Conta-se que, estando um dia em Madrid para inaugurar uma exposição sua, o levaram a ver o Museu do Prado, que antes nunca visitara. Atravessou, com passos fugidios e gestos fixos, as grandes salas onde, das paredes, as obras de Velázquez e de Goya, de Fra Angelico e de Rafael, de Bosch e de Dürer, de van der Weyden e de Caravaggio dão a ver as formas e as cores, as linhas e as luzes. Nessa travessia, tão veloz que apenas dava para lançar um olhar distraído e distante às obras-primas que o tempo foi escolhendo para nos entregar, terá demorado quinze ou vinte minutos. No final da visita-relâmpago, entrou na loja do museu e ficou mais de meia hora a ver, com atenção e desvelo, cuidado e curiosidade, além de outros produtos e gadgets, as reproduções e réplicas, cartazes e estampas do que não tivera vontade de ver no original. Era assim Andy Warhol ...

Habituámo-nos, há pelo menos duas décadas, a escutar um coro de vozes pessimistas, às quais se atribui um valor de verdade cada vez mais convincente, que nos fala da «crise da democracia», do «mal-estar da/na democracia», do pouco saudável «estado da democracia» e até da necessidade de a modalizarmos com um «pós» para sugerir que se tornou necessário actualizá-la conceptualmente.

Neil Kenny, professor de literatura e cultura francesas na Universidade de Oxford, autor de um livro sobre a curiosidade intitulado The Uses of Curiosity in Early Modern France and Germany, percorre as etapas fundamentais da complexa e interessante história da curiosidade, desde a Antiga Roma à modernidade, desde a época em que era considerada um vício, moralmente condenável, até passar a ser uma virtuosa qualidade que está na base do conhecimento.

Uma lei do excesso governa o mundo contemporâneo em todos os domínios. Os produtos da sociedade do consumo, a lógica financeira, a riqueza e a pobreza, os fenómenos da vida social e política, o crescimento das cidades, a circulação de pessoas e mercadorias, o lixo e os resíduos: tudo abandonou a justa medida e se pôs a crescer e a proliferar sem contenção. Somos confrontados incessantemente com a morfologia da obesidade e do monstro. Traduzindo esta regra em termos estéticos, podemos dizer que o mundo se tornou eminentemente barroco, já não conhece a quieta grandeza e a nobre simplicidade do clássico. Como sabemos, muitas são as disfunções e as formas de entropia que se geram quando tudo aquilo que determina o mundo pragmático vai para além dos seus próprios fins. É do excesso e dos seus efeitos, em várias áreas, que tratam os artigos deste dossier.

Maddalena Mazzocut-Mis, professora de Filosofia da Universidade de Milão, dedicou às questões do obsceno, do monstruoso, do Kitsch, do limite e do excesso uma parte considerável dos seus estudos de Estética. Neste artigo, a autora ocupa-se do feio na arte contemporânea e no teatro.

O poder grotesco, uma das declinações do poder político com uma longa história, reemergiu no nosso tempo de maneira triunfal através de figuras que mimetizam os bufões, os palhaços, os bobos. É disso que fala, neste ensaio, o escritor e jornalista Christian Salmon, colaborador de alguns dos mais prestigiados jornais internacionais e autor de uma obra vasta e original sobre a nossa contemporaneidade.

O conjunto de artigos que preenchem o «Assunto» deste número da Electra ocupa-se do tema do excesso. Sendo o critério destes núcleos temáticos, tratados num regime de discurso ensaístico, assinalar e percorrer alguns territórios que ganham evidência no mapa contemporâneo, o excesso, nas suas manifestações incessantes e desvairadas em todos os domínios da vida social, cultural e política, é o tema contemporâneo por excelência, a regra em que vivemos.

Dois séculos depois do seu nascimento, Gustave Flaubert continua a interrogar a literatura e a interrogar os seus leitores. E é como se a passagem do tempo tivesse acrescentado sentido a essas interrogações, dando-lhes ainda maior actualidade e mais acuidade. Analisando um episódio fulcral do romance Madame Bovary, Ana Rocha vai projectando o que lê num ecrã e, afinal, a imagem que aparece é a de Flaubert.

Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, e Déborah Danowski, filósofa, conversaram com Andrea Cavalletti acerca do livro da autoria de ambos, Há Mundo por Vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Uma incursão no imaginário do fim, na época em que se disseminaram os medos da catástrofe ecológica.

Quando o fim de um ano é o princípio de outro, nesta passagem exposta há uma paragem escondida que faz do tempo uma voz íntima a lembrar o que esquecemos. Essa voz sussurrada é como a das canções misteriosas e lentas que dão a um sol de luz a sua lua de sombra.

Em cada ano que finda entregando-se a cada ano que começa, numa contígua descontinuidade, está a nossa vontade de medir, marcar e mudar o tempo em nós e nós nele, assim o poeta escande os versos para que a música salte como a faúlha do fogo ou a ave da árvore. Há aí um intervalo que abrimos apenas em nós, para repetirmos as perguntas da pintura de Paul Gauguin: «De onde viemos? O que somos? Para onde vamos?»