Editorial
Um espaço de tempo
José Manuel dos Santos e António Soares

A palavra «arquitectura» é dita em português, mas sabe falar o grego antigo (e depois aprendeu latim), pois aí encontra a origem e os fundamentos dos dois termos que etimologicamente a compõem: arkhé (principal, mestre) e tékhton (construção, construtor, obreiro). Deste modo se vê que, na palavra «arquitectura», há o sentido de dirigir os operários (hoje, muitos diriam: liderar), sendo o arquitecto aquele que os dirige (lidera).

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A Igreja do Redentor em Veneza, obra de Andrea Palladio, 1592  © Fotografia: Scala, Florença

Há, assim, nesta palavra que atravessou e configurou as épocas e os espaços, a ideia de uma arte e de uma produção. Ou de uma arte de produzir (Platão e Aristóteles), através de uma técnica e de um processo que a realiza. Pressupõe ainda um saber e uma ordem que são imanentes à acção que a concretiza. Por isso, na arquitectura, o inteligível precede o sensível, e a teoria colabora com a prática, estabelecendo a sua hierarquia sobre ela: a execução (tékhton) obedece a um comando (arkhé) e a um projecto. Inscrevendo-se numa concepção do cosmos (logos) e numa visão da cidade (polis), fazer arquitectura era, para os gregos, fazer política. Mas reflectia ainda um saber divino (o divino que cria e produz mundos, seres, coisas, acontecimentos, fenómenos, harmonias, castigos, valores) e confirmava — e conformava — a relação do homem com os deuses. À ideia de um «grande arquitecto do Universo», ainda hoje activa ou, pelo menos, presente em certas ordens iniciáticas, liga-se a ideia do arquitecto como um demiurgo.

Alertada pela cultura grega, que fazia corpo com o seu corpo e olhar com o seu olhar, Sophia de Mello Breyner Andresen afirmava:

Sei que seria possível construir a forma justa
De uma cidade humana que fosse
Fiel à perfeição do universo
Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco
E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

E Sophia lembrava:

Há uma beleza que nos é dada: beleza do mar, da luz, dos montes, dos animais, dos movimentos e das pessoas. Mas há também uma outra beleza que o homem tem o dever de criar: ao lado do negro da terra é o homem que constrói o muro branco onde a luz e o céu se desenham. […] Pela qualidade e grau de beleza da obra que construímos se saberá se sim ou não vivemos com verdade e dignidade. A obra do homem é sempre um espelho onde a consciência se reconhece. […] É preciso que aquilo que vai ser construído não destrua aquilo que existe. A arte é sempre a expressão duma relação do homem com o mundo que o rodeia. A arquitectura é especificamente a expressão duma relação justa com a paisagem e com o mundo social. Fora destas coordenadas só há má arquitectura.

Na mitologia grega, Dédalo é o descobridor e o inventor de materiais, formas, volumes, espaços. É ele o arquitecto que constrói o labirinto para o rei Minos, de Creta, aprisionar o Minotauro, que foi descrito por Ovídio como «parte homem e parte touro». Mais tarde, o seu filho Ícaro voa com ele para fugirem do labirinto que o pai tinha concebido e realizado, e onde ficaram encerrados depois de Teseu ter matado o monstro.

Ignorando as advertências do pai, durante a fuga, o filho foi voando cada vez mais alto, aproximando-se do Sol. A cera de abelha, que ligava e dava consistência às penas de pássaros de que as asas eram feitas, derreteu-se, provocando a queda do fugitivo no mar sobre o qual a sua audácia voava.

Ícaro deu nome, na psicologia da personalidade, a um complexo. Este grande momento mitológico, tornado símbolo da imprudente ambição humana, foi figurado e interpretado pelo pintor flamengo Pieter Bruegel, numa pintura tornada uma obra de culto que inspirou poetas, filósofos, músicos e cineastas.

No muito interessante ensaio de investigação L’architecture dans la philosophie antique. Approches pour une anthologie [A arquitectura na filosofia antiga: Aproximações para uma antologia], da autoria da filósofa, crítica de arte e artista visual Anne Cauquelin e do arquitecto e filósofo Arnaud Sompairac, reconhece-se o vazio teórico grego sobre a arquitectura e reflecte-se sobre ele. Esta estranha ausência de textos gregos de teoria arquitectónica contrasta com uma insigne, poderosa e multiplicada prática de arquitectura, cujos monumentos, mesmo parcialmente arruinados, continuaram a representar para os séculos vindouros referências únicas e modelos maiores.

