Metropolitano
O beijo como paisagem urbana
José Ángel Cilleruelo

Há uma história do beijo no espaço público da cidade que pode ser documentada pela iconografia. É essa história, e as diferentes atitudes e reacções ao beijo urbano consoante a geografia e as culturas, que o poeta e ensaísta catalão José Ángel Cilleruelo persegue neste texto, que é também uma evocação da estética e da ética da flânerie.

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Gustav Klint, O beijo, 1907

 

A passagem por onde a rua comunica com a pequena praça no interior do pátio abaixo do prédio onde vivo tem, além da travessa que assinala o seu nome, outra vida. Há frequentemente pessoas a dormir. Estão deitadas sobre cartão, os seus objectos pessoais em ordem na cabeceira e o calçado bem alinhado. A cidade mostra-se incómoda perante os seus mendigos e vagabundos. Com atitudes paradoxais, talvez. O cineasta sueco Ruben Östlund expressa-o bem no filme de 2017, The Square, onde entrelaça esta contradição com as atribulações do director do Museu de Arte Moderna de Estocolmo. Na passagem, apesar da sua sordidez de túnel, também aparecem, ao entardecer, casais de adolescentes abraçados. Mereceram um romance com o mesmo título simbólico que Virginia Woolf deu aos seus ensaios: A Room of One’s Own. Duas maneiras diferentes de se enfrentar a rede de rotinas inócuas do espaço público.

Nunca foi fácil converter a cidade em um quarto próprio. Ainda em 1969, a poetisa Anne Sexton escreveu no seu livro Love Poems um verso que o confirma: «E não é permitido beijarmo-nos pelas ruas». É um verso prodigioso, pois permite situar onde e quando teria ou não teria sentido escrevê-lo para auscultar o pensamento urbano. Em Boston, Massachusetts, onde viveu Sexton, tinha obviamente sentido. Noutros lugares do planeta continua a tê-lo. Faz uns anos, não demasiados, um beijo entre um casal na casa dos vinte capturado pelas câmaras de segurança de uma estação de metro em Xangai e posto no YouTube agitou a população chinesa. «Na China — escreve o jornalista Jordi Pérez Colomé —, os casais não se tocam em público. Não andam de mão dada, nem se despedem com um beijo.» A capacidade de subverter a ordem social com um beijo emociona o Ocidente. Na década inicial deste século saíram, na China, com auréola revolucionária, as fotografias do primeiro beijo entre dois homens e do primeiro beijo entre duas mulheres perante o olhar um pouco incrédulo de um retrato de Mao. A jornalista Eugenia Mont acrescenta que «Nas ruas e parques [de Pequim], no metro e nos restaurantes de pronto-a-comer é possível ver os jovens casais de mão dada, abraçados, agarrados. Não demonstram vergonha por estar num espaço público, talvez porque não tenham espaços privados».

Resta agora perguntar pelo momento em que as cidades europeias começaram a contemplar estes beijos — quer com escândalo, quer com um difuso anseio pela novidade — que de repente rompiam as rigorosas fronteiras entre o público e o privado. As ruas de Berlim tiveram um magnífico navegador e cartógrafo durante as primeiras décadas do século XX, Franz Hessel (1880–1941). Escreveu um livro delicioso: Spazieren in Berlin, publicado em 1929, que a crítica considerou sempre o trabalho de campo das ideias do seu amigo Walter Benjamin. Se algum casal alemão, na casa dos vinte, se beijava nas ruas de Berlim ao estilo chinês, não poderia escapar a Hessel. «Domingo de Outono. Crepúsculo… — escreve Franz Hessel numa descrição do Tiergarten, o grande parque central berlinense — A terra exala um ligeiro vapor, não tanto como em campo aberto, mas mais do que nos campos de batatas. Em muitos e muitíssimos bancos espalhados pela penumbra e semipenumbra dos serpenteantes caminhos estão sentados casais de amantes. Alguns parecem-me pouco peritos nos afagos amorosos, poderiam aprender muito com um pobre operário parisiense quando acaricia a sua pequena amada. Alguns conseguiram para os seus jogos a dois um banco inteiro, mas também não se incomodam entre si os que têm de partilhar o seu banco com outros casalinhos.» Hessel volta a Paris — «Paris é a cidade mais carnal que já existiu» — escreveu num dos seus romances.

