Primeira Pessoa
Elisabeth Lebovici: o que a sida nos fez
António Guerreiro

Esta entrevista a Elisabeth Lebovici, historiadora e crítica de arte (entre outros, no jornal Libération e na revista Art Press), autora de estudos importantes sobre artistas contemporâneos, centra-se no seu livro sobre o efeito da sida no campo das artes: Ce que le sida m’a fait (2017, vencedor do Prémio Pierre Daix). Trata-se, como indica o título, de uma visão implicada. Lebovici lutou nos anos 80 e 90 do século passado, integrada em grupos muito activos, contra a invisibilidade e as representações muito negativas a que as pessoas infectadas com HIV estavam submetidas. E agora, nesse livro, dá conta do que foi o terror da doença e os seus efeitos.

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Elisabeth Lebovici
© Henry Roy

 

Elisabeth Lebovici (n. 1953) é historiadora e crítica de arte, autora de estudos monográficos sobre artistas contemporâneos, tais como Louise Bourgeois, Chantal Akerman e Zoe Leonard. Estudou história da arte e filosofia na Universidade de Paris X e, em 1979, ingressou num curso de estudos curatoriais, o Independent Study Program do Whitney Museum, de Nova Iorque. Entre 1987 e 1989 foi chefe de redacção da revista Beaux-Arts Magazine. Essa actividade crítica prolongou-se depois nas páginas culturais do jornal Libération, entre 1991 e 2008. Imersa no meio artístico, onde a epidemia da sida causou uma devastação e instaurou uma atmosfera mórbida e de terror, pondo fim ao ambiente de libertação dos costumes reivindicada e conquistada ao longo dos anos 60, Elisabeth Lebovici sentiu a exigência de activismo e integrou-se no movimento Act Up (em Paris), que desenvolveu uma luta política contra a forma como as instituições lidavam com a doença: remetendo-a, na medida do possível, para a invisibilidade ou conformando-a a representações sacrificiais, a imagens mortuárias e de sofrimento passional das «vítimas», estimulando assim uma visão da doença como punição. O Act Up, que tinha nascido em Nova Iorque, integrou a sida na luta política e usou os instrumentos do combate político.

Em 2017, Lebovici prestou testemunho desses tempos num livro que, muito embora com um título formulado na primeira pessoa, Ce que le sida m’a fait. Art et activisme à la fin du XXième siècle [O que a sida me fez: Arte e activismo no fim do século XX], não é de modo nenhum uma narrativa de memórias pessoais, muito embora não pudesse ser escrito senão por quem viveu intensamente no meio onde o activismo foi mais forte. É um livro composto de materiais diversos: textos monográficos sobre artistas, entrevistas, ensaios temáticos e uma introdução que nos faz perceber melhor como se integra esta diversidade numa unidade. Por estas páginas passam muitos nomes importantes de artistas e autores dos anos 80 e 90: Nan Goldin, Félix González-Torres, General Idea, Gregg Bordowitz, Zoe Leonard, Lionel Soukaz, Roni Horn, Philippe Thomas e muitos outros. Como se vê, não se trata «de uma lista de mortos, nem de um catálogo de figurações artísticas do HIV», avisa a autora do livro logo na introdução.

Num número de 1987 da October, a importante revista americana de crítica e teoria da arte, podia ler-se que «a sida é uma epidemia sem representação». Ora, foi precisamente desse défice de representação, tão nocivo na difusão da doença e tão penalizador para os que tinham sido infectados por ela, que nasceu um activismo nos meios artísticos, atingidos fortemente pela epidemia. Nan Goldin foi pioneira: em 1989, fez uma exposição no centro de arte Artists Space, em Nova Iorque, intitulada Witnesses: Against Our Vanishing. Contra o desaparecimento, contra a invisibilidade, tornou-se então uma tarefa que mobilizou, de diversas maneiras — algumas das quais não traduzíveis em mobilização explícita — muitos artistas. Os espaços da arte abriram-se assim, muitas vezes, ao que estava a acontecer na cidade, nas ruas, nos lares, nos hospitais, já que a epidemia tinha necessidade de uma arte pública. Falando do seu livro, Lebovici cita esta frase de Jacques Rancière: «Os artistas propõem-se mudar os pontos de referência do que é visível e enunciável, dando a ver o que não era visto, dando a ver de outra fez maneira o que não era muito facilmente visto.» Esta frase de Rancière é uma asserção geral, pertence a um outro contexto, não é motivada pelas questões da visibilidade suscitadas pelas respostas (moralistas, equivocadas e insuficientes) das instituições e dos poderes públicos à epidemia. Mas um bem conhecido teórico dos cultural studies, Stuart Hall, explicitou assim uma tarefa urgente dos estudos culturais face à «crise da sida»: «Analisar o que decorre da noção política e das complexidades da representação, os efeitos da linguagem, a textualidade como lugar de vida e de morte.» Elisabeth Lebovici respondeu, com o seu livro, a todas estas propostas e desafios, ao mesmo tempo que prestou testemunho desses «anos sida», vividos em regime de pânico e luto permanente, onde se afundaram as utopias e a euforia das duas décadas anteriores. E, ao declinar o título do seu livro na primeira pessoa, ao introduzir o «me», subscreve esta afirmação de González-Torres, artista nascido em Cuba e falecido, de sida, nos Estados Unidos da América, em 1996, aos 39 anos: «In this time of Aids, we all live and die in Aids, whether or not we die of Aids».