Para que assim tenha acontecido, dão os autores deste ensaio uma sagaz explicação:

Dito de outra maneira, se o discurso propriamente arquitectural não tem lugar, os seus temas, as suas finalidades, os seus meios dissimulam-se num sistema do mundo, para o qual a arquitectura, o urbanismo, são simples aplicações, exercícios que não têm outra necessidade a não ser a representação comum que os cidadãos fazem do sistema. Daí a nossa aposta: o logos da arquitectura grega está noutro lugar, nos textos de conteúdo filosófico, cosmológico, político, biológico. Em qualquer parte diferente daquela onde temos o hábito de o procurar na prática actual.

É a partir desta verificação, porventura pouco notada, e desta explicação, talvez pouco assinalada, que Cauquelin e Sompairac vão olhar a origem e a evolução do discurso teórico da arquitectura e do discurso crítico sobre a arquitectura.

A palavra grega arkhitékton passou à língua romana e tornou-se architectus. No século i a.C., o architectus romano Marco Vitrúvio Polião publicou o seu tratado Dez Livros sobre a Arquitectura, consignando nas suas páginas um grande pensamento arquitectónico e coligindo nelas os conhecimentos a legar ao futuro. Essa obra monumental, de ambição enciclopédica, assumiu uma importância fundadora, pois foi o único grande tratado clássico que sobreviveu da Antiguidade, tendo guiado e inspirado, alguns séculos depois, os arquitectos do Renascimento. Ainda hoje, a sua presença nas nossas mãos não é anacrónica, nem inútil, nem desnecessária.

Nela, o arquitecto romano enuncia os três princípios clássicos da arquitectura, a chamada tríade vitruviana: utilitas (comodidade e função), firmitas (solidez) e venustas (beleza).

Desta obra se pode dizer que é uma grande arquitectura de palavras e imagens, abrindo um rio, que não mais cessou de correr, ao discurso da arquitectura e ao discurso sobre a arquitectura.

De então até hoje, esse discurso passou a ser interminavelmente praticado por grandes arquitectos, num diálogo com o que eles próprios projectam, com o que outros edificam e com o que muitos pensam e escrevem sobre o que se vai construindo.

No Renascimento, o arquitecto Andrea Palladio, nascido em Pádua, na Sereníssima República de Veneza, somou, aos magníficos palácios, arcos, pontes, villas, igrejas e monumentos civis e religiosos que projectou e construiu, uma obra teórica e literária capital na história da arquitectura: Antiguidade de Roma, Descrição das Igrejas na Cidade de Roma e, sobretudo, Os Quatro Livros da Arquitectura. Esta obra canónica junta-se ao tratado de Vitrúvio, em cuja edição italiana do seu tempo ele também colaborou, nos livros considerados mais influentes e afamados da história da arquitectura.

De Andrea Palladio e da sua obra de arquitecto e de escritor de arquitectura, disse Goethe, na sua Viagem a Itália:

Seria preciso passar anos a contemplar uma obra destas. Creio nunca ter visto nada de tão elevado e perfeito, e estou certo de que não me engano. E pense-se no grande artista que nasceu com o sentido da grandeza e da beleza, que começou por se formar, com incrível esforço, na escola dos Antigos, para depois os fazer reviver através das suas próprias obras. […]

Torna-se cada vez mais claro o seu modo de pensar e trabalhar, à medida que vou lendo as suas obras e verificando como ele se apropriou dos Antigos; porque ele pouco se refere a eles, mas todos lhe são de enorme importância. O quarto livro, que apresenta os templos antigos, é uma introdução perfeita à maneira como se devem olhar as ruínas da Antiguidade.

(Trad. João Barrento)

Encontrar na arquitectura uma imagem, um tropo ou uma metáfora das grandes construções do pensamento e da criação tem sido frequente. Diz-se: a arquitectura narrativa deste romance, a arquitectura de tal andamento sinfónico, a arquitectura deste teorema científico, ou, agora, a arquitectura da informação, quando exploramos sites e aplicações na Internet. Pensar a arquitectura e fazer da relação entre arquitectura e pensamento as perguntas sobre a arquitectura e sobre o pensamento tem sido menos habitual.

No Livro III da obra O Mundo como Vontade e Representação, o pensamento do filósofo Arthur Schopenhauer aponta à arquitectura um olhar agudo e perscrutador, confrontando os valores da intenção estética e do fim utilitário.

