O dinheiro não é apenas um medium universal mais ou menos evanescente e cada vez mais abstracto. É a pedra angular da sociedade e da sua administração política, sobre a qual ele tem hoje um controlo total. Não é por isso um tema que possa ser delimitado nas suas fronteiras, já que se expande em todas as direcções, atravessa o planeta à velocidade da luz e ocupa todos os lugares. As ciências da economia e das finanças têm do dinheiro um saber parcial, completamente esotérico para o cidadão comum. Se quisermos saber um pouco mais dele, temos de convocar outros saberes e disciplinas que não se ficam pelo discurso e pelos conceitos que invadiram o nosso quotidiano: a psicanálise, a antropologia, a literatura, a arte. Foi o que fizemos na concepção deste dossier, ao convocarmos contributos das mais diversas proveniências, de modo a pensar o dinheiro naquilo que ele tem de mais próprio. E é porque o seu poder está em todo o lado e tudo determina, mesmo quando não se vê, que ele se refere tantas vezes a teorias e conceitos de ordem metafísica e teológica. Ou então, se preferirmos entrar na lógica pagã, dizemos que o dinheiro é o último xamã que podemos invocar neste mundo completamente secularizado.
«Tempo é dinheiro»: nenhuma fórmula define melhor o poder absoluto desta divindade terrena que comanda até as categorias da nossa experiência do que esta, com a qual Benjamin Franklin abre os seus Advice to a Young Tradesman (1748), que Max Weber cita com grande destaque e analisa no segundo capítulo de A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo.
O sociólogo e filósofo italiano Maurizio Lazzarato, que muito tem escrito sobre o modo como o capitalismo, no nosso tempo, consiste em produzir «o homem endividado», desenvolve aqui a tese de que a economia se tornou pela primeira vez integralmente política a partir do momento em que nasceu a moeda-dívida, criada ex nihilo pelos bancos, depois de Richard Nixon, em 1971, ter declarado que o dólar deixaria de ser convertível em ouro.
O autor de um Doutor Fausto e de Ensaio Sobre o Termo da História, entre outros livros narrativos e ensaísticos, confronta-se aqui com A Moeda Viva, de Pierre Klossowski, um heterodoxo ensaio sobre a conversão de toda a força libidinal em mercadoria e a organização social que daí decorre. Estabelecendo uma equivalência entre a economia libidinal e a economia dos bens materiais, Klossowski lança luz sobre a lógica extrema do dinheiro, sobre a sua vida que captura todas as vidas.
As teorias da moeda e o funcionamento do sistema monetário e financeiro, na sua complexidade e no modo como implica uma dimensão subjectiva, que é a confiança, são o centro deste artigo, da autoria de Margarida Abreu, professora de Economia no ISEG (Lisboa). Mas, através dele, ficamos também a saber (entre outras coisas) como funcionam as criptomoedas e como se está a caminhar para uma sociedade em que a moeda física se torna uma coisa obsoleta.
O território da arte moderna e contemporânea é hoje dominado por instituições que operam a transferência simbólica de uma nova «aura» da arte para os produtos de luxo e vice-versa. O resultado é uma circulação colossal de dinheiro em torno de obras e artistas que são integrados na lógica especulativa dos produtos enriquecidos.
Este texto do poeta e ensaísta fancês Christophe Hanna, autor de um livro intitulado Argent (Éditions Amsterdam, 2018), cujas personagens são identificadas por um nome próprio ao qual se justapõe um número correspondente ao dinheiro que auferem mensalmente, foi escrito a partir de um conjunto de questões e tópicos que lhe foram enviados pelo editor da Electra e que surgem aqui reduzidos a subtítulos. Tornar o dinheiro inerente à própria escrita, eis o que fez este poeta que pratica a indiferenciação entre a poesia e a teoria.
O dinheiro, decifrado em chave antropológica e psicanalítica pelo antropólogo José Gabriel Pereira Bastos, remete para uma organização simbólica que tem no seu centro o poder do Pai, tal como ele é celebrado nos rituais das comunidades onde domina o pensamento mágico. E, a partir daí, torna-se então possível, recorrendo não apenas a Freud mas também ao saber da Antropologia, entender o dinheiro na sua função originária, arquetípica, remetendo para leis, tabus e interditos trans-históricos.
