Assunto
Escrita de luxo
Mckenzie Wark

O luxo da escrita, a escrita do luxo, o luxo como excesso em relação a uma economia da utilidade: é por estes caminhos que se desloca este artigo da australiana McKenzie Wark, professora de Estudos dos Media e Estudos Culturais na New School, em Nova Iorque, e autora de Um Manifesto Hacker (o seu único livro editado em Portugal) e de Love and Money, Sex and Death.

A vontade que tenho de escrever está sempre presa entre dois tipos de excesso. Um deles é fácil de explicar. É o desejo de ter sempre mais. Mais atenção. Mais vendas. Mais fama. Mais glória. Que cada livro exceda o anterior. É um desejo frustrante, porque tantas vezes frustrado.

É o desejo de um certo tipo de luxo, de um deslocamento da vida quotidiana. Nos dias de hoje, luxo significa algo como conforto para lá da necessidade. Estou em digressão com o meu novo livro. Em Veneza, o hotel é banal e a cama só tem duas almofadas. Em Roma, num hotel de luxo, tenho seis. O luxo expressa-se através de detalhes sensoriais que comunicam tempo e despesa adicionais. Neste tipo de luxo, a quantidade expressa qualidade.

Há um sentido mais antigo de luxo, enquanto vida sensual, frívola, sexy. Uma vida que não é dedicada à reprodução de mais de si mesma. Uma vida que se desloca em direcção à diferença e se afasta de mais do mesmo. Um luxo que não se consegue quantificar, apenas sentir. Às vezes, quero esse outro luxo, na vida e na escrita.

Escrever pode ser um luxo, mas de que tipo? Em O Prazer do Texto, Roland Barthes escreve: «O luxo da linguagem fará parte das riquezas excedentes, da despesa inútil, da perda incondicional? Uma grande obra de prazer (a de Proust, por exemplo) participará da mesma economia das pirâmides do Egipto?»1 A forma‑mercadoria recupera a escrita. A sua luxuosa inutilidade torna-se valiosa no mercado. Será essa uma recuperação completa? Será reversível? Talvez a escrita possa ser a dança do autor com o luxo, volteando-o e sendo volteado por ele.

Há também a escrita por necessidade. Consigo pagar a renda porque consigo escrever. E há ainda aquilo que escrevemos livremente, que resulta do prazer de desfrutar de um pequeno excedente de vida. Que tipo de luxo quero para esta escrita? Estou dividida. Fantasio com um tipo de escrita que é um sucesso comercial, mas nunca fui especialmente bem-sucedida nesse plano. Aquilo que escrevo acaba sempre comprometido entre a liberdade e a necessidade. Talvez seja um lugar de negociação entre desejos rivais por diferentes tipos de luxo.

Neste dilema, tenho-me sempre guiado pela escrita de Georges Bataille, e sobretudo pelo seu carácter excessivo. Como escreve em A Parte Maldita: «não é a necessidade, mas o seu contrário, o luxo, que põe à matéria viva e ao homem os seus problemas fundamentais»2. O luxo, para Bataille, é a condição de toda a vida, já que esta extrai, directa ou indirectamente, a energia do sol, utilizando-a para se desenvolver, crescer, expandir-se, proliferar. Tudo o que esteja acima ou além da mera sobrevivência é luxo. «Na efervescência geral da vida, o tigre é um ponto de extrema incandescência. E esta incandescência incendiou-se, com efeito, na profundidade recuada do céu, na consumação do sol.»3 A vida é a dádiva irrecuperável da energia da luz solar transformada em fecundas formas e floreados exuberantes que, ardentes, atravessam os éones.

"O luxo enquanto quantidade esmaga o luxo enquanto diferença, diversão, criação, tudo aquilo que se encontra assim relegado para um lugar subordinado, nas margens boémias, ou reificado sob a forma de arte."

Sue Williams

Sue Williams, Excessive Digits [Dígitos excessivos], 2003 © Fotografia: Scala, Florença /
The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

As várias formas sociotécnicas da vida humana também são feitas de luz solar consumida. Na sua abundância, a energia solar gera o problema de o que fazer com o excesso. Bataille: «Para além dos nossos fins imediatos, a obra do luxohomem, com efeito, visa a realização inútil e infinita do universo.»4 Escrevendo no final dos anos 40, Bataille via já a energia como o principal problema planetário, classificando as sociedades a partir daquilo que cada uma fazia para gastar o excesso que produzia. Pirâmides ou guerra; arte ou conquista. Cruzadas ou festivais; igrejas ou coliseus. Crescimento ou desperdício; glória ou desastre. Escrita ou carros de corrida.

O problema do luxo acentua-se com o domínio da economia mercantil. Este processo acontece antes do capitalismo industrial. Simplificando excessivamente esta história: começa com o desvio de excedentes para as campanhas de conquista colonial, o roubo de terras e o transporte de escravos para as trabalhar — gerando assim uma quantidade adicional de excedentes. Uma vez transformadas a terra e a vida em mercadoria, uma classe dominante colonial coloca a maioria dos excedentes ao serviço da produção de novos excedentes, adiando, e expandindo, o problema do excesso.

O capitalismo utiliza os excedentes acumulados por uma classe colonial rentista e desvia-os novamente, desta vez para a produção industrial, extraindo agora valor do trabalho «livre», ao invés de o extrair do trabalho escravo. O capital não tem senão um desejo — a acumulação, fazer mais e mais. Este processo acelera o luxo do quantitativo, dissipado de tempos a tempos em guerras mecanizadas. O luxo enquanto quantidade esmaga e subsume o luxo enquanto diferença, diversão, criação, tudo aquilo que se encontra assim relegado para um lugar subordinado, nas margens boémias, ou reificado sob a forma de arte.

As mutações da forma-mercadoria não acabam aí. A extracção de excedentes não cessou com a organização de escravos e terra, ou de trabalho «livre» e fábrica. Há uma terceira etapa. Agora, até o não-trabalho produz excedentes, os excedentes da informação. Cada vez que abrimos o computador ou utilizamos o telemóvel, cada vez que qualquer coisa passa por zonas vigiadas, geramos um excedente de informação para um novo tipo de classe dominante, que já não é a classe colonial rentista, ou a classe capitalista industrial, mas uma classe que controla a extracção de excedentes através dos vectores das tecnologias de informação — aquilo a que eu chamo a classe dominante vectorialista.

O luxo, enquanto mesmidade em contínua expansão, pode tomar múltiplas formas: a empresa, mas também o Estado, e ainda a família. Há tensões entre estas formas, mas as suas diferentes versões do luxo podem alinhar-se com o desejo de extrair e acumular energia adicional para criar mais e mais do mesmo. Mais descendentes para a família. Mais dinheiro para a empresa. Mais território para o Estado. Os adornos podem mudar, mas a forma permanece.

[...]

1. Roland Barthes, O Prazer do Texto, Trad. Maria Margarida Barahona, Lisboa: Edições 70, 1976, p. 61.
2. Georges Bataille, A Parte Maldita precedido de A Noção de Despesa, Trad. Miguel Serras Pereira, Lisboa: Fim de Século, 2005, p. 54.
3. Ibid., p. 74.
4. Ibid., p. 61 (tradução modificada).