Sempre a olhar para a frente do seu tempo, mesmo quando parecia estar a olhar para trás dele, Friedrich Nietzsche afirmou, em O Crepúsculo dos Ídolos, que «a arquitectura é uma espécie de eloquência do poder em formas». Esta afirmação pode ser entendida à luz da sua doutrina da vontade de poder (ou de potência). E também algumas inferências poderiam ser tiradas, para a arquitectura, da teoria nietzschiana do perspectivismo (perspectivismo ontológico ou vital e perspectivismo epistemológico ou do conhecimento).

Ludwig Wittgenstein, o grande filósofo da linguagem, levou a sua atracção pela arquitectura ao ponto de projectar minuciosamente, obsessivamente, metodicamente, em Viena de Áustria, uma casa que hoje liga o seu nome ao dele e que se tornou mítica, servindo para investigações — e até adivinhações — sobre o angustiado filósofo e a sua arrojada, complexa, enigmática, mas clarividente filosofia.

O filósofo francês Michel Foucault estudou a arquitectura como tecnologia do poder. Encontrou na organização do espaço, na utilização da luz e numa figura arquitectural imaginada, no século XVIII, pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham — o sistema e dispositivo do Panóptico — um modelo para as instituições mais vigilantes e produtoras de subjectivação das modernas sociedades de disciplina e controlo.

Por sua vez, a arquitectura do pós-modernismo suscitou nos filósofos contemporâneos uma atenção que lhes foi muito produtiva na compreensão dos mecanismos estéticos e éticos, sociológicos e ecológicos da nossa contemporaneidade. Além disso, não nos é dado pensar hoje a arquitectura sem pensarmos os contínuos, surpreendentes e imprevisíveis progressos científicos e desenvolvimentos tecnológicos com as suas inesperadas possibilidades e os seus múltiplos efeitos de várias ordens.

E também não é possível compreendermos bem a arquitectura dos séculos XX e XXI sem conhecermos o pensamento teórico de Adolf Loos, Walter Gropius e outros mestres da Bauhaus, Bruno Zevi, Le Corbusier, Frank Lloyd Wright, Alvar Aalto, Mies van der Rohe, Philip Johnson, Lúcio Costa, Alberto Sartoris, Aldo Rossi, Robert Venturi, Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi, Kenneth Frampton, Christopher Alexander, Daniel Libeskind, Mark Wigley, Peter Eisenman, Vittorio Gregotti, Álvaro Siza Vieira, Frank Gehry, Herman Hertzberger, Bernard Tschumi, Peter Cook, Zaha Hadid, Rem Koolhaas, Souto Moura, Tadao Ando e Alejandro Aravena. Mas também é fundamental ler o que disseram vozes críticas do sistema da arquitectura, como Georges Bataille, Guy Debord, Henri Lefebvre, Michel Foucault ou Pierre Bourdieu.

O alemão Ludger Schwarte, professor na Kunstakademie de Düsseldorf, é autor de um livro intitulado Filosofia da Arquitectura no qual propõe, para além de uma filosofia estética ou simbólica, uma filosofia política da arquitectura. Neste original ensaio, estuda a relação da construção arquitectónica do espaço público com os seus usos políticos, numa viagem que começa na ágora da democracia ateniense, passa por Roma, analisa detidamente a Revolução Francesa e chega à nossa actualidade. Considerando os espaços públicos como palcos da acção colectiva e teatros dos movimentos quer emancipatórios, quer repressivos, é ao centro da própria história, política, social e cultural, que se chega.

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Charlotte Perriand e a chaise longue B 306 desenhada em colaboração com Le Corbusier e Pierre Jeanneret, 1929 © Fotografia: DeAgostini Picture Library / Scala, Florença / Biblioteca Marciana, Veneza

 

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Mies van der Rohe fotografado por Fritz Schreiber, Ticino, 1933 © Fritz Schreiber

 

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O Baile da Sociedade de Arquitectos Beaux Arts no Hotel Astor, em Nova Iorque, em 1931: da esquerda para a direita: A. Stewart Walker mascarado de Fuller Building, Leonard Schultze de Hotel Waldorf Astoria, Ely Jacques de Squibb Building, William Van Alen de Chrysler Building, Ralph Walker como n.o 1 da Wall Street, D. E. Ward de Metropolitan Tower e Joseph H. Freelander de Museu da Cidade de Nova Iorque

 

É, por tudo isto, que pensar a arquitectura ou falar de arquitectura é hoje pensar e falar do poder, do saber, do imaginar, do sentir, do ter, do trocar, do construir, do destruir, do vender e do comprar. É falar do passado, do presente e do futuro. É falar de uma teoria praticada e de uma prática teorizada que não param de inventar e de se reinventar. Ainda recentemente disse Rem Koolhaas:

«Há infinitas provas de que temos de mudar. De que tudo deve mudar: a linguagem, os procedimentos, as prioridades, a estética.»