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Act-up Paris, Dia Mundial Contra a Sida, Notre-Dame de Paris, 1 de Dezembro de 1994 © Diane Gabrysiak / Anne Maniglier

 

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Group Material, AIDS & Insurance, 1990

 

ANTÓNIO GUERREIRO  Ce que le sida m’a fait, assim se intitula o seu livro. Porque é que escolheu introduzir de maneira enfática a primeira pessoa, a asserção subjectiva, se na verdade fala do «efeito sida» numa dimensão colectiva, sobretudo no campo das artes?

ELISABETH LEBOVICI  Creio que seria impossível, para mim, não pôr esse título na primeira pessoa. Não gostaria de modo nenhum que o meu trabalho fosse «sobre». Acho desagradável colocar as coisas nesses termos. Detesto quando os artistas me dizem que trabalham «sobre», como se estivessem sentados sobre alguma coisa, numa posição de domínio. Ora, aqui não se trata de dominar o meu assunto, de ter uma ideia clara do que a sida fez ao certo mas de tentar contar o seu efeito de devastação, de deslocação, de dissociação, de fragmentação. Um efeito que foi ao mesmo tempo médico, estético, cultural, histórico, etc. Como qualquer coisa que afecta o campo artístico e afecta o sujeito. É evidentemente uma escolha, introduzir a minha pessoa, embora não fale muito de mim. Mas não podia ficar de fora. O que quis também dizer, efectivamente, é que tentar trabalhar sobre os efeitos da sida no campo artístico, digamos, no campo cultural, não passa evidentemente por escolher os artistas e os escritores que, por falarem da sida, por intervirem ou testemunharem, seriam os bons artistas e os bons escritores. A sida afectou tudo e todos.

AG  Fala dessa época enquanto alguém que teve uma grande actividade e conheceu por dentro o ambiente dessa enorme laceração.

EL  Não sei se tive uma grande actividade, mas tenho a certeza de ter sentido uma grande sideração. Faço parte de uma geração que começou a ter a sua vida sexual em meados dos anos 70, mais ou menos, e que portanto viveu alegremente um certo número de efeitos dos movimentos de libertação das mulheres e dos homossexuais, num momento bastante eufórico da história da sexualidade. Foucault não estaria verdadeiramente de acordo comigo, mas enfim… E é verdade que fomos atingidos em cheio desde o início dos anos 80 pela sida. Essa é a história que eu conto, uma história da sida que teria começado exactamente no início dos anos 80. E digo «teria começado» porque hoje em dia a história pode provavelmente ser contada de outra maneira, depois de sabermos que houve pessoas que morreram de sida provavelmente muito antes. A história que se conta é a história de um certo número de práticas que se tornam contaminantes, e estas práticas contaminantes foram transformadas socialmente em pessoas contaminantes, isto é, os homossexuais, os heroinómanos, os hemofílicos e os haitianos, para citarmos o famoso quatro hh, as quatro categorias estigmatizadas. Vemos imediatamente como certas práticas sexuais e de consumo de drogas foram transformadas em pessoas categorizadas, o homossexual, o heroinómano, etc. Uma transformação que surgiu desde o início dos anos 80 e que originou um certo ostracismo e invisibilidade social. É precisamente essa história que eu conto. Mas devo dizer que a minha geração foi duramente atingida pela sida, pessoas de quem eu era muito próxima foram infectadas e morreram. Faço parte dessa geração e sinto muitas vezes que estou quase sozinha a deter a memória de um certo número de coisas que partilhei com outros, sou a única pessoa sobrevivente de coisas que vivi com amigos que já cá não estão para as contar. A par de uma grande actividade, também tive momentos de uma sideração total, de passividade total, momentos de horror em que nos tornámos incapazes do que quer que fosse. Recordo-me bem que foi nesse estado que vivi grande parte dos anos 80, antes de me erguer um pouco. Isso não me impediu de ter uma actividade e de ter pessoas na minha vida, mas houve essa «sideração» e uma enorme necessidade de nos ocuparmos dos nossos amigos que estavam doentes e que eram ostracizados.

"Tentei contar o efeito de devastação, de deslocação e fragmentação da sida, um efeito que foi ao mesmo tempo médico, estético, cultural, histórico."

AG  Em que trabalhava, nessa época?

EL  Entrei num programa curatorial, organizado na altura pelo Whitney Museum. Isso permitiu-me ir para Nova Iorque, onde fiquei durante alguns anos, até 1983. Quando regressei a Paris, foi um pouco difícil, devo dizer. Antes de mais, porque a sida estava a começar, mas também porque tive muita dificuldade em encontrar trabalho. Fui professora numa escola de arte em Caën e depois fiz um certo número de coisas, trabalhei nos arquivos dos fabricantes italianos de fogo de artifício que vieram para França no século XVIII trabalhar para os reis. Comecei a escrever por volta de 1985 pequenas recensões críticas, depois de ter apresentado a minha tese de doutoramento em 1983.

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