A volatilização do valor e do próprio dinheiro, que exige acima de tudo estabilidade, deixa-nos à espera do próximo colapso financeiro: é a partir desta asserção que o filósofo Yves Citton desenvolve sete «lições» que é preciso extrair desta realidade, de onde nasce uma «colapsologia». Essas sete «histórias» ou «lições» são como considerações intempestivas para as teorias económicas.
Quando é que a opinião é crime? Quais são os limites à liberdade de expressão? Qual é o ponto onde a minha liberdade termina porque aí começa a liberdade do outro? Estas perguntas têm sido feitas nos nossos dias com uma insistência que advém da necessidade de tornar compatíveis a liberdade de pensamento e da sua expressão pública (agora também nas redes sociais) com a prevenção de ameaças cujo perigo e gravidade a história nos torna presentes. É sobre estas questões, de uma actualidade evidente, que escrevem o escritor e jornalista espanhol Francisco Alba e o advogado e criminalista português Rui Patrício.
Foi como se a Velocidade, de que o «Assunto», já há muito previsto e anunciado, desta edição trata, se tivesse transformado na imagem da nossa perplexidade e na medida da nossa distância às coisas. Este número de Electra estava pronto para ser impresso quando a vida se tornou outra. Subitamente, o espaço fechou-se e o tempo trocou-se, puxando rapidamente o amanhã para hoje e levando lentamente o hoje para amanhã.
Entre os muitos nomes que têm sido usados para designar a sociedade em que vivemos (sociedade do espectáculo, sociedade dos simulacros, sociedade do risco, etc.), poderia constar ainda uma outra classificação: a sociedade da velocidade. A aceleração técnica da modernidade, que nos tempos mais recentes, com a informática e as tecnologias digitais, chegou ao seu estádio extremo que é a velocidade da luz, tornou-se o fenómeno mais determinante tanto das transformações sociais e culturais como das nossas formas de vida. A experiência do tempo marcada pela velocidade tornou-se uma vertigem e uma espiral. Tudo, da circulação do dinheiro à informação, do regime do trabalho às actividades de lazer, tem funcionado a uma velocidade crescente e sem recuo, conduzindo a uma situação responsável por duas emblemáticas doenças do nosso tempo: uma, físico-psíquica, designada com o nome inglês de burnout, e outra, de feição sócio-política, que tem um nome antigo, mas roupagens novas, chamada alienação. Em nome da nossa saúde e da saúde do planeta surgiram os apelos ao slow. Não foram no entanto esses apelos que motivaram uma espectacular interrupção desse movimento que todos julgavam irreversível, a não ser sob a condição de uma catástrofe natural: a desaceleração deu-se sob a égide de um vírus que se difundiu à escala global. Foi o suficiente para se experimentar na prática o que já se sabia em teoria: que a aceleração do mundo em que vivemos, uma vez interrompida, faz com que tudo entre em colapso. Da velocidade, podemos dizer que é um fenómeno social total. A ela é dedicado o «Assunto» deste número da Electra.
O co-director da revista Multitudes, Yves Citton, partindo de uma distinção entre velocidade e aceleração, na linha do Manifesto Aceleracionista, de Alex Williams e Nick Srnicek, que ele traduziu para francês, vê no colapso, e não na crise perene em que vivemos, a única hipótese de uma mutação desejável. Deste ponto de vista, a única estratégia à altura do nosso tempo, consiste em acelerar o colapso.
Os fenómenos da velocidade e da aceleração determinam todos os aspectos da realidade em que vivemos, da vida cultural e social à economia. A força coerciva que impôs a toda a actividade humana um movimento cada vez mais veloz, numa escalada que pressupõe um ilimitado horizonte de disponibilidade (com enormes consequências ecológicas, mesmo quanto à ecologia do tempo e do espaço), exige uma dinâmica que não pode afrouxar porque só ela garante estabilidade. Por isso, deter este sistema abruptamente, travar a fundo o mundo ultra-acelerado, não é uma desaceleração como a que tem sido defendida pelos militantes do «decrescimento». Não é a realização de uma utopia, mas um desastre colossal. É a esse desastre globalizado que estamos a assistir, provocado por uma pandemia viral.
