Obras escolhidas
Existirá um «nós mulheres»?
Marta Lança

Este livro é o manifesto de uma mulher, nascida em 1952, nos Estados Unidos da América, que assina com um pseudónimo sem letras maiúsculas. Esta mulher, bell hooks, também é negra. E importa dizer «também» porque toda a questão deste livro, como mostra Marta Lança, é a da conjunção de uma identidade de género e uma identidade «racial».
 

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bell hooks, Não Serei Eu Mulher?,
trad. Nuno Quintas, Lisboa:
Orfeu Negro, 2018

 

No movimento feminista e por direitos civis, desde o sufrágio aos anos 70, as mulheres negras encontraram-se numa encruzilhada: não podiam falar sobre questões de género no movimento negro para não desviar do importante combate à opressão racial, mas não era igualmente oportuno trazer à baila do movimento feminista as questões raciais para não desviar da denúncia ao machismo. Apesar das apregoadas alianças e da almejada «sororidade», as famílias que foram compondo os movimentos feministas entreolhavam-se sem se verem, ou não querendo assumir as diferenças e as urgências e o que, entre elas, podia ser um combate comum. A visibilidade e liderança penderam, porém, para as feministas brancas de classe média que dissociavam raça e género. Não encontrando lugar numa emancipação feminina que não incluía dois elementos determinantes na sua vida — «ter nascido negra e ter nascido mulher» (p. 33) —, a americana bell hooks escreveu, em modo interrogativo, à procura dessa identidade interseccionada, partindo da experiência pessoal para uma experiência social: «antes de exigir aos outros que me ouvissem, tinha de me ouvir a mim» (p. 10). O racismo e sexismo, de que foram alvo desde a escravatura, contribuíram para as deploráveis condições e estatuto das negras: «nenhum outro grupo na América teve a sua identidade tão rasurada da sociedade quanto as negras. Raramente nos reconhecem como grupo autónomo e distinto dos negros, ou como parte integrante, nesta cultura, do grupo alargado de mulheres. Quando se fala de gentes negras, o sexismo opõe-se ao reconhecimento dos interesses das mulheres negras; quando se fala de mulheres, o racismo opõe-se ao reconhecimento dos interesses das mulheres negras» (p. 26).

É neste quadro que uma «jovem negra destemida do Kentucky rural» (p. 11) se politizava enquanto frequentava a faculdade, ambicionando-se mulher livre e independente, escreve aos 19 anos o livro-manifesto Não Serei Eu Mulher. Embora só publicado próximo dos seus trinta, tornou-se um clássico sobre a exigente disputa das mulheres negras com o feminismo e sobre a teoria que interliga raça e género. Num estilo muito coloquial e por vezes circular em termos argumentativos, o livro revisita na história, na literatura (ensaio e jornalismo) e nos desafios da sociedade americana, o impacto do sexismo desde a escravatura ao capitalismo tardio, a desvalorização da feminilidade negra, o sexismo de negros e brancos, as ligações entre imperialismo e sexismo, o racismo camuflado no feminismo e a participação da mulher negra no feminismo. À laiva de conclusão, localiza-se o patriarcado, entendido como a institucionalização do racismo e sexismo, na base da estrutura social norte-americana (analogamente a tantas outras), e é ainda neste padrão que as pessoas são sociabilizadas.

A autora critica os vários feminismos que deixaram de lado as experiências e lugares sociais das mulheres negras, que necessariamente desbravaram o seu próprio caminho de resistência. A identidade mulher, que Judith Butler viria a desconstruir problematizando a construção de género, é em hooks contestada pela exclusão sistemática de um imenso grupo de mulheres, racial e sexualmente oprimidas ao longo da História, «sempre percepcionadas como o Outro, [como] seres desumanizados» (p. 222). A autora lembra como o movimento feminista americano foi incapaz de pensar a branquitude como categoria privilegiada, ignorou e estereotipou as negras, em certos momentos capitalizando sob a subalternidade a que estas foram relegadas. «Não era oportuno chamar a atenção para o calvário das mulheres pobres ou para o calvário específico das mulheres negras» (p. 227), reforçando assim o sexismo, o racismo e o classismo. hooks aponta nos movimentos feministas os seus constrangimentos de classe, em que as mulheres brancas estiveram sempre em vantagem: mais informadas, com acesso à instrução e mais capacidade de liderança. Refere ainda que o movimento feminista dificilmente soube denunciar as armadilhas capitalistas, fazendo corresponder uma ideia de emancipação (nos termos do patriarca capitalista branco) à aquisição de estatuto económico e poder financeiro. «A tónica no trabalho era mais um sinal de como a percepção da realidade pelas brancas que lutam pela emancipação feminina era totalmente narcisista, classista e racista» (p. 231), sendo que o trabalho muitas vezes significou, sobretudo para as mulheres negras, exactamente o oposto à libertação.

