À excepção da personagem de Morel, filho de um criado que tem vergonha das suas origens sociais mas que acabará por ser um respeitável burguês, nenhuma das outras personagens proustianas é ávida como era costume nos romances franceses do século XIX. Escritos em contexto de ascensão da burguesia ao poder e de desenvolvimento do capitalismo, nenhum fala do preço da refeição nem pensa que o divino dinheiro tudo dá. Em Proust, indicar o valor das coisas serve, na maior parte das vezes, para dar um efeito de real e para realçar as hierarquias e os comportamentos sociais, para representar interesses bem temperados e para dar um toque de snobismo, e não para caracterizar o ser das personagens2. Poucas vezes em Proust se contam as moedas, bem ao contrário do que se passa nos romances realistas de Balzac, Maupassant ou Zola.
No Em Busca do Tempo Perdido interessamo-nos pela comédia mundana ou pela tragédia amorosa, mas a luta pelo reconhecimento é mais forte do que o interesse pelos ganhos e o capital simbólico é mais forte do que o financeiro. Todos os leitores de Proust são tocados pela confusa e, por vezes cómica, facticidade da vida mundana e pela sua crueza sempre na busca de bodes expiatórios para confortar a própria existência do grupo. Proust parece considerar que a vida é luta e conflito para o homem social inspirado pela vaidade e pela ambição, duas paixões que simbolizam energia e motor de mudança na senda das revoluções burguesas do século anterior. Para os Verdurin, arquétipos de burgueses detentores de vasto património e que não se coíbem em exibir a sua riqueza, o valor não está no dinheiro mas sim na arte que, nos finais do século XIX, era considerada uma mercadoria de troca que lhes permitia ser diferenciados e imporem-se aos olhos dos outros. Por exemplo, tocam Wagner numa época em que o músico ainda não era apreciado em França. É na bolsa mundana que é preciso valorizar os seus valores e capital social! Daí a grande importância dada ao snobismo, essa atitude que consiste na apropriação da elegância e dos modos e desejos de uns sendo-se, ao mesmo tempo, depreciativo com os que não vale a pena invejar. Este existir de forma não livre também se encontra nas ligações amorosas. O egoísmo de Proust não se exerce sobre o material, mas sim sobre o espiritual: ele não procura possuir (o que o dinheiro permite), mas sim dominar (o que permite o simbólico). O facto de o dinheiro não ser um tema secundário está ligado ao facto de Proust insistir na interioridade das personagens, nos seus conflitos de vaidade, mas mais com o cruel fundamento libidinoso do que com a História e a evolução económica da sociedade em relação à evolução dos costumes e das relações sociais.
Marcel Proust vive portanto de rendimentos — boa fortuna essa que também deu a algumas das suas personagens, como Swann, que herda do pai um montante praticamente igual ao qual ele próprio tinha herdado — mas mantém relações afectivas, senão mesmo neuróticas, com o dinheiro. De notar que se isso o preocupasse, pois gastava sempre mais do que ganhava, nunca expressou contudo qualquer desconfiança em relação ao dinheiro como o faziam muitos outros escritores profundamente marcados pela cultura francesa católica, veja-se várias passagens do Evangelho: «Não podeis servir a Deus e às riquezas» (Mateus 6:24) e os estereótipos literários do usurário e do avarento. Como Gustave Flaubert — outro que vivia de rendimentos — que mostra como o endividamento de Emma Bovary a levará à perdição. Ou Charles Péguy que disse, pela primeira vez na História — estávamos em 1913 —, que a espiritualidade foi empurrada «por um único poder material que é o poder do dinheiro», que se tornou então um objectivo, como o demonstrou, nessa mesma época, Georg Simmel na sua Filosofia do Dinheiro. Este último reconhecia o protagonismo do dinheiro na vida social devido à sua função instrumental na qual qualquer moeda se pode tornar um fim e acabar por substituir o desejo de trocar pelo de possuir. Um outro motivo de desdém do dinheiro muito presente na época mas completamente alheio a Proust: o mito parisiense da boémia, nascido com as revoluções de 1830 em nome da liberdade, do ócio e da alegria de viver celebrizado por Balzac em Un prince de la bohème (1844) e, sobretudo, pela ópera de Puccini La Bohème (1896).
