As correntes da humanidade agonizante, declarava Kafka ao escritor de Praga Gustav Janouch, «são feitas de inútil papelada»1, de documentos que, de mão em mão, passam por multidões de funcionários, muitas vezes anónimos e insignificantes, cujo poder cresce com a sua obtusa submissão à máquina burocrática. Trata-se de documentos escritos e impressos de todos os géneros: formulários oficiais, bilhetes de identidade, despachos de acusação e sentenças judiciais; mas também de recomendações, convocatórias, revogações, convalidações, multas, simples formalidades administrativas, compilações de questionários para fins exclusivamente estatísticos. Estes escritos crescem a um ritmo vertiginoso e representam o meio através do qual os órgãos administrativos exercem o seu poder. A mesma circunstância já tinha sido identificada por Max Weber, segundo o qual a gestão moderna da máquina burocrática «assenta em documentos (escrituras), conservados em original e cópia, e num sistema de funcionários subordinados e escrivães de todos os tipos»2, responsáveis pelo procedimento, classificação e arquivo dos registos. Estes funcionários, como observa Kafka em O Processo, são organizados em fileiras ou legiões, dos mais poderosos (realmente inalcançáveis) aos mais obtusos (mas não menos perigosos), semelhantes aos anjos e demónios das hierarquias da Divina Comédia de Dante Alighieri. A parábola «Diante da lei» (1914) consagra esta estrutura hierárquica (existem infinitas portas como esta, e eu sou apenas o ínfimo dos guarda-portões, responde o guarda-portão, surdo a todas as súplicas), mas também nos revela como nenhum deles sabe quem o precede no topo da pirâmide, sendo sua a responsabilidade de transmitir apenas notificações e ordens cuja proveniência é obscura.
Apesar deste excesso de produção de papéis, é interessante observar o paradoxo revelado pelo funcionário Sortini, em O Castelo, quando afirma que o oficial Klamm já não lê nenhum documento, precisamente por serem demasiados… Nem as chefias administrativas sabem como gerir um tal fluxo de informação, estando literalmente sobrecarregadas por ele. A situação é muito semelhante com aquela produzida pelos e-mails que recebemos diariamente nas nossas caixas de correio electrónico, nos quais a escrita adoptou a forma da sequência anónima bit 0-1: perdidos na enorme massa de mensagens, já não conseguimos distinguir entre o que é realmente importante e aquilo que é insignificante; muitas vezes, defendemo-nos desistindo simplesmente da leitura tout court, sem aplicar um discernimento real e incorrendo em incumprimentos que assumem valor legal. O murmúrio das inúmeras e indistintas vozes infantis ouvidas ao telefone por K. na sua tentativa de comunicar com os funcionários do Castelo — esta lengalenga de vozes longínquas representa a única coisa certa e fiável transmitida pelos telefones do palácio do poder — tornaria evidente a ininteligibilidade do significado das directivas burocráticas, um vazio de significado que se replica na reiteração indefinida de mensagens ensurdecedoras devido à sua falta de conteúdo.
As correntes da humanidade, por mais opressivas e alienantes, são feitas de papel, constituídas por mísera celulose: são omnipresentes, é certo, mas a qualquer momento poderíamos reagir como Amália, irmã do mensageiro Barnabás, que rasga a convocatória do funcionário do Castelo Sortini (que, em virtude da influência dos funcionários exercida sobre a população da aldeia, gostaria de a tornar sua amante). A este respeito, gostaria de referir o seguinte, reivindicando desta forma um princípio cuja validade vai além do mundo literário de Kafka: o poder nunca foi tão opressivo e omnipresente, mas nunca até agora tinha revelado a própria fragilidade. Neste sentido, a criada Pepi revela a K. que, para se libertar do domínio dos Senhores do Castelo, seria suficiente pegar fogo ao Albergue dos Senhores como se fosse papel para acender a lareira. O papel arde rapidamente, deixa poucos vestígios, tudo desaparece numa chama: deveres, obrigações, sentenças, etc. Um vírus informático, hoje, poderia substituir este expediente incendiário, ainda moderno. Mas será apenas um logro? Por trás do documento esconde-se algum elemento de realidade ou de poder inalterado, uma força física equivalente ao poder nietzschiano? É difícil responder; perdeu-se a noção da origem da escravatura protocolar, embora a escravatura ainda exista inquestionavelmente.
Estamos no meio de um paradoxo: a violência parece ter desaparecido das nossas vidas, como sugere David Graeber3; contudo, a lei, na sua absoluta imbecilidade, pesa sobre nós como uma pedra e exerce uma forma de violência altamente sofisticada, sem precedentes. Segundo Kafka, a violência inscreveu-se inclusive no corpo humano, paralisando as nossas vidas. Como refere Johannes Urzidil, a obra de Kafka trata do mecanismo inelutável da vida, da sua engrenagem burocrática que mantém o homem «num estado de custódia preventiva permanente»4; esta máquina infernal move contra ele acusações cujo conteúdo e objectivo nunca são totalmente revelados ao acusado, obrigando-o a confessar crimes que não cometeu, infligindo-lhe punições e torturas sofisticadas e incompreensíveis, sendo a violência vagamente percetível. O poder da burocracia, com as suas formidáveis armas de papel, consiste em manter-nos num estado de perpétua inferioridade, caracterizando-se por um sono profundo da razão; quase como se fôssemos estudantes que se sentissem culpados, obrigados a «escrever dez vezes, cem vezes ou mais a mesma frase absurda, ou tornada absurda pela repetição»5. Relativamente a este assunto, Günther Anders afirmava que a condição das personagens de Kafka é a de serem infectadas pelo «‘tétano’ de não seguir em frente»6: insistem na mesma situação, porque o tempo se ossificou na escrita, impedindo — com a sua habilidade de reiteração ad libitum — qualquer análise crítica da ordem recebida. Nos seus contos, a acção parece como que fixada pelo poder icástico da palavra escrita, que assume a conotação de uma epígrafe lapidar, de uma sentença esculpida na pedra nua de uma história-natureza ossificada. Sob este céu de chumbo, definido por palavras incompreensíveis e ameaçadoras, debate-se um homem abandonado por Deus, confrontado com a forma pura da lei, nomos sem rosto e sem nome. A lei ressoa surda e, como uma máquina implacável, escreve, incide e comanda não se sabe bem o quê; enquanto o próprio homem se torna papel para a sua aplicação/inscrição absolutamente precisa, imaculada. Como acontece no conto «Um sonho» (1914–1915), onde Josef K. assiste à gravação do seu nome na lápide do próprio túmulo, resignando-se ao inelutável: «Aqui jaz… Cada uma das letras parecia límpida e bela, gravada com profundidade e de um ouro perfeito.» É impossível reagir a esta execução premeditada.
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