É a tudo isso que devemos estar atentos. A arquitectura (com o urbanismo e o design) vem sendo um tema ou um motivo que atravessa as edições da Electra. Desde o início, pelas nossas páginas têm passado as palavras e as imagens de arquitectos, de historiadores, de fotógrafos, de críticos de arquitectura. Entre outros, publicámos já trabalhos de Jack Self, André Tavares, Álvaro Siza Vieira, Michael Morris, Martino Tattara, Delfim Sardo, Daniel Malhão, Nuno Cera, Thomas Struth, Moisés Puente, Salvatore Settis, Pedro Levi Bismarck, Daniela Arnaut, Pedro Ignacio Alonso, Valerio Olgiati e Alireza Taghaboni.

Nesta Electra 21, continuamos a falar de arquitectura, dando a ler uma entrevista, feita pela arquitecta e crítica Ana Vaz Milheiro, ao arquitecto chileno Alejandro Aravena, Prémio Pritzker 2016. Nesta conversa, Aravena fala das relações entre arquitectura, natureza, sociedade e economia. É muito oportuno lembrar que Aravena foi o curador da inspiradora Bienal de Veneza de Arquitectura de 2016, propondo o tema «Reporting From the Front» e convocando trabalhos que lidaram com a segregação, a desigualdade, as periferias, os problemas sanitários, os desastres naturais, as crises habitacionais, as migrações, o crime, o tráfico, o desperdício, a poluição e a participação comunitária.

Foi Karl Marx quem, no Livro I de O Capital, afirmou: «A aranha executa operações semelhantes às do tecelão e a abelha supera um arquitecto ao construir a sua colmeia. O que distingue o pior arquitecto da melhor abelha é que ele figura na mente a sua construção antes de a transformar em realidade.»

François Mitterrand, que, mais tarde, quando foi Presidente da República de França, se tornaria um grande patrono de arquitectos e um activo e feliz «construtor» de grandes edifícios arquitectónicos, deu o título A abelha e o arquitecto a um dos seus primeiros livros, fazendo desta citação de Marx um manifesto de filosofia política. Muitos outros cultores de vários saberes e disciplinas adoptaram ou comentaram esta afirmação que se tornou um leitmotiv ou um lema. E talvez esta declaração não seja lida, neste tempo de reconhecimento e valorização dos direitos dos animais que é o nosso, da mesma maneira que foi lida quando o autor da obra O 18 de Brumário de Luís Bonaparte a escreveu no século XIX…

Seja como for, a observação afirmativa de Karl Marx pode e deve servir-nos de convite a desejarmos saber o que vai nas mentes dos arquitectos, de que modo é que o que lá vai se constrói, construindo novas realidades, e de que maneira se faz a passagem da ideia e do projecto à sua concretização modesta ou triunfante.

Que a arquitectura é um grande tema, sem o conhecimento do qual o mundo das várias e diferentes épocas se desconhece, não há dúvida. Que, no nosso tempo, a arquitectura como disciplina, como ofício e como sistema atingiu uma inédita e aumentada importância política, cultural, artística, económica, social e ecológica é uma verdade que não recebe contestação.

No seu tão citado e recitado ensaio «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica», Walter Benjamin afirmou:

