Figura
Marcel Proust e o dinheiro
Michel Erman

Escritor e filósofo francês, Michel Erman é um conhecido biógrafo de Marcel Proust, a quem dedicou várias obras. Neste ensaio original, fala-nos da relação de Proust com o dinheiro e do que ele representou na sua obra e na sua vida, permitindo-lhe ser «ora altruísta e amigo, ora distante e dominador». Da herança que recebeu dos pais ao uso que fez dela para a afirmação literária, da comédia mundana a meio facilitador de relações amorosas e sexuais, o dinheiro foi para Proust um instrumento de compreensão do mundo e do lugar de cada um, nele.
 

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Carta de Marcel Proust escrita sobre héliogravura de Jacques-Émile Blanche representando o autor
 

Marcel Proust não viveu da escrita, como muitos escritores gostariam, mas sim dos seus rendimentos. Num país como a França, onde o dinheiro muitas vezes suscita desconfianças dada a paixão pelo igualitarismo, tal não facilitou a sua entrada na literatura. De facto, apesar de ser hoje um escritor de vulto na cultura francesa — um pouco como Shakespeare em Inglaterra — o início da sua carreira literária não foi dos mais fáceis. Em 1912, quando quis publicar o primeiro volume de Em Busca do Tempo Perdido, confrontou-se com a recusa unânime do mundo das letras parisiense que o considerava bastante improvável: um homem de sociedade que cultivava a arte de agradar, que escrevia ocasionalmente para o Le Figaro e que para agradecer ao director do dito jornal a oportunidade de escrever nas suas páginas1 não hesitava em convidá-lo para o Ritz de forma a que privasse com vários nomes das letras. Claro que a ruptura com os códigos do romance realista que o seu manuscrito apresenta o tornam mal visto: o editor Fasquelle falará de um romance sem intriga e feito de frases confusas, o seu colega Ollendorf irá no mesmo sentido, enquanto que na Nouvelle Revue Française um crítico evocará uma «obra de lazer, o oposto de uma obra de arte». E além disso, quem pensava ele que era, esse Marcel Proust amante de lazeres letrados, esse escrevinhador em busca de fama cujo nome parece uma gralha aos paquetes que deixavam as poucas cartas que lhe eram dirigidas ao Figaro na secretária do romancista e académico Marcel Prévost… autor já esquecido hoje! Quem era aquele burguês abastado e amante de mundanidades que, ainda por cima, se propunha pagar os custos da edição como que para forçar a decisão dos editores? Tal como um recente Presidente da República francesa, que nada deve à demagogia, o mundo editorial da Belle Epoque não gosta dos ricos!

Do Lado de Swann será publicado em 1913 em edição de autor por um jovem editor audacioso… que não tinha lido o manuscrito! O seu nome era Bernard Grasset, cuja editora terá grande êxito ao longo do século xx e que ainda hoje faz parte das grandes editoras francesas. Enquanto homem de negócios astuto, Grasset pediu a Proust um montante que se pode considerar excessivo (o equivalente a cerca de 7500 euros para uma tiragem de 1750 exemplares e as várias correcções do autor). Mas ele ficou tão satisfeito por ser finalmente publicado que não se importou, além de que acreditava que se se mostrasse pródigo o editor tudo faria para lhe promover o romance. Não foi o caso, pelo menos ao nível das expectativas do autor, apesar de ter proposto a vários jornais pagar-lhes em troca de uma boa crítica ou da publicação de uma resenha apresentando o seu livro como «uma pequena obra-prima», resenha essa que seria escrita pelo próprio autor! Apesar de Proust ter consciência de estar a alimentar um sistema editorial que procurava a rentabilidade acima de tudo, o dinheiro serviu-lhe então para contrariar o destino.Proust também não hesitava em pagar pelos seus prazeres. Frequentava casas de passe, era generoso com o pessoal doméstico e, pelo menos por duas vezes, sustentou jovens que o secretariavam. O mais conhecido deles é Alfred Agostinelli, que se instala em sua casa com a amante durante vários meses do ano de 1913. Proust tem mais do que uma admiração sentimental por este jovem de 24 anos… mas este incorrigível conquistador, cujos pedidos de dinheiro são incessantes, não será nunca seu amante. Quando ele deixa Paris, o escritor insiste para que volte oferecendo-lhe dinheiro, ou seja, um avião, pois Agostinelli quer aprender a pilotar.