Laurent de Sutter, professor de Teoria do Direito na Vrije Universiteit de Bruxelas e director da colecção «Perspectives Critiques» da PUF – Presses universitaires de France, desenvolve aqui uma hipótese que aceita, sob certas condições, o aceleracionismo — essa perspectiva que defende a reformulação, e não a sabotagem ou o abrandamento dos meios, das infra-estruturas que herdámos da modernidade.
O filósofo francês Frédéric Neyrat, fazendo uma análise crítica do presente, identifica nele um «dilema cinético», uma hesitação entre o demasiado depressa e o demasiado devagar, dois movimentos responsáveis pela catástrofe ecológica. A interrupção, defende o autor de Biopolitique des catastrophes, é a única «terapia cinética» à altura dos grandiosos problemas com que estamos hoje confrontados.
Este artigo assinado por um cientista, um astrofísico que também habita nas regiões da filosofia, parte da hipótese de que o mundo morreu, no sentido em que já se deu a perda de um «comum transcendental» que a ideia de cosmos supõe, e não haverá um mundo pós-covid-19 nem as possibilidades oferecidas por um «magma de velocidades infinitas».
Na perspectiva do filósofo italiano Federico Leoni, o novo coronavírus não pode ser visto apenas nos seus efeitos muito evidentes de desaceleração e paragem, porque ele foi também o contrário disso, isto é, um factor de aceleração de alguns movimentos em curso, próprios do nosso tempo.
François Hartog, o historiador francês a quem se deve os conceitos fundamentais de «presentismo» e «regimes de historicidade», traça neste texto as principais etapas de uma história da aceleração, a partir dos alvores da modernidade até ao momento «presentista» em que vivemos, aquele para o qual só existe o tempo de um presente contraído que determina o triunfo do «curto prazo».
Na agricultura, os métodos tradicionais e a exploração harmoniosa dos recursos foram completamente substituídos por mecanismos tecno-industriais de produção intensiva e acelerada. A obediência ao tempo longo, ao espaço extenso e às regras e caprichos da natureza tornaram-se um luxo no mundo actual. Há quem, numa posição minoritária, o pratique; e há quem afirme sem reservas os benefícios de uma agricultura que responde aos critérios mais modernos de velocidade e eficiência.
Os dois textos que surgem aqui em confronto indirecto falam linguagens diferentes, são o exemplo eloquente de um diferendo (isto é, duas linguagens que não têm uma medida comum) a que a questão da «raça» dá origem. O primeiro texto é da autoria de Vasco M. Barreto, biólogo, investigador da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa; o segundo é de Pedro Schacht Pereira, doutorado em Estudos Portugueses e Brasileiros pela Brown University, nos EUA, com intervenções cívicas frequentes na imprensa portuguesa sobre o racismo. Uma figura importante dos estudos culturais, Anthony Appiah, disse uma vez que «é tempo de o conceito biológico de raça desaparecer sem deixar vestígios». Mas, na verdade, como mostra o texto de Vasco M. Barreto, o conceito não desapareceu e os seus vestígios continuam a manifestar-se no debate científico, bem distante daquele racismo «científico» anterior à Segunda Guerra Mundial, mas ainda assim suscitando sempre polémicas, reservas e precauções. Pelo contrário, do ponto de vista dos estudos pós-coloniais ele não passa de uma categoria discursiva. E é precisamente o pressuposto da raça como construção discursiva no quadro de uma cultura, como uma linguagem, que está na base da análise que Pedro Schacht Pereira faz da questão do racismo num texto de Eça de Queirós.