As construções têm acompanhado a humanidade desde as suas origens. Muitas formas de arte nasceram e desapareceram. A tragédia nasceu com os gregos para se extinguir com eles; só as suas «regras» renasceram séculos mais tarde. A epopeia, cujas origens remontam à juventude dos povos, extinguiu-se na Europa com o fim do Renascimento. A pintura de cavalete é uma criação da Idade Média e nada parece garantir a sua duração ilimitada. Porém, a necessidade que o homem tem de um tecto é permanente. A arquitectura nunca foi inútil. A sua história é mais antiga do que a de qualquer outra arte, e é importante ter sempre em conta o seu género de influência quando se quer compreender a relação das massas com a arte. As construções são objecto de uma recepção dupla: pelo seu uso e pela sua percepção; ou melhor, táctil e opticamente. Não se compreende tal recepção da arquitectura se se pensar no recolhimento dos turistas diante de edifícios célebres. Porque do lado táctil não existe qualquer espécie de contrapartida para a contemplação na sua percepção óptica. A recepção táctil efectua-se menos pela via da atenção que pela do hábito. No caso da arquitectura, o hábito determina mesmo em larga medida a própria recepção óptica. Pela sua essência, ela efectua-se muito menos num estado de concentração tensa do que sob uma pressão fortuita. Mas esta recepção ligada à arquitectura tem, em certas circunstâncias, um valor canónico. É que as tarefas que se colocam ao aparelho perceptivo humano em períodos históricos de viragem não podem resolver-se simplesmente pela óptica, isto é, pela contemplação. Vão sendo progressivamente ultrapassadas sob a orientação da recepção táctil, através do hábito.

(Trad. João Barrento)

Tendo em conta esta passagem de Benjamin, tão fecunda e múltipla em sugestões de pensamento crítico, a ideia de que a arquitectura nunca foi inútil é retomada (e reaberta), nesta edição da Electra, pelo conceituado arquitecto e curador Mark Wigley, num ensaio muito original sobre a arquitectura ociosa e sobre a arquitectura da ociosidade. Este texto pode ser lido no dossier desta edição, dedicado aos temas «Ócio e lazer».

É hoje evidente que, desde a primeira metade do século XX, os regimes de lazer, na sua relação com os regimes de trabalho, sofreram mudanças que, com as transformações económicas, sociais e culturais havidas e a haver, alteraram profundamente a própria natureza do lazer, nos seus valores, práticas, modalidades e significados. Actualmente, os tempos e os espaços do lazer (e também do trabalho) são muito diferentes do que foram sendo ao longo de séculos.

Esta mutação radical institui um novo tipo de visão e de administração do tempo, constituindo-se como um dos traços que ajudam a desenhar o perfil da «nossa grande época», como, com palavras de Karl Kraus e fazendo nossa a ironia delas, chamámos ao tempo que estamos a viver.

A Electra é, como diz um dos nossos lemas, «uma revista que se lê e que se vê». Mas é também uma revista que lê e que vê o mundo e o que o faz e desfaz.

É, muitas vezes, ao «lermos e vermos» o que se projecta e o que se constrói que conseguimos extrair do mundo a imagem que rege o discurso que nele vamos projectando e que sobre ele vamos construindo.

Pode até defender-se que a arquitectura não é apenas a sua teoria e a sua prática, pois é uma causa e um efeito de muitas outras coisas e um espelho móvel que as reflecte. Associa-se a ela e ao que representa uma terceira noção — a de themata (singular: thema). Quem a concebeu e enunciou foi o físico americano, professor da Universidade de Harvard e historiador da ciência Gerald Holton, investigador e profundo conhecedor da obra e do arquivo de Albert Einstein.

Usando esta noção na arquitectura — e adequando o seu significado —, por esta palavra podem designar-se concepções, referências, métodos, percepções, termos que influenciam ou condicionam a actividade individual ou colectiva dos arquitectos. Os themata podem alcançar uma influência determinante no pensar, no sentir e no agir, estabelecendo orientações ou definindo polarizações que ganham poder sobre a actividade (investigação, criação, projecto, construção) desenvolvida por um arquitecto ou por uma comunidade de arquitectos de um determinado tempo, de um certo lugar, ou de um dado meio.

Representando valores e crenças, gerando atracções e aversões, impulsionando convicções e preconceitos, sejam de natureza estética, técnica, estilística, artística, sociológica, política, religiosa, os themata são quase sempre inconscientes ou involuntários e quase nunca explícitos ou enunciáveis nas conferências, nas publicações ou nas exposições sobre arquitectura, mas influenciam e condicionam poderosamente a actividade teórica e prática da arquitectura, interferindo quer na construção de teorias próprias, quer na reacção (de aceitação ou rejeição) às propostas ou soluções alheias, sejam conceptuais ou práticas.

Como esclarece o investigador em filosofia da ciência João Barbosa, no seu artigo sobre themata e paradigmas, os themata têm uma índole simultaneamente intelectual e emocional, subjectiva e objectiva, funcionando como guias, consignas, orientações, predisposições, preferências, crenças, memórias, fascínios, ditames. São motivos persistentes, ligam a arquitectura a diversas disciplinas, à sua história passada e ao contexto presente dela e das outras.