Em Paris, a vitalidade, o movimento e a cor urbanos seduzem um jovem pintor nos primeiros anos do século XX: Pablo Picasso. Deslumbrado pelo espectáculo quotidiano que contempla, o artista esmera-se, tanto em experimentar novas maneiras, influências ou estilos, como em captar instantes da vida parisiense. E, sobretudo, em compreender como os tinham interpretado os seus precedentes. E já os pintores costumbristas de finais do século XIX se tinham deixado impressionar pela nova intimidade dos amantes na rua. Assim Théophile Alexandre Steinlen (1859–1923) representou em 1895 um extraordinário e apaixonado Beijo num cenário nocturno, solitário. E urbano.

Entre 1900 e 1901 Picasso pintou com entusiasmo múltiplos aspectos da vida parisiense que o seduziam. As pinturas recolhem o traço rápido, efervescente, imperfeito desta comoção. Entre os motivos parisienses há um que Picasso conseguiu converter em emblema — como quase tudo o que criou, por certo —, capaz de instituir uma nova realidade pictórica: o abraço carnal. Os abraços começam nos bairros periféricos de Paris com os «Amantes na rua» (existe um pastel, um óleo e um apontamento a carvão) e continuam em «Abraço num quarto fechado» (mais íntimo em aparência, ainda que esta apresente a violência da luz nocturna que ilumina o quarto e deixa de fora do quadro, mas latente, uma janela e a cidade). Este motivo reaparece totalmente sublimado num esplêndido pastel do período azul, do mesmo modo intitulado: «O abraço», que pintou na Barcelona de 1903. Mas um ano mais tarde, de novo em Paris, os abraços de Picasso recuperam a sua violência de retrato carnal, tal como mostra uma abundante série de desenhos: «Os amantes», «O beijo» ou as variações inumeráveis de «Casal fazendo amor». Através destes quadros, Picasso descobre e revela que em Paris a paixão amorosa é um tema fundador da cidade moderna: a intimidade alcançada pelos amantes na rua relaciona-se directamente com a proporção de anonimato e heterogeneidade que lhes oferece a vida urbana. Na Paris de Picasso de inícios do século XX, o verso de Anne Sexton já não tinha sentido.

Numa recensão a Spazieren in Berlin, Walter Benjamin faz uma observação interessante: «Paisagem, isto é o que [Paris] é na realidade para o flâneur. Ou para ser mais exacto: para ele [para Franz Hessel] a cidade apresenta-se nos seus pólos dialécticos. Abre-se como uma paisagem, fecha-se em torno dela como um quarto.» A cidade do flâneur é uma paisagem — segundo Benjamin — externa e interna ao mesmo tempo. Esta é uma ideia central no pensamento de Benjamin, talvez descoberta na sua visita a Nápoles, onde se deixou impressionar pela «porosidade» da vida urbana, mas desenvolveu-a no seu estudo sobre a Paris de Baudelaire: «A rua converte-se numa morada para o flâneur, encontra-se tanto em casa entre as fachadas dos edifícios como o cidadão entre as suas quatro paredes.»

A arquitectura e o urbanismo naquele início do século XX estavam prontas a decretar — pelo menos como utopia — o final da fronteira entre o que está dentro e o que está fora. Interior e exterior de um edifício, com as novas estruturas de ferro e vidro do racionalismo arquitectónico, deixam de ser conceitos inamovíveis. O Pavilhão Alemão de Barcelona, desenhado por Ludwig Mies van der Rohe e Lilly Reich, talvez seja o paradigma desta reunião de conceitos.

"Quem melhor soube captar o poder evocador do beijo urbano foi a fotografia. Os fotógrafos do século XX converteram a carícia afectuosa e íntima entre amantes no sedutor símbolo da cidade."

A confusão entre vida interior e vida exterior, que tem raiz nesta época e conclui-se num presente onde o privado e o público deixaram de ter sentido como campos de referência, tem uma das suas origens mais claras na poética de Charles Baudelaire, para quem nunca existiu uma fronteira entre dentro e fora, entre conhecido e desconhecido, e mais, nesse interstício onde se cruza interior e exterior soube ver o que se prende com o «mais misterioso» do ser humano — pense-se em poemas como «A une passante» ou em tantos textos dos Petits poèmes en prose.