Depois de décadas de um silêncio podre, há mais um ano que episódios díspares alimentam uma discussão persistente sobre o racismo e a herança colonial: de um antigo entreposto de comércio negreiro (Senegal), o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa entendeu que era pertinente frisar a abolição da escravatura pelo Marquês de Pombal; uns skinheads vigiaram uma estátua do Padre António Vieira, por muitos visto como um «esclavagista selectivo»; o Ministério Público acusou agentes da PSP de insultos e agressões racistas a jovens da Cova da Moura; com a polémica sobre o nome «Museu das Descobertas», percebeu-se que o diacronismo de uma única palavra chega para traçar o retrato psicanalítico de um povo. Nos EUA, também as latentes tensões raciais, que Obama não quis abordar, reemergiram com a chegada de um Presidente racista à Casa Branca e a força crescente da política identitária. Correndo o risco de passar por estrangeirado ou algo pior, aproveito esta onda para lembrar a polémica sobre a inteligência das diferentes etnias, porque é a derradeira vexata quaestio.
Em 18 de Janeiro de 1892 a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro passou a incluir um suplemento literário, que foi inaugurado por uma crónica prefacial da autoria de Eça de Queirós. O texto exibe o sugestivo título de «A Europa em Resumo. O nosso suplemento», e destina-se primordialmente a um público que o autor sabia predisposto a aceitar com poucas reservas a informação que chegava da Europa. O que não é imediatamente evidente é o propósito com que o escritor português, que presumivelmente redigiu o texto em Paris, decidiu inaugurar um suplemento literário com uma descrição da situação social europeia no seu tempo.
Kafka, autor de diários, avisou: «Não precisam sair do vosso quarto. Permaneçam sentados à vossa mesa e escutem. Não precisam sequer escutar, simplesmente esperem. Nem precisam de esperar, fiquem apenas quietos, silenciosos, solitários. O mundo vai livremente oferecer-se-vos para ser desmascarado.». Os dois diários que publicamos nesta edição, da autoria do fotógrafo Daniel Blaufuks e da artista visual Mariana Silva, são feitos a partir de um confinamento, aquele a que fomos sujeitos pela pandemia da covid-19. E têm origem em dois lugares reclusos num mundo prisioneiro do vírus e do medo: perto de Lisboa, para ele; Nova Iorque, para ela. Nestes dois «Livros de Horas», Daniel Blaufuks e Mariana Silva olham o mundo a partir de uma janela — que dá para o exterior de um interior. Mas essa janela não lhes foi dada. Foram eles que a abriram com um olhar que pensa, vê, fala. Não foi também Kafka que disse: «O crescimento do homem não se faz de baixo para cima, mas do interior para o exterior»?!
É estranho compor um diário sobre o que significa viver em Queens durante a quarentena. A experiência diária da quarentena é atomizada, delimitada pelas paredes do apartamento de cada pessoa. Estes fragmentos de informação tornam-se eventos que se desenrolam no espaço entre o ecrã do meu telemóvel e a janela de onde se vê a rua.
Este trabalho corresponde aos últimos onze dias de confinamento (oficial) e insere-se num trabalho mais largo intitulado Os dias estão numerados / The days are numbered, correspondendo ao período de 24 de Abril a 4 de Maio de 2020.
A esta pergunta, suscitada pela polémica em torno da atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Peter Handke, que fez publicamente a defesa do presidente sérvio Slobodan Milosevic, respondem aqui dois autores: o crítico, ensaísta e tradutor João Barrento, e Michel Surya, escritor e director da revista francesa Lignes. O primeiro percorre uma série de «casos» problemáticos da literatura e da arte do século XX para mostrar a complexidade da questão e as diferentes respostas que obteve; o segundo afirma de maneira radical que a grande literatura sempre foi objecto de escândalo e que não conhece limites.
Os grandes livros não são amados. Os seus autores ainda menos, à partida. Os grandes escritores não são amados. Os seus livros ainda menos, depois. Sobre os primeiros pesa sempre a suspeita de que revelam uma liberdade demasiado grande. Sobre os segundos, a suspeita de que são eles quem se permite uma tal liberdade. Uma liberdade que, tanto para uns como para outros, livros e autores, jamais será suficiente. O que permite explorar todas as possibilidades da própria liberdade. É isso que assusta (que produz «hostilidades », diz Bernhard).
