Uma lei do excesso governa o mundo contemporâneo em todos os domínios. Os produtos da sociedade do consumo, a lógica financeira, a riqueza e a pobreza, os fenómenos da vida social e política, o crescimento das cidades, a circulação de pessoas e mercadorias, o lixo e os resíduos: tudo abandonou a justa medida e se pôs a crescer e a proliferar sem contenção. Somos confrontados incessantemente com a morfologia da obesidade e do monstro. Traduzindo esta regra em termos estéticos, podemos dizer que o mundo se tornou eminentemente barroco, já não conhece a quieta grandeza e a nobre simplicidade do clássico. Como sabemos, muitas são as disfunções e as formas de entropia que se geram quando tudo aquilo que determina o mundo pragmático vai para além dos seus próprios fins. É do excesso e dos seus efeitos, em várias áreas, que tratam os artigos deste dossier.

O conjunto de artigos que preenchem o «Assunto» deste número da Electra ocupa-se do tema do excesso. Sendo o critério destes núcleos temáticos, tratados num regime de discurso ensaístico, assinalar e percorrer alguns territórios que ganham evidência no mapa contemporâneo, o excesso, nas suas manifestações incessantes e desvairadas em todos os domínios da vida social, cultural e política, é o tema contemporâneo por excelência, a regra em que vivemos.

Gianluca Cuozzo, autor de Etica dei resti e professor de Filosofia na Universidade de Turim, desenvolve neste artigo uma filosofia dos detritos e uma análise do lixo e dos resíduos como o lado sombrio e cheio de recalcamentos da nossa civilização do consumo.

O poder grotesco, uma das declinações do poder político com uma longa história, reemergiu no nosso tempo de maneira triunfal através de figuras que mimetizam os bufões, os palhaços, os bobos. É disso que fala, neste ensaio, o escritor e jornalista Christian Salmon, colaborador de alguns dos mais prestigiados jornais internacionais e autor de uma obra vasta e original sobre a nossa contemporaneidade.

O luxo da escrita, a escrita do luxo, o luxo como excesso em relação a uma economia da utilidade: é por estes caminhos que se desloca este artigo da australiana McKenzie Wark, professora de Estudos dos Media e Estudos Culturais na New School, em Nova Iorque, e autora de Um Manifesto Hacker (o seu único livro editado em Portugal) e de Love and Money, Sex and Death.

Maddalena Mazzocut-Mis, professora de Filosofia da Universidade de Milão, dedicou às questões do obsceno, do monstruoso, do Kitsch, do limite e do excesso uma parte considerável dos seus estudos de Estética. Neste artigo, a autora ocupa-se do feio na arte contemporânea e no teatro.

Paul Morland, reputado especialista da ciência demográfica, antigo investigador do Birkbeck College da Universidade de Londres e investigador principal do St Antony’s College da Universidade de Oxford, passa em revista as erradas previsões de Thomas Malthus, explicando como funciona a lei do excesso e da escassez na história da demografia e porque é que se entrou, em quase todo o mundo, numa trajectória descendente.

Na história do sinal «+» (adição), introduzido, tal como o sinal «–» (subtracção), na escrita aritmética para simplificar a contabilidade, encontra o filósofo belga Laurent de Sutter a cifra do excesso, num sentido filosófico e não apenas aritmético.

Um verso de um poema de Fernando Pessoa, uma vez autonomizado, ganha o valor de uma proposição que poderia ser retirada de uma obra filosófica ou de uma reflexão que tem a forma de um aforismo que constrói uma falsa evidência. Coube ao poeta e professor de Literatura Amândio Reis comentar o verso citado.

A artista visual Mónica de Miranda, a historiadora Sónia Vaz Borges e a coreógrafa Vânia Gala constituem o colectivo que assegura a representação de Portugal na Bienal de Arte de Veneza 2024, cujo tema geral é «Estrangeiros em Todos os Lugares». As três autoras destinaram a esta edição da Electra os textos e as imagens que revelam os grandes temas e motivações do projecto «Greenhouse», que se mostra no pavilhão português sediado no Palácio Franchetti. Este projecto apresenta um jardim crioulo, a partir do qual são pensados os temas do colonialismo, da guerra, das lutas de libertação e da ecologia.