A passagem por onde a rua comunica com a pequena praça no interior do pátio abaixo do prédio onde vivo tem, além da travessa que assinala o seu nome, outra vida. Há frequentemente pessoas a dormir. Estão deitadas sobre cartão, os seus objectos pessoais em ordem na cabeceira e o calçado bem alinhado. A cidade mostra-se incómoda perante os seus mendigos e vagabundos. Com atitudes paradoxais, talvez. O cineasta sueco Ruben Östlund expressa-o bem no filme de 2017, The Square, onde entrelaça esta contradição com as atribulações do director do Museu de Arte Moderna de Estocolmo. Na passagem, apesar da sua sordidez de túnel, também aparecem, ao entardecer, casais de adolescentes abraçados. Mereceram um romance com o mesmo título simbólico que Virginia Woolf deu aos seus ensaios: A Room of One’s Own. Duas maneiras diferentes de se enfrentar a rede de rotinas inócuas do espaço público.
Nunca foi fácil converter a cidade em um quarto próprio. Ainda em 1969, a poetisa Anne Sexton escreveu no seu livro Love Poems um verso que o confirma: «E não é permitido beijarmo-nos pelas ruas». É um verso prodigioso, pois permite situar onde e quando teria ou não teria sentido escrevê-lo para auscultar o pensamento urbano. Em Boston, Massachusetts, onde viveu Sexton, tinha obviamente sentido. Noutros lugares do planeta continua a tê-lo. Faz uns anos, não demasiados, um beijo entre um casal na casa dos vinte capturado pelas câmaras de segurança de uma estação de metro em Xangai e posto no YouTube agitou a população chinesa. «Na China — escreve o jornalista Jordi Pérez Colomé —, os casais não se tocam em público. Não andam de mão dada, nem se despedem com um beijo.» A capacidade de subverter a ordem social com um beijo emociona o Ocidente. Na década inicial deste século saíram, na China, com auréola revolucionária, as fotografias do primeiro beijo entre dois homens e do primeiro beijo entre duas mulheres perante o olhar um pouco incrédulo de um retrato de Mao. A jornalista Eugenia Mont acrescenta que «Nas ruas e parques [de Pequim], no metro e nos restaurantes de pronto-a-comer é possível ver os jovens casais de mão dada, abraçados, agarrados. Não demonstram vergonha por estar num espaço público, talvez porque não tenham espaços privados».
Resta agora perguntar pelo momento em que as cidades europeias começaram a contemplar estes beijos — quer com escândalo, quer com um difuso anseio pela novidade — que de repente rompiam as rigorosas fronteiras entre o público e o privado. As ruas de Berlim tiveram um magnífico navegador e cartógrafo durante as primeiras décadas do século XX, Franz Hessel (1880–1941). Escreveu um livro delicioso: Spazieren in Berlin, publicado em 1929, que a crítica considerou sempre o trabalho de campo das ideias do seu amigo Walter Benjamin. Se algum casal alemão, na casa dos vinte, se beijava nas ruas de Berlim ao estilo chinês, não poderia escapar a Hessel. «Domingo de Outono. Crepúsculo… — escreve Franz Hessel numa descrição do Tiergarten, o grande parque central berlinense — A terra exala um ligeiro vapor, não tanto como em campo aberto, mas mais do que nos campos de batatas. Em muitos e muitíssimos bancos espalhados pela penumbra e semipenumbra dos serpenteantes caminhos estão sentados casais de amantes. Alguns parecem-me pouco peritos nos afagos amorosos, poderiam aprender muito com um pobre operário parisiense quando acaricia a sua pequena amada. Alguns conseguiram para os seus jogos a dois um banco inteiro, mas também não se incomodam entre si os que têm de partilhar o seu banco com outros casalinhos.» Hessel volta a Paris — «Paris é a cidade mais carnal que já existiu» — escreveu num dos seus romances.
Em Paris, a vitalidade, o movimento e a cor urbanos seduzem um jovem pintor nos primeiros anos do século XX: Pablo Picasso. Deslumbrado pelo espectáculo quotidiano que contempla, o artista esmera-se, tanto em experimentar novas maneiras, influências ou estilos, como em captar instantes da vida parisiense. E, sobretudo, em compreender como os tinham interpretado os seus precedentes. E já os pintores costumbristas de finais do século XIX se tinham deixado impressionar pela nova intimidade dos amantes na rua. Assim Théophile Alexandre Steinlen (1859–1923) representou em 1895 um extraordinário e apaixonado Beijo num cenário nocturno, solitário. E urbano.
Entre 1900 e 1901 Picasso pintou com entusiasmo múltiplos aspectos da vida parisiense que o seduziam. As pinturas recolhem o traço rápido, efervescente, imperfeito desta comoção. Entre os motivos parisienses há um que Picasso conseguiu converter em emblema — como quase tudo o que criou, por certo —, capaz de instituir uma nova realidade pictórica: o abraço carnal. Os abraços começam nos bairros periféricos de Paris com os «Amantes na rua» (existe um pastel, um óleo e um apontamento a carvão) e continuam em «Abraço num quarto fechado» (mais íntimo em aparência, ainda que esta apresente a violência da luz nocturna que ilumina o quarto e deixa de fora do quadro, mas latente, uma janela e a cidade). Este motivo reaparece totalmente sublimado num esplêndido pastel do período azul, do mesmo modo intitulado: «O abraço», que pintou na Barcelona de 1903. Mas um ano mais tarde, de novo em Paris, os abraços de Picasso recuperam a sua violência de retrato carnal, tal como mostra uma abundante série de desenhos: «Os amantes», «O beijo» ou as variações inumeráveis de «Casal fazendo amor». Através destes quadros, Picasso descobre e revela que em Paris a paixão amorosa é um tema fundador da cidade moderna: a intimidade alcançada pelos amantes na rua relaciona-se directamente com a proporção de anonimato e heterogeneidade que lhes oferece a vida urbana. Na Paris de Picasso de inícios do século XX, o verso de Anne Sexton já não tinha sentido.
Numa recensão a Spazieren in Berlin, Walter Benjamin faz uma observação interessante: «Paisagem, isto é o que [Paris] é na realidade para o flâneur. Ou para ser mais exacto: para ele [para Franz Hessel] a cidade apresenta-se nos seus pólos dialécticos. Abre-se como uma paisagem, fecha-se em torno dela como um quarto.» A cidade do flâneur é uma paisagem — segundo Benjamin — externa e interna ao mesmo tempo. Esta é uma ideia central no pensamento de Benjamin, talvez descoberta na sua visita a Nápoles, onde se deixou impressionar pela «porosidade» da vida urbana, mas desenvolveu-a no seu estudo sobre a Paris de Baudelaire: «A rua converte-se numa morada para o flâneur, encontra-se tanto em casa entre as fachadas dos edifícios como o cidadão entre as suas quatro paredes.»
A arquitectura e o urbanismo naquele início do século XX estavam prontas a decretar — pelo menos como utopia — o final da fronteira entre o que está dentro e o que está fora. Interior e exterior de um edifício, com as novas estruturas de ferro e vidro do racionalismo arquitectónico, deixam de ser conceitos inamovíveis. O Pavilhão Alemão de Barcelona, desenhado por Ludwig Mies van der Rohe e Lilly Reich, talvez seja o paradigma desta reunião de conceitos.
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