Avancemos desde já uma posição clara, que as duas epígrafes sintetizam. A primeira, mais problemática, escrita numa Europa à beira da Grande Guerra, implica que corpo-mente-agir devem tender para um ideal humano de integridade (o «porte íntegro» de que fala também Ernst Bloch); a outra (proveniente de um clássico do pensamento, escrito no final dessa guerra) propõe que a arte não está acima (nem abaixo) de uma consciência ética, que a beleza não serve de álibi para a barbárie ou para formas de pensamento que a legitimem.
A estupidez é de todos os tempos, mas cada tempo tem a sua estupidez. Flaubert serviu-nos de inspiração, ao definir as formas de uma estupidez que não é a eterna, nem a intemporal, mas que se revela como sintoma de uma época e lhe empresta as suas características — isto é, os lugares-comuns, as ideias feitas, as palavras gastas, constituindo, na sua rigidez e presunção, manifestações com a dureza da rocha. Trata-se, portanto, neste nosso tempo da inteligência artificial, de pôr em evidência, analisar e interpelar algumas figuras da estupidez contemporânea, a qual não pode ser inteiramente designada sem recorrermos a uma outra palavra pertencente ao mesmo campo semântico: a idiotia.
A filósofa americana Avital Ronell, autora de um livro intitulado Stupidity, prossegue aqui a sua tentativa de compreensão e análise do fenómeno e do conceito de estupidez, mostrando que este, embora situando-se num espaço pré-discursivo, pode ser apropriado pela literatura e pela filosofia.
A matriz da arte contemporânea, a sua «cena primitiva», que é o urinol de Marcel Duchamp, foi objecto de uma exclusão que permite a referência a uma manifestação da estupidez que é a «estupefacção». O pasmo que desde então muitas obras de arte foram capazes de provocar nos espectadores torna pertinente e até necessária a evocação da estupidez tanto na recepção crítica como no confronto do público com a arte contemporânea.
A estupidez torna-nos reactivos, acende a indignação, a idiofobia redentora e a denúncia. Mas é quase sempre da estupidez dos outros que se trata, evidentemente, porque a nossa, declinada na primeira pessoa, não passa de um episódio mais ou menos temporário, mas superado, uma fraqueza que ocorreu no passado e que agora só podemos lamentar: «Fui muito estúpido!».
Se definirmos o idiota a partir do significado etimológico da palavra, encontramos nela uma ligação à identidade, à reivindicação do privado, do identitário e do enraizamento que levam a uma hostilidade por tudo o que vem do exterior. A rejeição dos migrantes e dos refugiados que chegam à Europa, fugindo da guerra, do terrorismo e das catástrofes é alimentada por um mecanismo de medo que tem as características da idiotia.
Na sua origem, a world wide web suscitou um sonho ingénuo, a utopia de um espaço público digital que iria cumprir todas as promessas implícitas na própria concepção moderna de espaço público. Mas é hoje bem visível que o resultado é outro e que em vez do prometido paraíso digital triunfou o caos e o discurso da estupidez nas suas formas mais violentas e regressivas, como nos mostra de maneira eloquente o exemplo de uma imageboard chamada 4chan.
Neste tempo em que vivemos, as novas tecnologias do digital proporcionam um verdadeiro dilúvio de informação. Mas permanecemos muito ignorantes quanto ao modo como ela é produzida, seleccionada e hierarquizada, isto é, há um défice de informação sobre a própria informação, o que leva a uma aceitação acrítica e a um recuo do pensamento e da reflexão.
Os efeitos do Maio de 68 podem ser encontrados em muitas formas actuais de luta e de insurreição, onde se manifesta uma nova consciência política, prova de que esse movimento que eclodiu em Paris há precisamente 50 anos teve uma enorme força mobilizadora e não pode ser reduzido a uma dimensão inócua: é o que mostra a historiadora americana Kristin Ross.
A relação entre o que é da ordem da esfera pública e o que é da ordem da privacidade alterou-se completamente no nosso tempo, à imagem do que se passa na relação entre o indivíduo (essa invenção do Iluminismo) e a sociedade.