Assunto
A nossa querida Estupidez
António Guerreiro

A estupidez torna-nos reactivos, acende a indignação, a idiofobia redentora e a denúncia. Mas é quase sempre da estupidez dos outros que se trata, evidentemente, porque a nossa, declinada na primeira pessoa, não passa de um episódio mais ou menos temporário, mas superado, uma fraqueza que ocorreu no passado e que agora só podemos lamentar: «Fui muito estúpido!».

A atitude que consiste em nomear o estúpido e definir a estupidez sempre como um outro que é preciso expulsar incorre muitas vezes numa forma clássica de estupidez que é a exibição ostensiva da presunção de inteligência. Esse risco foi muito bem identificado por Robert Musil, numa conferência proferida em Viena, em 1937, que se tornou uma referência obrigatória para quem trata deste tema persistente e encarado com carácter de urgência. Logo no título, Musil ia directo ao assunto, abordava-o como matéria de um breve tratado: Da Estupidez (Über die Dummheit). Para diminuir o risco de cair nas armadilhas que a estupidez apresenta contra a presumida inteligência, Musil avançava com precaução, introduzindo o metadiscurso e propondo a modéstia como «a melhor arma contra a estupidez». E, com o humor e forte sentido analítico que a cultura vienense da passagem do século lhe tinha transmitido, explicava ao seu auditório que cada inteligência tem uma estupidez que lhe corresponde, concedendo-lhe assim a mesma universalidade que Descartes tinha atribuído ao bom senso. Encontramos numa página de O Homem sem Qualidades a fórmula mais eloquente e cheia de ironia da superação da dialéctica entre a estupidez e a inteligência, a ideia de que há uma relação consubstancial entre as duas: «Se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento, ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou, pelo menos, seria muito fácil combatê-la». O que Musil se abstém de fazer é responder com uma definição à pergunta que ele próprio formula inicialmente: «O que é ao certo a estupidez?» Somos levados a supor que não é possível definir essa coisa.

E, no entanto, ela é um tema perene que sempre suscitou o interesse de filósofos e escritores. Com maior ou menor sucesso, houve quem procedesse a uma fenomenologia da estupidez. E quem, reflectindo sobre a sua génese, a apontasse como uma «cicatriz»: foi o que fizeram Adorno e Horkheimer na última secção de Dialéctica do Iluminismo. É deste seu carácter de protuberância dura, de coisa robusta, que advém a dificuldade em combatê-la. Entrar numa guerra aberta contra a estupidez foi quase sempre inútil e muitas vezes um pouco estúpido (dessa ideia de uma declaração de guerra quisemos afastar-nos na concepção deste dossier da Electra).

Flaubert foi talvez o primeiro a apreender-lhe essa característica, ao defini-la como «algo inabalável: nada a ataca sem se despedaçar contra ela. É da natureza do granito, dura e resistente». Ele sabia bem do que falava. A estupidez que o obcecou é aquela que se diz na palavra fancesa bêtise, que evoca a bestialidade, a queda num estado animalesco. Estupidez, bêtise, idiotia, imbecilidade: eis uma constelação de figuras que se confundem e formam um universo problemático. Flaubert interessa-nos aqui muito particularmente porque a estupidez foi para ele não uma questão teórica (não pretendeu elaborar uma teoria da estupidez), mas uma questão histórica. A sua idiofobia exprimiu-se com esta veemência: «Sinto contra a bêtise da minha época torrentes de ódio que me sufocam. Sobe-me a merda à boca, como nas hérnias estranguladas». E, desta maneira, iniciou a análise de uma estupidez epocal, social, política, colectiva, que não é igual à estupidez individual, que identificamos com a falta de inteligência e pode ser medida numa escala de intensidade. É a partir de Flaubert que ganhou forma a ideia de que há uma estupidez moderna, ligada à forma social do «burguês» e à cultura de massas. E, portanto, a ideia de que cada época engendra as suas particulares manifestações de estupidez, como um «idioma» que lhe é próprio. Flaubert tentou apreender a estupidez da sua época fazendo uma recolha dos seus lugares-comuns, num Dictionnaire des idées reçues que deveria constituir a segunda parte do seu inacabado Bouvard e Pécuchet. Este é o nome dos seus dois idiotas que levam ad absurdum, representando-a como farsa, a ideia de uma totalidade enciclopédica do saber. Dedicados a sucessivas tarefas falhadas, estes estúpidos funcionários da ciência sucumbem à mais total inadequação entre a teoria e a prática.

O lugar-comum, no sentido que lhe dá Flaubert, não é o da retórica antiga: é a repetição de uma fórmula que comparece por automatismo, cristalizada e tornada obrigatória por abandono de todo o pensamento e toda a crítica. Lugar-comum é tudo aquilo que retira do princípio hiperbólico da identidade a força para continuar cada vez mais vivo: «as coisas são como são», «a guerra é a guerra» e tirem o cavalinho da chuva porque «não há almoços grátis». A paixão negativa flaubertiana foi retomada por Barthes, na sua análise crítica do estereótipo, «essa nauseabunda impossibilidade de morrer», e de maneira menos directa nas suas «mitologias», que foram também, à sua maneira, um inventário de idées reçues. Mas agora, no tempo dos mass media e da sociedade de consumo, era preciso também analisar os novos mecanismos que as engendravam e difundiam, cobrindo-as com o ecrã da ideologia. Por isso é que a crítica da ideologia, com um objectivo desmistificador, foi a enorme tarefa a que se entregou a geração que teve o seu apogeu nos anos 60 e 70 do século passado, aquela que investiu grande parte da sua energia intelectual na «teoria», no «trabalho teórico», como então se dizia.

