Assunto
A arquitectura nunca foi inútil
Mark Wigley

Num texto muito original escrito para este dossier da Electra, o arquitecto, historiador, teórico e crítico Mark Wigley, autor de uma obra que se tornou notada pela novidade das questões que levanta e pela audácia das suas relações com a arte, a filosofia, a cultura e a tecnologia, fala da atitude conceptual da arquitectura, como possibilidade de actividade, perante a ociosidade. Wigley tem sido professor em prestigiadas universidades, como as de Princeton e de Columbia, nos EUA. Comissariou exposições em vários museus, entre os quais o MoMA de Nova Iorque, onde foi apresentada a exposição de referência «Deconstructivist Architecture» (com Philip Johnson). Em 2005, fundou, com Rem Koolhaas e Ole Bouman, a Volume Magazine.

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Wanda Pimentel, Envolvimento, 1969 © Fotografia: Marco Terranova / Cortesia Beatriz Pimentel

 

Existirá uma arquitectura do ócio? Não apenas uma arquitectura para os ociosos, mas uma arquitectura que produza, fomente, preserve e intensifique a ociosidade? Ou será uma contradição nos termos falar em «arquitectura ociosa»? Afinal de contas, a arquitectura é um pôr-ao-trabalho. Ela define os espaços para a actividade. Qualquer espaço definido — e a definição pode ser tão delicada como uma linha pontilhada ou uma mudança na cor, na luminosidade, na textura, na temperatura, na humidade, no som ou no nível do piso — promove actividade, mesmo que a acção seja relaxamento, sono, meditação, isolamento ou fuga. Não se trata simplesmente de coreografar as acções moldando, encadeando ou encaixando espaços. O espaçamento é o que torna a acção possível, é ele que a inspira, ou até que a impõe. A arquitectura é possivelmente o preciso oposto da ociosidade.

Em bom rigor, a arquitectura é a possibilidade da actividade. Uma «sala de jantar», por exemplo, não é apenas o espaço designado para jantar, mas a sua possibilidade. Jantar, enquanto algo distinto de comer, só pode acontecer num determinado espaço. Jantar fora de portas requer que se trate parte do exterior como uma sala. Requer arquitectura. Esta possibilidade de actividade suscitada por um espaço precede e acompanha qualquer acção. Ou, ao contrário, as actividades de jantar imaginadas, num certo sentido, decorrem sempre nos espaços a elas dedicados. A ideia do jantar condiciona qualquer acto de jantar ou não-jantar no mesmo espaço. Dormir numa mesa de jantar não é o mesmo que dormir noutra mesa qualquer. Sexo em cima da mesa de jantar — não é por acaso que é um elemento central de tantos filmes — retira o seu impacto da intrusão na ideia do jantar e de todos os seus protocolos, equipamentos, simbolismos e civilidades altamente estruturadas. Inversamente, um acto de jantar que não viole pelo menos parcialmente uma expectativa relativa ao jantar talvez nem chegue a ser um acto, da mesma maneira que a respiração só é uma acção consciente quando é difícil, ruidosa, malcheirosa, irregular, aumentada, amplificada por um microfone, interrompida, ou quando pára.

Como afirmou Walter Benjamin em 1935, a arquitectura é habitualmente recebida «na distracção». Não é um objecto escrutinado com uma atenção focada e consciente, mas sim um ambiente que habitualmente se detecta apenas de maneira inconsciente. Tal como água para um peixe, ela envolve a nossa espécie hapticamente em todos os momentos, e tem-no feito desde o início «como uma força viva». Outras artes chegaram e partiram. «Porém, a necessidade que o homem tem de um tecto é permanente. A arquitectura nunca foi inútil.»1 É invisível precisamente por ser tão activa. Talvez um espaço só seja apercebido enquanto tal na medida em que se desvia das expectativas que instalou. Em contrapartida, actos que desligam do espaço, como a meditação, paradoxalmente requerem a construção de um espaço particular usando o corpo e o ritmo da respiração ou de cânticos, antes ainda do arsenal de tapetes e bancos, dos nichos tranquilos ou dos edifícios religiosos. O sono profundo, é claro, tem as suas próprias arquitecturas elaboradas.

A dança entre arquitectura e actividade é ela mesma um turbilhão contínuo. A arquitectura é em grande parte um repositório de linhas rectas, mas não é por isso que a sua relação connosco é linear. Para crer que a arquitectura coreografa a actividade de uma maneira simples é preciso não estar interessado nela.

"Como afirmou Walter Benjamin em 1935, a arquitectura é habitualmente recebida na distracção. Não é um objecto escrutinado com uma atenção focada e consciente, mas sim um ambiente que habitualmente se detecta apenas de maneira inconsciente."

Para acrescentar a esta espiral de complicações, a arquitectura é totalmente activa até mesmo quando desocupada, e não é necessariamente mais activa quando ocupada. De facto, as acções humanas estão na sua maioria tão sincronizadas com os espaços a elas dedicados que são paradoxalmente uma forma de inacção. Inversamente, a aparente estase no interior dos espaços e em torno deles, os momentos de quietude, podem tornar-se acções. O próprio vazio, a sensação de que uma sala, um edifício ou uma rua deixaram de ser usados, ou são assombrados por actividades que não estão a acontecer, pode ser intenso, até mesmo avassalador. Isto para dizer mais uma vez que a ociosidade subverte a arquitectura, aterroriza-a até. A arquitectura não é apenas o oposto da ociosidade. Ela é construída sobre o medo da ociosidade. É o aspecto que esse medo tem.