Nascido numa família burguesa abastada, dos meios do comércio, da banca, da medicina e da política, mas para quem a poupança é um valor e fazer crescer o capital um dever, Marcel Proust herdou uma pequena fortuna quando os pais morreram em 1905. A maior parte desta fortuna, avaliada em cerca de 4,5 milhões de euros, é depositada no banco Rothschild. Nos primeiros anos estes depósitos davam-lhe um rendimento anual de cerca de 170 mil euros. Mas Proust era muito gastador e dava, como sabemos, enormes gorjetas e deixava montantes altíssimos nas flanelas verdes dos casinos. Além disso, imbuído pelo demónio da especulação, interessava-se também pelos mercados de futuros, que o apaixonavam ainda mais do que o bacará. Consultava inúmeros peritos financeiros e punha-os em concorrência, o que não impedia que as suas operações bolsistas tivessem geralmente maus resultados: nas vésperas da guerra fez algumas aplicações em bolsa que se vieram a revelar desastrosas, contraiu uma dívida junto do Crédit Industriel, um outro banco onde também tinha conta, para comprar obrigações a crédito. Manda depois vender essas obrigações (o equivalente a cerca de 450 mil euros) para poder oferecer o tal avião ao famoso Agostinelli. Após várias operações infelizes e outras tantas despesas imponderáveis, Proust diz-se arruinado. O que é muito exagerado, pois, apesar de ter desbaratado um terço da sua fortuna e ter menos rendimentos de aplicações não está de todo arruinado, mas o seu equilíbrio psicológico está tremido. Recordemos, contudo, que após a declaração de guerra, em Agosto de 1914, o fecho dos mercados financeiros pôs, de facto, fim à especulação, tendo-lhe bloqueado as dívidas e salvo, de acordo com o economista Gian Balsamo, de um provável desastre financeiro. No entanto, este efeito de inércia também teve o seu reverso: não lhe foram creditados os dividendos cobráveis no estrangeiro3.
Na época da guerra, Proust confia no seu primo Lionel Hauser, seu procurador no banco Warburg depois de o ter sido também no Crédit Lyonnais, para o aconselhar e ajudar a gerir o seu dinheiro. Conhecem-se desde crianças e gostam um do outro apesar das diferenças e das incompreensões, ou seja, Proust é gastador e Hauser é poupador. Em 1916, a sua aptidão permite-lhe reduzir consideravelmente o passivo financeiro do primo Marcel e de lhe fazer duplicar os rendimentos. Após o Armistício vai fazendo aplicações cuidadosas que lhe permitirão recuperar aos poucos o capital perdido. Acresce ainda que, com a obtenção do Prémio Goncourt em 1919 com À Sombra das Raparigas em Flor, as suas até então modestas vendas aumentaram de forma significativa4. A sua nova editora, a casa Gallimard, pagava lhe direitos de fazer inveja a qualquer escritor (18% sobre os primeiros 3000 exemplares e 21% sobre os restantes). Em 1921, a editora passa a pagar-lhe uma mesada equivalente a 3000 euros por mês. Mas, no fundo, pouco se importava com os direitos de autor. O que para ele era verdadeiramente importante era o acolhimento à sua obra e a sua eternização.
De um ponto de vista físico, não podemos deixar de relacionar os seus reveses financeiros, descritos em grande pormenor nas cartas aos amigos, com os inúmeros desgostos amorosos por que passava. É como se a repetição de experiências difíceis denotasse uma espécie de complacência patética na decepção, isto é, uma forma de masoquismo moral. Tanto o dinheiro como o amor são vividos sob o signo da falta! Até porque Proust tinha tanto medo de perder um como o outro; e tanto gostava de especular sobre um como sobre o outro! Do ponto de vista do consciente pode-se dizer que a necessidade de jogar grandes somas no casino ou na bolsa se terá certamente devido à necessidade de aparentar participar na sociedade — ele que vivia a maior parte do tempo fechado no quarto e que passou os seus últimos anos a escrever. O dinheiro dava-lhe a matéria de uma espécie do «divertimento» de Blaise Pascal!
Já de um ponto de vista racional, o dinheiro deu a Marcel Proust a liberdade de poder devotar totalmente a sua vida, de 1908 a 1922, ano da sua morte, a esse grande romance que atravessa a existência e as paixões que é Em Busca do Tempo Perdido. A sua dedicação foi tal que, em resposta a um jornalista que lhe perguntou que profissão manual escolheria se a tal fosse obrigado pelas circunstâncias da vida, disse: «A que exerço actualmente: escritor». O romancista François Mauriac dirá sobre ele: «É um homem de letras que pelas letras podia morrer». Podemos concluir que as condições concretas da sua vida lhe evitaram um destino como o de Alexandre Dumas ou de Balzac, que não tinham dinheiro e foram obrigados a escrever para viver. Proust celebrou a literatura como um remédio contra o sofrimento e a morte e como oposição à vaidade do mundo e à força destruidora do esquecimento da permanência do ser.
*Tradução de Luiza Albuquerque
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