Há um actual boom desta estupidez social, colectiva, política? Provavelmente, essa percepção é tão ilusória como a ideia, retomada em cada geração, de que está à beira de um abismo. Mas as configurações do actual universo da comunicação potenciam e ao mesmo tempo desaceleram a estupidez da época. São um pharmakon, o veneno e o remédio ao mesmo tempo. É certo que os instrumentos para exercer uma razão crítica perderam a sua força e a crítica da ideologia parece hoje uma coisa do passado. Mas também é verdade que essa razão crítica se converteu muitas vezes no seu contrário, como muito bem mostraram Adorno e Horkheimer.

O impacto social da televisão e, mais recentemente, das novas tecnologias da comunicação é enorme. Mas devemo-nos abster de pensar que são exclusivamente do nosso tempo os mecanismos mediáticos que multiplicam e amplificam a estupidez, e que houve um tempo em que tudo era de uma inteligência virtuosa e sem mácula. A luta que Karl Kraus empreendeu contra o jornalismo do seu tempo foi uma luta contra a venalidade, a ignorância e a estupidez. Flaubert disse que a estupidez consiste em concluir (e Barthes prosseguiu no mesmo sentido, quando escreveu que «a estupidez é a euforia do lugar», isto é, aquele contentamento indiscreto, proveniente da autocomplacência, da satisfação connosco próprios). Ora, concluir é o que mais se pratica num regime de comunicação instantânea e que promove a opinião.

Se a estupidez, tal como aqui a entendemos, recorrendo a uma matriz flaubertiana, é um fenómeno tipicamente moderno, ela já não tem hoje as mesmas características. Flaubert teve a pretensão de isolá-la e identificar as suas emergências. A estupidez actual, pelo contrário, já não é isolável porque está disseminada por todo o lado, identifica-se com a sociedade no seu todo, com as regras do jogo social e político, acompanha e até engendra o fluxo da cultura. Por exemplo: alguém consegue hoje distinguir, nas formas de difusão e legitimação, uma literatura de entretenimento por oposição a uma literatura que assume uma forte responsabilidade em relação à tradição de onde emerge (em diálogo com a história literária) e em relação ao seu próprio tempo?

Peter Sellers (Mr. Chance), 1979

Peter Sellers (Mr. Chance), 1979

 

 

A estupidez tornou-se também a lei do discurso político, enquanto regra obrigatória, um diktat vindo de difusas instâncias dotadas de uma força coerciva. Está bem implantada, e não há quem a destrone, a ideia de que não há como escapar-lhe: ser inteligente no palco da acção e do debate político equivale a saber inclinar-se perante as regras da estupidez, isto é, o pragmatismo sem ideias, a política que erradicou o conceito de político, a acção sempre legitimada pelo mesmo discurso, a táctica que acaba por coincidir com a estratégia. «A estupidez é o nosso sintoma», escreveu a filósofa americana Avital Ronell, de quem podemos ler um texto neste dossier dedicado ao tema.

A estupidez do nosso tempo já não é isolável na figura do burguês. É a prerrogativa de uma figura anónima (já nem sequer é o indivíduo da massa porque a cultura das elites pouco se diferencia dele) que surgiu não há muito tempo à superfície do planeta. É uma figura incaracterística, de uma fantasmagórica trivialidade, destituída de toda a grandeza. Musil distinguiu duas formas de estupidez: a estupidez como falta de inteligência e a estupidez como renúncia da inteligência. Foi esta última, a «estupidez superior» (Musil), a mais perigosa, que triunfou como uma «doença da cultura». Se quiséssemos identificá-la com uma forma e um volume diríamos que o seu traço mais característico é a obesidade. A obesidade editorial de todas as espécies bibliográficas, incluindo a literatura (um escritor que não publica todos os anos é um intermitente da literatura, com direito suspensos temporariamente), a obesidade das exposições, a obesidade da informação, a obesidade da comunicação, a obesidade da oferta e do consumo: tudo se realiza de acordo com o movimento acelerado que conduz as coisas para além dos seus próprios fins, de modo a anular-se no seu excesso. A isto chama-se hipertelia. E, já agora, uma pergunta anódina, quase ingénua: porque é que identificamos a gordura com a estupidez e a inteligência com a magreza?