"Proust não hesitava em pagar pelos seus prazeres. Frequentava casas de passe, era generoso com o pessoal doméstico e, pelo menos por duas vezes, sustentou jovens que o secretariavam."

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Dagobert Peche, Guarda-jóias, 1920
© Fotografia: Scala, Florença / Art Resource / The Metropolitan Museum of Art

Este gosto ser-lhe-á fatal quando cai no mar ao largo de Antibes, a 30 de Maio de 1914, deixando o seu protector mergulhado num profundo desespero durante meses. O segundo é Henri Rochat, um jovem paquete do Hotel Ritz, que se muda para casa do escritor logo após a guerra. Mostrar-se-á especialmente interessado e aproveitará o facto de estar com cama, mesa e roupa lavada durante mais de dois anos. Proust irá finalmente dar-lhe mais dinheiro… mas desta vez para que se vá embora! Marcel Proust chega também a contratar dispendiosos detectives privados para que sigam os seus amigos do coração e a fazer «despesas absurdas», como confessará um dia, com grande lucidez, a um dos seus correspondentes. Esta propensão para despesas venais encontra-se no seu romance, especialmente na personagem do escritor Bergotte, que reconhece gastar somas astronómicas em raparigas. Todas estas larguezas são uma forma de garantir o reconhecimento, ou seja, o amor do outro, por nada; o que é sugerido numa frase a propósito da célebre personagem Albertine, a desaparecida: «uma mulher que temos por conta não nos parece uma mulher que esteja por conta…». Acrescentemos que as enormes gorjetas que Proust distribuía na sua vida social são a prova de que muitas vezes procurava ligar-se, mantendo, contudo, uma certa distância, mais uma vez como se nada fosse. Já com os presentes sumptuosos que oferecia aos seus amigos mais próximos era um pouco diferente. Não se tratava de uma despesa com laivos de potlatch mas sim de dávidas de pura amizade. Assim, em 1900, quando oferece a Anatole France um desenho de Rubens, oferece um pouco de si próprio e da sua profunda sensibilidade. O dinheiro permitia lhe ser ora altruísta e amigo, ora distante e dominador, sem que o outro tivesse um papel de simples devedor.Se o dinheiro tem um estatuto romanesco na obra este é sem dúvida o de facilitar as relações amorosas ou sexuais. Numa palavra, aos olhos de inúmeras personagens de Em Busca do Tempo Perdido, o dinheiro é erótico sem, no entanto, adquirir um carácter de pulsão ou objectivizar realmente o intercâmbio amoroso. Sem se considerar que o amor pode ser comprado, o dinheiro serve principalmente para realçar os afectos ambivalentes num romance onde a violência afectiva, os tormentos do ciúme e o desencantamento estão sempre presentes. Os casais que povoam o romance estão votados à angústia, alguns até vão buscar ao prazer a razão do seu sentimento, mas nunca à felicidade, pois o amor é «uma tortura recíproca» onde se misturam o afecto e o ódio, mas em nenhum momento o reconhecimento afectivo. Além do mais, nenhuma personagem faz verdadeiramente cálculos financeiros a longo prazo. No Em Busca do Tempo Perdido não há banqueiros nem avaros, apenas indivíduos que vivem o presente e as suas paixões e que, por vezes, manifestam a sua mesquinhez, como acontece com os criados e alguns burgueses sem reconhecimento ou que gostavam de se dar ares de superioridade.

"A propensão para despesas venais encontra-se no seu romance, especialmente na personagem do escritor Bergotte, que reconhece gastar somas astronómicas em raparigas."

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À Sombra das Raparigas em Flor, manuscrito, 1914–1919

 

À excepção da personagem de Morel, filho de um criado que tem vergonha das suas origens sociais mas que acabará por ser um respeitável burguês, nenhuma das outras personagens proustianas é ávida como era costume nos romances franceses do século XIX. Escritos em contexto de ascensão da burguesia ao poder e de desenvolvimento do capitalismo, nenhum fala do preço da refeição nem pensa que o divino dinheiro tudo dá. Em Proust, indicar o valor das coisas serve, na maior parte das vezes, para dar um efeito de real e para realçar as hierarquias e os comportamentos sociais, para representar interesses bem temperados e para dar um toque de snobismo, e não para caracterizar o ser das personagens2. Poucas vezes em Proust se contam as moedas, bem ao contrário do que se passa nos romances realistas de Balzac, Maupassant ou Zola.