Aquele que é talvez o melhor leitor de Baudelaire, Walter Benjamin, intitulou de Rua de Sentido Único um dos seus livros mais pessoais, criativos e luminosos. Nas suas páginas reflecte: «Subitamente pude abarcar com o olhar um bairro totalmente labiríntico, uma rede de ruas que durante anos tinha evitado, o dia em que um ser querido se mudou para ele. Era como se na sua janela tivessem instalado um reflector que isolava a zona com feixes luminosos.» O pensamento clássico das ciências sociais determina que o espaço urbano se produz mediante a prática arquitectónica, monumental, urbanística, e mediante as codificações sociais e culturais. Henri Lefebvre acrescentou um terceiro elemento, a experimentação do espaço urbano na vida quotidiana, a sua vivência. O texto de Benjamin concretiza esta terceira via na compreensão do espaço urbano. O bairro evitado e desconhecido de repente muda de significado depois da mudança do «ser querido». A cidade é o lugar onde duas pessoas se beijaram, poderia dizer-se agora com a mesma propriedade de qualquer outra definição.

A cidade converte-se no tempo das vivências, não naquilo que assinalam os monumentos. E quem melhor soube captar o poder evocador do beijo urbano foi a fotografia. Os fotógrafos do século XX converteram a carícia afectuosa e íntima entre amantes no sedutor símbolo da cidade. Mas as fotografias optimistas, celebérrimas, de Robert Doisneau (1912–1994), por exemplo, que constatam o triunfo do individual sobre a estrutura, talvez ocultem um bastidor menos harmónico. Ao mesmo tempo que os seus casais de parisienses se tornam admiráveis pela veemência, esplendor e centralidade dos seus beijos, outra sexualidade deslocada das convivências urbanas cria uma cartografia secreta mais intensa nas cidades: becos imundos, parques mal iluminados, edifícios em ruínas, urinóis públicos…

O professor Jesús Martínez Oliva estudou com detalhe a evolução dos espaços das relações entre homossexuais durante o século XX, que seguiram caminho a partir dos lugares afastados, marginais, anónimos e com frequência degradados, passando pela articulação de locais próprios — bares, saunas, clubes de sexo —, até à criação actual dos bairros e zonas exclusivas. Neste ponto, Martínez Oliva faz uma reflexão que afecta também o presente: «Se a ocupação do espaço público era criativa e libertadora, ou pelo menos punha em causa certas prerrogativas e normas, teríamos de perguntar-nos se o uso do espaço nos bairros gay é igualmente libertador ou pelo contrário não possui esse potencial de resistência. Um dos problemas consiste em saber se essa visibilidade interfere de modo real no resto da vida da cidade ou se é uma miragem, um mero estado de liberdade contida dentro do enquadramento de um distrito. Outro seria a forma como esses bairros se articulam e habitam no espaço, que cada dia parece mais normativa, rentabilizadora
e acomodada.

A incorporação do termo «miragem» numa abordagem que tinha nascido da irrupção libertadora da intimidade na rua cria uma nova perspectiva. Os bairros gay, mas também os parques vigiados onde os adolescentes se beijam, ou a inofensiva paisagem por baixo do meu prédio, servirão hoje como há cem anos «para mandar pelos ares todo esse mundo prisional», como se perguntaria Walter Benjamin?

Cada vez mais no presente — e, afinal, talvez seja um dos seus elementos consubstanciais — o espaço urbano almejado como libertador tende à sua redundância. Lugares redundantes na sua oferta de um desfrute elegido a priori; vivências redundantes pela multiplicação incessante de comportamentos previsíveis; experiência redundante pela essência estereotipada que condena a exibição audiovisual constante, quase obscena, dos âmbitos íntimos, privados, pessoais. A redundância é a condição do espaço contemporâneo. A redundância é a morte do espaço concebido como libertação pessoal perante o urbanismo especulativo e a sociedade codificada. A redundância é o nome do campo de concentração das cidades do presente, onde um beijo dado em público já nem sequer tem capacidade libertadora. Os beijos dos adolescentes converteram-se no paradigma desta redundância: motivo de uma competição que admite recordes. Em 2017, quase 40 000 pessoas beijaram-se no México para superar um recorde mundial de Londres, onde pouco antes 16 500 casais estiveram a beijar-se juntos e num mesmo e cronometrado tempo.

*Tradução de Beatriz Morais