A «ditadura do coração», escreveu Kundera, é a forma actual da bêtise, A estupidez ligada ao mundo das emoções, isto é, a estupidez afectiva, tem hoje ao seu dispor, para se propagar, os instrumentos poderosos da empatia. Entre eles, destaque-se a televisão, que sobrevive como aparelho de tortura empática. Uma alegoria da «estupidez solar» (para usar uma categoria musiliana), criada e alimentada pela televisão, é a história de Being There, um romance do escritor polaco Jerzy Kosinski, a partir do qual Hal Ashby fez um filme com Peter Sellers no papel de protagonista. É a história do jardineiro Chance (em Portugal, o filme tinha o título Bem-vindo Mr. Chance) que, viciado na televisão, passou a exprimir-se com longos e embaraçosos silêncios, ou com os artifícios da linguagem televisiva, fora do contexto e de uma elementaridade desarmante. Ao seu discurso da estupidez solar, corresponde a estupidez inteligente dos seus intérpretes, que lhe atribuem qualidades superlativas (de agudeza, profundidade e sapiência) e o propõem para presidente dos Estados Unidos. Em 1979, quando estreou, o filme de Hal Ashby podia ser visto e interpretado como uma alegoria. À luz da actualidade, ganhou o valor de uma profecia.

Vivemos sob a tutela do capitalismo afectivo. As afecções, que dantes raramente tinham uma expressão fora da esfera privada e apenas ganhavam uma elaboração pública e eventualmente colectiva (como acontece, por exemplo, no teatro) por mediação artística e literária, configuram hoje toda a esfera pública: da publicidade à indústria da comunicação, da política ao jornalismo, da cultura do entretenimento à literatura. Os grandes escritores da modernidade literária não só não tinham nenhum afecto pelos leitores como entendiam mesmo que deviam hostilizá-los ou desafiá-los para um complexo jogo intelectual. Essa atitude, cultivada como programa, já não existe hoje nem tinha de existir. Mas caiu-se no pólo oposto: na literatura narrativa, assistimos nas últimas décadas à reemergência das convenções literárias e de matéria temática que suscitam uma fácil adesão de primeiro grau. A existência, hoje, de uma nova «literatura mundial», já não no sentido goethiano, está dependente de processos de «empatia». Esta é uma palavra mágica, até há pouco tempo reservada a um uso muito estrito e erudito, que se tornou moeda corrente, com um valor inflacionado em todos os domínios. A empatia está em todo o lado, prolifera e invade como as células cancerosas. Até os trabalhadores, graças à empatia transbordante dos patrões e das empresas, passaram a ser «colaboradores».

A par da estupidez afectiva, Musil fala — de passagem e sem a definir — de uma estupidez estética. Sabemos a que ela corresponde: ao kitsch. Chegamos assim à apoteose da estupidez. Não é que o kitsch seja um fenómeno exclusivo do nosso tempo. Longe disso. Mas ele hoje é olhado com toda a condescendência, tornou-se o elemento dentro do qual nós vivemos. Nada realiza tanto o ideal kitsch como a proximidade que é a lei dos media. Uma crítica do kitsch é hoje tão difícil como uma crítica da ideologia. Foi um contemporâneo de Musil, uma outra figura importante da cultura vienense do início do século XX, Hermann Broch, que empreendeu uma análise e uma crítica do kitsch, enquanto tradução da estupidez na linguagem da arte. A teoria do kitsch elaborada por Hermann Broch é uma teoria estética que reivindica um vínculo necessário e imediato com a ética. O kitsch é por ele definido como «o mal no sistema de valores da arte». A severidade e o puritanismo com que nomeou o fenómeno do kitsch fez de Broch uma referência inultrapassável neste domínio (veja-se, por exemplo, como Kundera reclamou a sua lição). A sua crítica de uma cultura voltada para os puros efeitos e que, nas suas estratégias repetitivas e dogmáticas (o elemento dogmático é fundamental na definição do kitsch, tal como Broch o define) chega mesmo a criar um tipo, ou uma figura, que é o kitsch-Mensch, a pessoa-kitsch, pode ser colocada em contraste com a fraca resistência, para não dizer o entusiasmo, com que se consumou no nosso tempo a estetização generalizada da sociedade. Adolf Loos, o arquitecto do manifesto Ornamento e Crime, chamou a Viena a «cidade Potemkin», artificial como um cenário. Cidades Potemkin são hoje quase todas as cidades históricas conformadas à monocultura do turismo. Ao mesmo tempo que se constroem as smart cities, as cidades inteligentes, dá-se o movimento inverso de estupidificação das cidades. Provavelmente, as duas coisas não são contraditórias, são as duas faces da mesma moeda, e este é o duplo movimento que podemos detectar em muitos outro domínios, no tempo da inteligência artificial. Tendemos é a esquecer que é necessário situar a estupidez para além da oposição à inteligência. A prova está à vista: nunca antes tinha havido uma época tão produtora de inteligência e tão dependente dela; no entanto, por força do demónio da inversão, nunca a estupidez tinha sido tão encorajada e tão sentida como uma ameaça. Até a mais inteligente das invenções do nosso tempo, a inteligência em estado puro, a Internet, está sob suspeita e já há quem diga que ela nos vai tornar estúpidos. Não sabemos, e é impossível saber, se o caudal de estupidez é hoje proporcionalmente maior do que foi noutros tempos, mas é possível dizer com certeza que ela flui no nosso tempo com menos resistências críticas e por vias que permitem um deslizar tranquilo.