No Em Busca do Tempo Perdido interessamo-nos pela comédia mundana ou pela tragédia amorosa, mas a luta pelo reconhecimento é mais forte do que o interesse pelos ganhos e o capital simbólico é mais forte do que o financeiro. Todos os leitores de Proust são tocados pela confusa e, por vezes cómica, facticidade da vida mundana e pela sua crueza sempre na busca de bodes expiatórios para confortar a própria existência do grupo. Proust parece considerar que a vida é luta e conflito para o homem social inspirado pela vaidade e pela ambição, duas paixões que simbolizam energia e motor de mudança na senda das revoluções burguesas do século anterior. Para os Verdurin, arquétipos de burgueses detentores de vasto património e que não se coíbem em exibir a sua riqueza, o valor não está no dinheiro mas sim na arte que, nos finais do século XIX, era considerada uma mercadoria de troca que lhes permitia ser diferenciados e imporem-se aos olhos dos outros. Por exemplo, tocam Wagner numa época em que o músico ainda não era apreciado em França. É na bolsa mundana que é preciso valorizar os seus valores e capital social! Daí a grande importância dada ao snobismo, essa atitude que consiste na apropriação da elegância e dos modos e desejos de uns sendo-se, ao mesmo tempo, depreciativo com os que não vale a pena invejar. Este existir de forma não livre também se encontra nas ligações amorosas. O egoísmo de Proust não se exerce sobre o material, mas sim sobre o espiritual: ele não procura possuir (o que o dinheiro permite), mas sim dominar (o que permite o simbólico). O facto de o dinheiro não ser um tema secundário está ligado ao facto de Proust insistir na interioridade das personagens, nos seus conflitos de vaidade, mas mais com o cruel fundamento libidinoso do que com a História e a evolução económica da sociedade em relação à evolução dos costumes e das relações sociais.

Marcel Proust vive portanto de rendimentos — boa fortuna essa que também deu a algumas das suas personagens, como Swann, que herda do pai um montante praticamente igual ao qual ele próprio tinha herdado — mas mantém relações afectivas, senão mesmo neuróticas, com o dinheiro. De notar que se isso o preocupasse, pois gastava sempre mais do que ganhava, nunca expressou contudo qualquer desconfiança em relação ao dinheiro como o faziam muitos outros escritores profundamente marcados pela cultura francesa católica, veja-se várias passagens do Evangelho: «Não podeis servir a Deus e às riquezas» (Mateus 6:24) e os estereótipos literários do usurário e do avarento. Como Gustave Flaubert — outro que vivia de rendimentos — que mostra como o endividamento de Emma Bovary a levará à perdição. Ou Charles Péguy que disse, pela primeira vez na História — estávamos em 1913 —, que a espiritualidade foi empurrada «por um único poder material que é o poder do dinheiro», que se tornou então um objectivo, como o demonstrou, nessa mesma época, Georg Simmel na sua Filosofia do Dinheiro. Este último reconhecia o protagonismo do dinheiro na vida social devido à sua função instrumental na qual qualquer moeda se pode tornar um fim e acabar por substituir o desejo de trocar pelo de possuir. Um outro  motivo de desdém do dinheiro muito presente na época mas completamente alheio a Proust: o mito parisiense da boémia, nascido com as revoluções de 1830 em nome da liberdade, do ócio e da alegria de viver celebrizado por Balzac em Un prince de la bohème (1844) e, sobretudo, pela ópera de Puccini La Bohème (1896).

Nascido numa família burguesa abastada, dos meios do comércio, da banca, da medicina e da política, mas para quem a poupança é um valor e fazer crescer o capital um dever, Marcel Proust herdou uma pequena fortuna quando os pais morreram em 1905. A maior parte desta fortuna, avaliada em cerca de 4,5 milhões de euros, é depositada no banco Rothschild. Nos primeiros anos estes depósitos davam-lhe um rendimento anual de cerca de 170 mil euros. Mas Proust era muito gastador e dava, como sabemos, enormes gorjetas e deixava montantes altíssimos nas flanelas verdes dos casinos. Além disso, imbuído pelo demónio da especulação, interessava-se também pelos mercados de futuros, que o apaixonavam ainda mais do que o bacará. Consultava inúmeros peritos financeiros e punha-os em concorrência, o que não impedia que as suas operações bolsistas tivessem geralmente maus resultados: nas vésperas da guerra fez algumas aplicações em bolsa que se vieram a revelar desastrosas, contraiu uma dívida junto do Crédit Industriel, um outro banco onde também tinha conta, para comprar obrigações a crédito. Manda depois vender essas obrigações (o equivalente a cerca de 450 mil euros) para poder oferecer o tal avião ao famoso Agostinelli. Após várias operações infelizes e outras tantas despesas imponderáveis, Proust diz-se arruinado. O que é muito exagerado, pois, apesar de ter desbaratado um terço da sua fortuna e ter menos rendimentos de aplicações não está de todo arruinado, mas o seu equilíbrio psicológico está tremido. Recordemos, contudo, que após a declaração de guerra, em Agosto de 1914, o fecho dos mercados financeiros pôs, de facto, fim à especulação, tendo-lhe bloqueado as dívidas e salvo, de acordo com o economista Gian Balsamo, de um provável desastre financeiro. No entanto, este efeito de inércia também teve o seu reverso: não lhe foram creditados os dividendos cobráveis no estrangeiro3.