Como refere ainda este investigador, os themata estão sujeitos a ciclos de ascensão e declínio, de afirmação e de ocultação. Atravessam vários domínios do saber e da cultura. Tocam o inconsciente colectivo de Jung e a episteme de Foucault. Têm uma vida longa e uma vocação transversal e até universal. Funcionam muitas vezes num fundo cultural comum, quer singularmente, quer em pares dialécticos de antíteses (thema / antithema), como, por exemplo, as díades fixo-móvel ou sonho-realidade, quer em tríades, como maior-igual-menor.

O mesmo thema pode ser reconhecido em disciplinas tão diversas como a arquitectura, a psicologia, a literatura, as ciências ou as artes visuais. Assim, por exemplo, a simetria é um thema recorrente e fundamental na arquitectura, na física, na matemática, nas artes plásticas. Outro exemplo: a harmonia é um tema fundamental na arquitectura, na saúde, nas artes plásticas e decorativas, na música, na psicologia, na religião, na política.

Não é possível, depois do Romantismo, falar de arquitectura e do imaginário que lhe corresponde, esquecendo o sonho que nela fermenta como num vinho. Para termos a lembrança disso, bastam-nos os oníricos e audaciosos castelos mandados erguer pelo rei Luís II da Baviera. Fernando Pessoa, a quem Eduardo Lourenço chamou «Rei da nossa Baviera», deixou-nos no Livro do Desassossego esta pergunta ao mesmo tempo melódica e melancólica: «De que coisa essencialmente divina são os castelos que não são de areia?»

Ao longo da história da literatura, muitos escritores fizeram da arquitectura um dos vislumbres fundamentais das suas obras. Um dos conhecidos colóquios do Cerisy foi dedicado, em 2014, ao tema «Arquitectura e literatura».

Até já houve quem, com excessivo voluntarismo e exagerado simplismo, distinguisse e classificasse os escritores em duas categorias: os que são escritores do espaço e os que são escritores do tempo. Seja como for, nas obras de muitos escritores do século XX, a arquitectura assume-se como um tópos fundamental.

Entre vários outros escritores, podemos mencionar Marcel Proust, Franz Kafka, Robert Musil, Virginia Woolf, André Gide, Louis Aragon, Jorge Luis Borges, Julien Gracq, Marguerite Yourcenar, Georges Perec, Julio Cortázar, Italo Calvino, Michel Tournier, José Saramago, Yukio Mishima ou Bret Easton Ellis.

Numa das Seis Propostas para o Próximo Milénio, Italo Calvino fala surpreendentemente da sua obra literária como, com a adequada adaptação terminológica, um arquitecto poderia falar da sua obra de arquitectura:

Na realidade, a minha escrita sempre se debateu entre dois caminhos que correspondem a dois tipos diferentes de conhecimentos: um que se move no espaço mental de uma racionalidade incorpórea, em que se podem traçar linhas que conjugam pontos, projecções, formas abstractas, vectores de forças; e o outro que se move num espaço repleto de objectos e tenta criar um equivalente verbal daquele espaço enchendo a página de palavras, com um esforço de adequação minuciosa do escrito ao não-escrito, à totalidade do dizível e do não dizível.

(Trad. José Colaço Barreiros)

Já se afirmou que Em Busca do Tempo Perdido, a inesgotável obra de Marcel Proust, é percorrida por um constante «desejo de arquitectura». Já se disse também que ela própria é, na sua construção complexa e enigmática, uma grande catedral. Foi Proust quem, descrevendo a igreja de Combray, afirmou: «Tudo isso faz dela um edifício ocupando, se se pode dizer, um espaço a quatro dimensões, sendo a quarta a do tempo.»

E assim, por uma daquelas mágicas correspondências ou milagrosas comunicações, é como se o físico Albert Einstein falasse pela boca de Proust.

Talvez por isso se possa, afinal, dar a todos os edifícios que os arquitectos concebem na sua mente, e depois edificam na parte do mundo que lhes é concedida como uma oportunidade, as quatro dimensões de Proust e Einstein. Com elas, o tempo apropria-se do espaço para nos fazer ver melhor e mais nitidamente a sua face mais visível.

lina bo bardi

Lina Bo Bardi fotografada na sua Casa de Vidro, São Paulo, 1952 © Instituto Bardi / Casa de Vidro, São Paulo