Obras escolhidas
Manuel Rosa: Um tempo sem tempo
Rui Chafes

Um escultor, Rui Chafes, escreve com proximidade e sabedoria sobre a obra de um outro escultor, Manuel Rosa, a propósito da exposição antológica Clareira que foi um regresso deste à exposição pública. Segundo Chafes, a obra de Manuel Rosa «não é deste mundo veloz e apressado, feito de sucessões meteóricas de imagens e informações superficiais, que nos levam a confundir beleza com atracção fugaz, pulsação com estertor».

Aproximo-me desta porta, enorme e fechada. Sinto que estou a entrar num templo ao imergir na escuridão do espaço. Subo as escadas e cada degrau me aproxima do que aguardo com inquietação. O rumor do exterior torna- -se cada vez mais longínquo, até não ser mais do que uma memória distante que acabo por esquecer. Quando finalmente chego ao quinto andar e penetro na sala, o ruído do mundo apaga-se completamente. O silêncio abate-se, o tempo pára. Nove figuras expectantes, cada uma acompanhada por um cão, aguardam-me num círculo de fogo. Parecem-me emanar uma luz azul, apesar de serem feitas em pedra calcária branca e suave. De braços cruzados, esperam que o tempo nos traga a revelação do enigma de que são a semente. São feitas de pó, pó acumulado ao longo de séculos. Sou pequeno, muito pequeno, elas são enormes e silenciosas, no cimo dos seus pedestais. Talvez sejam auto--retratos de toda uma humanidade desaparecida, modelos numa pose sem princípio nem fim, velando por nós. Compreendo que a sua vocação será sempre criar um espaço de beleza no interior dos outros, dos que as observam e com elas estabelecem um diálogo mudo. «Preenchem os outros com beleza», penso, «será também essa a minha vocação?». Aos meus olhos deslumbrados, cada uma destas silhuetas se situa entre um kouros fora do tempo e o Ange du Méridien da Catedral de Chartres, com uma boca feita de cem bocas. Estas figuras silenciosas, estáticas e ausentes permanecerão para sempre dentro de mim.

São trabalhos que existem fora do tempo, ou num tempo muito antigo, arcaico, arqueológico: um tempo sem tempo. A voz da sua beleza, só alguns a conseguem ouvir. A sua imobilidade, uma espera que parece pertencer a um estado de sono fragmentado, acentua o amor que todos deveríamos ter pelos instantes suspensos que atravessamos, de maneira tão distraída. Estas obras impedem-nos de esquecer que temos de parar o tempo para conseguir ver para além do mundo das aparências. Para comunicar com as coisas, temos de entrar nelas, tornarmo-nos nelas. Nem que seja por um instante.

Toda a escultura de Manuel Rosa nos mostra que a beleza é uma consequência da duração, da persistência (e, por consequência, da contemplação). Por isso a sua obra não é deste mundo veloz e apressado, feito de sucessões meteóricas de imagens e informações superficiais, que nos levam a confundir beleza com atracção fugaz, pulsação com estertor. A beleza que Manuel Rosa persegue e nos propõe é feita de silêncio e tempo sedimentado. Só assim a coincidência do belo com o verdadeiro se consuma. Por isso, também, estas figuras despojadas e intemporais, estas canoas, contentores e casas vazias, nos parecem vindos de outra época, uma época que não se consumia a si própria no vazio. Trazem consigo o vazio das estruturas arquitectónicas que já ruíram. A nobreza hierática que estas obras exalam fala-nos também na sua capacidade de resistir (ou sobreviver): vejo o trabalho deste escultor como um imenso naufrágio, de onde nos chegam apenas os destroços. Esta obra fala-nos, radicalmente, de um mundo em extinção.

A morte nem sempre é uma porta estreita que temos de franquear, por vezes é um caminho que seguimos, quando sabemos que assistimos ao fim de qualquer coisa. No fim do caminho estará a memória, enquanto existir espaço para ela fazer sentido. Algumas destas esculturas simulam o detalhe fossilizado do nosso mais íntimo pavor, a maneira como enfrentamos o fim. A simplicidade com que a arte tenta reparar as feridas da morte…

Quantos séculos encerram em si o olhar de milhões de olhos, que se concentram sempre num só, o que atravessa os anos, numa linha sinuosa e complexa, que se dirige até nós? É nessa trajectória fora do tempo, ou paralela a ele, que se situa o labor deste escultor. Na sua mais intensa ligação com a Terra, este artista modela as suas formas em argila. Outras vezes, deixa que nasçam do fogo e da terra incandescente, passando a existir em ferro ou em bronze. Mas a sua matéria inicial é o peso absolutamente estático da pedra. Vejo o calcário como acumulação de areias, na imensidão dos anos sem início nem fim. Quantos milhares de anos demora uma rocha a ser formada e quantos demorará a transformar-se num seixo? Quantos séculos demora a areia a acumular-se, com fósseis e pedaços de cristal, até formar um bloco de pedra calcária? É desse tempo e dessa rocha milenar que saem estas figuras silenciosas que nos aguardam e nos confrontam. Feitas de pó sedimentado, feitas de pó do tempo. De cada vez que visito estas estátuas, sinto no ar, ainda, a fina poeira em suspensão que habita a oficina do escultor. Essa película cobre os vultos que estão perante nós e assim permanecerão para sempre. Estou certo de que agarraram esse pó do tempo.