Na época da guerra, Proust confia no seu primo Lionel Hauser, seu procurador no banco Warburg depois de o ter sido também no Crédit Lyonnais, para o aconselhar e ajudar a gerir o seu dinheiro. Conhecem-se desde crianças e gostam um do outro apesar das diferenças e das incompreensões, ou seja, Proust é gastador e Hauser é poupador. Em 1916, a sua aptidão permite-lhe reduzir consideravelmente o passivo financeiro do primo Marcel e de lhe fazer duplicar os rendimentos. Após o Armistício vai fazendo aplicações cuidadosas que lhe permitirão recuperar aos poucos o capital perdido. Acresce ainda que, com a obtenção do Prémio Goncourt em 1919 com À Sombra das Raparigas em Flor, as suas até então modestas vendas aumentaram de forma significativa4. A sua nova editora, a casa Gallimard, pagava lhe direitos de fazer inveja a qualquer escritor (18% sobre os primeiros 3000 exemplares e 21% sobre os restantes). Em 1921, a editora passa a pagar-lhe uma mesada equivalente a 3000 euros por mês. Mas, no fundo, pouco se importava com os direitos de autor. O que para ele era verdadeiramente importante era o acolhimento à sua obra e a sua eternização.

De um ponto de vista físico, não podemos deixar de relacionar os seus reveses financeiros, descritos em grande pormenor nas cartas aos amigos, com os inúmeros desgostos amorosos por que passava. É como se a repetição de experiências difíceis denotasse uma espécie de complacência patética na decepção, isto é, uma forma de masoquismo moral. Tanto o dinheiro como o amor são vividos sob o signo da falta! Até porque Proust tinha tanto medo de perder um como o outro; e tanto gostava de especular sobre um como sobre o outro! Do ponto de vista do consciente pode-se dizer que a necessidade de jogar grandes somas no casino ou na bolsa se terá certamente devido à necessidade de aparentar participar na sociedade — ele que vivia a maior parte do tempo fechado no quarto e que passou os seus últimos anos a escrever. O dinheiro dava-lhe a matéria de uma espécie do «divertimento» de Blaise Pascal!

Já de um ponto de vista racional, o dinheiro deu a Marcel Proust a liberdade de poder devotar totalmente a sua vida, de 1908 a 1922, ano da sua morte, a esse grande romance que atravessa a existência e as paixões que é Em Busca do Tempo Perdido. A sua dedicação foi tal que, em resposta a um jornalista que lhe perguntou que profissão manual escolheria se a tal fosse obrigado pelas circunstâncias da vida, disse: «A que exerço actualmente: escritor». O romancista François Mauriac dirá sobre ele: «É um homem de letras que pelas letras podia morrer». Podemos concluir que as condições concretas da sua vida lhe evitaram um destino como o de Alexandre Dumas ou de Balzac, que não tinham dinheiro e foram obrigados a escrever para viver. Proust celebrou a literatura como um remédio contra o sofrimento e a morte e como oposição à vaidade do mundo e à força destruidora do esquecimento da permanência do ser.

*Tradução de Luiza Albuquerque

1. Todas as informações biográficas remetem para o meu livro Marcel Proust. Une biographie, Paris: La Table Ronde, 2013.
2. A revista Marcel Proust Aujourd’hui trata destas questões na sua edição de 2018.
3. Gian Balsamo, Proust and his Banker, Columbia: The University of South Carolina Press, 2017.
4. Antes da guerra tinha vendido cerca de 2500 exemplares de Do Lado de Swann.