bell hooks refere ainda que os movimentos anti-racistas e nacionalismos negros também se revelaram misóginos e pouco interessados em sair da redoma e conforto do regime patriarcal. Enquanto apelavam ao fim das divisões raciais, fortaleciam as sexistas. Ou seja, no seio das suas comunidades, as negras sempre viveram um machismo dominante.

Lembrando as dificuldades acrescidas para a organização das mulheres negras e os momentos em que, por hierarquização das lutas ou por interiorizarem preconceitos, foram refreando desejos emancipatórios, hooks reforça histórias de denúncia e emancipação. Entre outras vozes progressistas, refere o inspirador «Ain’t I a Woman?», corajoso discurso de Sojourner Truth (1797–1883) na Convenção de Mulheres em Ohio, em 1852 que, perante uma assembleia de brancas e brancos, repetiu o lema abolicionista apelando à humanidade perdida das pessoas escravizadas (segundo a autora chegou a mostrar os peitos para provar que era mulher). Apesar de ter nascido escrava no estado de Nova Iorque, Truth conquistou a sua liberdade e foi uma das primeiras negras com discurso público contra a escravatura e na defesa dos direitos das mulheres. Mas são muitas os exemplos aos quais hook recorre para mostrar que a resistência das mulheres negras tem a sua história.

Mergulhamos nas experiências traumáticas da mulher negra: escrava a bordo dos navios negreiros, depois «explorada como trabalhadora agrícola, trabalhadora doméstica, reprodutora e objecto de abuso sexual do homem branco» (p. 49) e negro, pois o sistema legitimava a exploração sexual das negras. A autora avança que a violação das escravas seria um método institucionalizado de terrorismo com o propósito de desmoralizar e desumanizar as negras, com impactos nos nossos dias. Se se vivia num universo genericamente misógino, o desvio da doutrina cristã no século XIX alterou a percepção sobre as mulheres: a passagem «da imagem da branca pecadora e sexual para a de uma donzela virtuosa» (p. 63) ocorria simultaneamente à exploração sexual das negras cativas, reforçada por mitos da sua promiscuidade e imoralidade. A feminidade negra foi sempre desvalorizada, nomeadamente através da falsa ideia da matriarca — mulher forte que tudo aguenta —, estereótipos que ainda hoje afectam as negras, discriminadas no trabalho, na sociedade e, não pouco, atacadas pela moralidade.

O livro traduzido para português pela Orfeu Negro (existindo uma anterior tradução livre pela Plataforma Guetto) é uma importante aquisição para estudos de género, estudos da negritude e filosofia. Leitura fundamental num contexto onde o processo de combate à discriminação étnico-racial e de género tem ainda longo caminho pela frente. A associação FEMAFRO, conduzida por mulheres e jovens negras, africanas e afrodescendentes, e o recente INMUNE, entidade «feminista interseccional e anti-racista», vêm contrapor o silenciamento histórico e actual das mulheres negras na sociedade portuguesa.

Tem-se falado da importância de acabar com esta negação enviesada do racismo, bell hooks mostrou como as lutas contra o patriarca e contra o racismo têm de vir a par, são o fundamento político que dá amplitude e sinceridade ao movimento feminista, não o instrumentalizando segundo interesses de certas mulheres, mas para e por todas. A emancipação ganharia significado ao representar as experiências de várias mulheres, com a vulnerabilidade e força que daí advêm, construindo a «sororidade» de um nós sem competição ou negligência.

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Georgia O’Keeffe, Nude Series, XII, 1917
© Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque