo. Sobre estas questões, que vão dar, no seu último limite, a um corpo que já não se deixa fixar em termos de sexo nem de género, ninguém foi tão longe nas construções teóricas (e na «performance» pública) como o escritor e filósofo Paul B. Preciado, que colabora com um texto neste «Assunto». Em contraponto, encontramos aqui outra voz que parece vir de uma sabedoria da Antiguidade pagã, a do escritor francês Pascal Quignard, que nos concedeu um texto curto, lapidar. Nos tempos que correm, não podia faltar neste dossier um artigo como o de Camille Froidevaux-Metterie, que nos fala do corpo das mulheres como objecto de uma reapropriação cheia de consequências na vida social e cultural. O corpo fala, tem uma linguagem, os gestos e as poses são codificados, não sendo iguais para os homens e para as mulheres: partindo da iconografia que mostra ostensivamente esta diferença, Arianna Sforzini toma como objecto esse corpo histórica e socialmente construído que não se deixa apreender como um dado biológico. E há depois, como manifestação suprema do corpo tecnologizado, produzido para a superação dos seus limites, o corpo dos desportistas da alta competição, sobre o qual escreve Isabelle Queval. Do corpo desportivo ao modo de aparecimento e desaparecimento do corpo nas artes performativas (do qual se ocupa José Maria Vieira Mendes) vai a distância entre a exibição de uma força vital sobre-humana e as encenações da morte e da fragilidade. Em jeito de apresentação do dossier e síntese das problemáticas fundamentais que envolvem as actuais representações do corpo, no discurso teórico e nas artes, temos o texto de António Guerreiro.

Esta conversa entre dois artistas, o fotógrafo canadiano Jeff Wall e o realizador português Pedro Costa, teve lugar, em Lisboa, na ocasião da inauguração da exposição Jeff Wall – Time Stands still. Fotografias 1980–2023, no MAAT – Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia (que pode ser visitada até ao final de Agosto). O encontro destes dois olhares e destas duas vozes evoca o grande apreço que, desde que viu Ossos, o fotógrafo manifestou pelos filmes de Pedro Costa, testemunhando uma admiração recíproca e uma comunhão de interesses intelectuais. Um e outro têm desenvolvido uma longa e densa reflexão não só sobre o próprio trabalho, mas também sobre as disciplinas artísticas que praticam. No caso de Jeff Wall, essa reflexão ganhou a forma de ensaios sobre a arte, onde é bem visível a sua relação com o cinema, mas também com a pintura e a literatura. Pedro Costa, por sua vez, também transpõe, no seu trabalho e nas suas reflexões, as fronteiras da arte cinematográfica, fazendo incursões nos territórios da fotografia e da pintura. Estava assim criado um espaço aberto de diálogo, de inquirição recíproca, de aferição de afinidades e de diferenças. É essa conversa, realizada em exclusivo para a Electra, que aqui publicamos.

No seu livro Em Busca do Tempo Perdido, Marcel Proust fala dele como de um criador mágico de beleza, em cujas obras se reflecte, como num misterioso espelho, o encontro do Ocidente com o Oriente de que a Veneza onde viveu e morreu é um símbolo maior e onde está hoje o museu que guarda o seu nome e a sua memória artística. Pintor, gravador, escultor, fotógrafo, cenógrafo, figurinista, encenador, designer, coleccionador, inventor e empresário, Mariano Fortuny punha em tudo o que fazia, dos quadros aos vestidos, das cenografias no Scala de Milão às invenções de luminotecnia, o selo de uma invencível e melancólica vontade de perfeição. É desta figura fascinante que a professora, investigadora e curadora Anabela Becho faz o retrato num movimento que corre entre a vida e a obra.

Aqui temos uma das muitas frases obscuras do doutor Jacques Lacan, com as quais atraía multidões para os seus seminários. Para a decifrar e comentar, pedimos a uma psicanalista, Sinziana Ravini, que já várias vezes publicou artigos na Electra, também na qualidade de crítica de arte, curadora e romancista.

Um dos historiadores da arte mais importantes dos últimos cinquenta anos, T. J. Clark, cujo trabalho redireccionou esta disciplina das suas preocupações tradicionais com o estilo e a forma para um foco nas condições sociais e políticas da modernidade, conversa com a Electra sobre os crescentes problemas da imagem na era contemporânea.

Da «escultura social» Kinderstern aos vitrais da Catedral de Reims, na obra de Imi Knoebel estão presentes as grandes perguntas que a arte tem feito a si própria e ao mundo no século XX e no século XXI. Reconhecendo na geometria desafiadora de Malevich uma inspiração primordial, estudou com Kilian Breier e Joseph Beuys, fazendo da exploração criadora do material, da forma e da cor uma constante demonstração da sua prodigiosa criatividade, e dando com isso à arte não figurativa um novo esplendor. Este artista alemão, representado nas mais prestigiadas colecções de arte do mundo, preparou para a Electra um portfólio que é apresentado num ensaio de Gabriel Barbi.

As percepções que temos das realidades sociais revelam muito aquilo que somos enquanto indivíduos e enquanto sociedade. As pessoas não são meros recipientes vazios à espera de serem abastecidos por factos, assim como o público não é uma folha em branco à espera que alguém escreva nela. Na verdade, a nossa visão da realidade é moldada pela multiplicidade de preconceitos, heurísticas e raciocínios fundamentados que nos habitam e por um sistema político e mediático, incluindo as redes sociais, que os explora.