As esculturas de Manuel Rosa são estátuas que foram retiradas de templos quando ainda havia razão para existirem templos para as pessoas. Em cada uma delas vejo o sorriso triste de um anjo mudo, o seu rosto sério e grave que duplica a sombra dos nossos olhos. Habituei-me a encontrar estas figuras serenas e melancólicas onde menos espero, aguardam-me expectantes na esquina de um edifício, à entrada de uma casa, quando a porta dos nossos amigos se abre para nos receber. Com os anos, foram-se transformando, elas mesmo, numa casa que me acolhe de cada vez que as visito.

Manuel Rosa vem de uma época em que ainda era possível acreditar na figura e na representação figurativa em arte, fazendo-o de uma maneira credível e tão séria como já não é comum encontrar. Talvez seja por essa razão que os seus trabalhos nos aparecem, hoje, carregados de uma serenidade desconcertante que já não conhecemos, que já não nos é familiar. A dádiva que este artista nos oferece é essa possibilidade de conhecer obras que fazem parar o mundo à nossa volta e nos retiram, por momentos, de ruído sem sentido e nos levam para o espaço da contemplação e do deleite quase melancólico.

Este artista, discreto mas sempre presente e generoso, transporta também em si o seu enorme amor pela palavra, a literatura, a beleza do livro. A sua tranquilidade é sinónimo de humanidade, simplicidade, discrição e rigor. Manuel Rosa tem vindo a tomar conta dos outros, de todos os seus colegas artistas, escritores, poetas, fotógrafos, cineastas que ainda acreditam que o amor pelos livros será talvez a maneira de perpetuar a efemeridade do saber e da dúvida. Faz isso com o maior cuidado, zelando sempre com toda a exigência e escrúpulo para que o resultado final seja a mais bela e simples inscrição da ideia que os outros pensaram construir. No fundo, tal como no seu trabalho de escultura, também aqui se trata de nos oferecer obras que fazem parar o mundo à nossa volta e nos retiram, por momentos, do ruído sem sentido e nos levam para um espaço de deleite, de pensamento, de leitura. Um espaço sem corpo, retirado do mundo, que cada vez parece ser mais raro. Talvez o receio de que as pessoas estejam em risco de perder o livro e a entrega às horas preciosas da leitura, tenha sido a razão de uma tão longa ausência do atelier e da escultura. Em todo o caso, este desejo de oferecer um espaço tão raro às pessoas, que é comum à sua actividade de escultor e de editor, é uma dádiva tão generosa que o nosso agradecimento não cabe nas palavras de um texto.

Aproximo-me desta porta, enorme e fechada. Sinto que estou a entrar num templo ao imergir na penumbra do espaço. Subo as escadas e cada degrau me aproxima do que aguardo com inquietação. O rumor do exterior torna-se cada vez mais longínquo, até não ser mais do que uma memória distante que acabo por esquecer. Quando finalmente penetro na sala, o ruído do mundo apaga-se completamente. O silêncio abate-se, o tempo pára. Dezenas de figuras expectantes aguardam-me, acompanhadas agora por outros vultos e sombras formando diversos círculos de fogo que se intersectam de forma serena. Canoas, destroços de barcos que nunca viajaram, igloos, ossos, mandíbulas, túneis, enormes vasos-contentores funerários, crânios, cabeças, taças, círculos… penso que estou a visitar as reservas de um museu, habitadas por inúmeras estátuas ou por vestígios perdidos, achados arqueológicos antes de terem sido descobertos… Por fim, apercebo-me que, afinal, regressei ao templo de onde estas imagens sem nome nem título nunca saíram. Continuam a emanar uma luz, apesar de serem feitas em pedra branca e suave, calcário (mas, também, barro cozido, gesso, bronze, vidro, carvão, areia de fundição, ferro fundido, gesso, madeira…). O tempo que passou talvez se possa medir em horas, dias, anos… em cabelos que se tornaram cor de luar, mas continuo pequeno, muito pequeno, e elas continuam enormes e silenciosas, velando por nós. Talvez sejam auto-retratos de toda uma humanidade desaparecida. Compreendo que a sua vocação será sempre criar um espaço de beleza no interior dos outros, dos que as observam e com elas estabelecem um diálogo mudo. «Preenchem os outros com beleza», penso «será também esta a minha vocação?». Aos meus olhos deslumbrados, cada uma destas silhuetas se situa entre um kouros fora do tempo e o Ange du Méridien da Catedral de Chartres, com uma boca feita de cem bocas. Estas figuras silenciosas, estáticas e ausentes permanecerão para sempre dentro de mim.