Se arquitectura ociosa ou arquitectura do ócio são noções contraditórias, o mesmo se aplica ao arquitecto ocioso. Não é por acaso que Le Corbusier, o mais importante arquitecto da modernidade, abre em 1923 o mais célebre manifesto da arquitectura moderna com uma denúncia do arquitecto «ocioso» desencantado, já sem «nada para fazer» pela sua indisponibilidade para abordar as novas realidades das tecnologias industriais.2 O manifesto procurava pôr o arquitecto de volta ao trabalho, abraçando as suas novas formas — máquinas, estatística, arquivos, aviões, circuitos eléctricos e rádio. A própria modernidade clamava pelo ofício singular do arquitecto, e a arquitectura não tem limites para os arquitectos activos. Tudo exige uma definição, seja no solo, no ar ou no espectro electromagnético. O arquitecto está sempre a trabalhar, e o seu trabalho é pôr as coisas a trabalhar. É uma figura permanentemente irrequieta. Os arquitectos não têm um horário de trabalho porque todas as horas são de trabalho. Não têm tempo para fins-de-semana. Não se reformam. É frequente morrerem no atelier, ou em estaleiros de obra, ou em viagem de um para outro. Louis Kahn, o arquitecto americano mais destacado da sua geração, costumava dormir em pequenos intervalos durante o dia enquanto leccionava até às dez e meia da noite, hora a que começava o verdadeiro trabalho. A roupa que vestia era sempre elegante, ainda que amarrotada, o que o tornava uma espécie de representação portátil permanente do arquitecto irrequieto. Em Março de 1974, enquanto viajava de volta para o seu escritório em Filadélfia vindo de Amedabade, onde visitou o local destinado a uma futura escola de gestão, foi encontrado morto pela polícia, vítima de um ataque cardíaco, numa casa de banho pública nos pisos inferiores da Penn Station. Como não sabiam quem era, o corpo ficou na morgue por identificar durante três dias, mas os quatro desenhos de um projecto para o parque da Roosevelt Island encontrados na sua pasta viriam a ser concretizados 38 anos mais tarde, como se o arquitecto tivesse continuado a trabalhar.

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Wanda Pimentel, Envolvimento, 1969 © Fotografia: Marco Terranova / Cortesia Beatriz Pimentel

 

"A arquitectura não é apenas o oposto da ociosidade. Ela é construída sobre o medo da ociosidade. É o aspecto que esse medo tem."

Os arquitectos projectam constantemente a aura de uma capacidade desumana para absorver as infindáveis exigências de uma síntese dinâmica multidimensional de forças, políticas, protocolos, tecnologias e desejos aparentemente incompatíveis. As imagens de um Mies van der Rohe exausto, em posição fetal num banco de pedra em Pura, na Suíça, em 1933, ou de Buckminster Fuller estendido na relva junto ao Black Mountain College em 1948, não são imagens de repouso. São imagens polémicas de trabalho heróico. As escolas de arquitectura preservam, de maneira patológica, uma cultura de exploração até à exaustão, com todas as suas mitologias. É fácil identificar a faculdade de arquitectura em qualquer universidade, porque as luzes estão todas acesas a meio da noite. Um arquitecto ocioso não é um arquitecto. A educação arquitectónica é um programa bio-psico-tecnológico de redução da ociosidade.

Estes paradoxos que organizam tanto a arquitectura como a espécie arquitectónica estão já embutidos no conceito de ociosidade — que é algo para lá do repouso, do relaxamento ou do lazer. O repouso, por exemplo, é apenas outra actividade, e é até parte da actividade que interrompe. O sono é essencial para as actividades diárias do corpo e do cérebro, ele mesmo é uma actividade complexa. De facto, o cérebro nunca está mais activo do que durante as fases mais profundas do sono, em que a memória e a cognição são reconstruídas juntamente com o sistema imunitário. O trabalho singular do sono é fazer o corpo e o cérebro funcionarem. Não é um tempo morto; pelo contrário. Da mesma maneira, o lazer é sempre trabalho árduo, até mesmo uma parte crucial do trabalho propriamente dito; e não apenas devido à longa série de indústrias, tecnologias, edifícios, paisagens, conhecimento especializado, energia, regulamentos, educação e políticas a ele devotados na economia contemporânea. De qualquer maneira, tudo isto é visto como essencial à eficiência do trabalho. O lazer é suposto fortalecer a capacidade do trabalhador de trabalhar. A indústria do lazer é um elemento fulcral da própria industrialização; o lazer é um investimento económico. Indivíduos, instituições, empresas e governos esforçam-se por investir mais e mais em não trabalhar. Devota-se uma energia tremenda às actividades «não produtivas» em nome da produção. O lazer permite extrair mais do trabalho, além de ser ele mesmo laborioso. A invenção do dia de trabalho e do fim-de-semana tinha como objectivo servir o trabalho e impedir a revolução, instalando uma ecologia da industrialização maciça que é sustentada, defendida e anestesiada pelo lazer. O lazer é a um tempo distracção e intensificação. Devota-se um trabalho e uma energia colossais à ilusão de temporariamente não se trabalhar.

1. Walter Benjamin, «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnica», Modernidade, Trad. João Barrento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2017, p. 238.
2. Le Corbusier, Toward an Architecture, Los Angeles: Getty Publications, (1923) 2007, p. 94.

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