Assunto
Franco «Bifo» Berardi: «O lazer foi engolido pela produção de valor.»
António Guerreiro

Figura importante do pensamento italiano da «autonomia», Franco «Bifo» Berardi é autor de lúcidas reflexões sobre o regime de trabalho e sobre os modos de produção de significação e de valor na época do capitalismo cognitivo. Esta entrevista, feita em Lisboa, depois de uma conferência no Teatro do Bairro Alto, é um breve percurso por estes territórios teóricos.

Franco Berardi, mais conhecido por «Bifo», é um filósofo italiano, autor de uma obra imensa e plural que incide sobretudo sobre o funcionamento do capitalismo pós-industrial e as suas transformações operadas pelas tecnologias da comunicação que estão na base daquilo que ele designa com o conceito de «semiocapitalismo», caracterizado por um substituição da vida real pelos signos, pelos simulacros e pelos algoritmos. Filosofia, teoria política, sociologia, psicanálise, teoria da comunicação na época da digitalização: estes são os territórios onde Franco Berardi se move para identificar os sintomas e as características profundas do mundo em que vivemos.

A sua ligação ao operaismo italiano ou, melhor, ao movimento da Autonomia (designação preferida por Franco Berardi, e que é sem dúvida menos restritiva e mais adequada) e às figuras desse movimento, tais como Toni Negri e Mario Tronti, constitui a sua inscrição político-teórica fundamental que coloca no seu centro as noções de trabalho e de classe. O seu primeiro livro, publicado em 1970, chamava-se precisamente Contro il lavoro.

Podemos ler nesta entrevista uma análise ao regime contemporâneo do trabalho, de onde decorrem também algumas considerações sobre o lazer. Trabalho e lazer: eis uma dicotomia que ocupa um lugar central no tema de que nos ocupamos neste dossier.

wanda pimentel

Wanda Pimentel, Envolvimento, 1975
© Fotografia: Marco Terranova / Cortesia Beatriz Pimentel

 

ANTÓNIO GUERREIRO  Teve uma participação importante e muito activa no movimento italiano Autonomia Operaia. A herança do operaismo, no regime contemporâneo do trabalho, tem ainda actualidade?

FRANCO BERARDI  É uma enorme questão, essa da actualidade, e interessa-me muito. Direi que há uma actualidade do conceito de rejeição do trabalho, que é o que na Autonomia define a posição do trabalhador face à sua actividade assalariada. O conceito de rejeição do trabalho permanece actual porque, em geral, não trabalhamos pela utilidade ou por retirarmos prazer do que fazemos. Trabalhamos porque precisamos de um salário e para o ter somos obrigados a dedicar o nosso tempo de vida à máquina de produção de valor. Neste sentido, a questão fundamental do operaismo e da Autonomia permanece actual, e a relação com o trabalho continua a ser de alienação. Mas tudo o resto mudou: mudaram as formas da prestação assalariada e, primeiro que tudo, mudaram as relações com a continuidade do trabalho, emergiu a precariedade. O conceito de precariedade é um conceito que nasce num âmbito do pensamento da Autonomia. Mas o que significa trabalho precário? Naturalmente é, antes de mais, uma questão de tipo jurídico, em que a relação entre o trabalhador e o patrão é sem continuidade, em que há uma enorme fragilidade da condição do trabalhador, a erosão, a desintegração da solidariedade entre trabalhadores. Ainda quanto à actualidade: no plano analítico, há uma continuidade profunda com a análise operaista, mas no plano político não. O operaismo fundava-se na ideia de que na fábrica existia uma força política que é a solidariedade. Mas isso já não existe. A subjectividade do trabalho foi destruída por esta precarização. O que está a acontecer em França é muito interessante. Mas a França tem uma tradição política que, para além das relações de trabalho, permite realizar uma solidariedade que é uma solidariedade política. Mas em geral a precariedade destruiu as condições para a subjectividade autónoma do trabalho. Devemos perguntar: será possível a reconstrução de um movimento do trabalho? Por agora, a resposta tem de ser «não», não há condições para isso. 

AG  E quanto ao lazer, como é que ele foi tomado pela máquina que descreve? Qual é o estatuto do regime do lazer, hoje?

FB  É preciso perguntar se o lazer ainda existe. Por um lado, pode-se dizer que o lazer aumentou enormemente porque se passa todo o tempo na troca de signos, que é uma condição do lazer. Mas não é verdade que tenha aumentado, pois nós produzimos signos em condições que não determinámos e com uma finalidade que não é a do lazer, mas a da produção, do salário. O tempo livre, num certo sentido, já não existe. Todo o tempo está submetido à condição da produção semiótica para a acumulação de valor. A digitalização produziu paradoxos como este da perda de uma dimensão de autonomia. O lazer tornou-se uma dimensão envolvente, foi engolido pela produção de valor. Pensemos no turismo de massa, favorecido por plataformas como a Ryanair e o Airbnb. É evidente que isso alarga a possibilidade de a massa viajar, conhecer as cidades, etc. Mas trata-se verdadeiramente de um enriquecimento ou antes de um trabalho suplementar que permite à economia de certos países prosperar, ainda que a qualidade de vida das pessoas se degrade?

"O tempo livre, num certo sentido, já não existe. Todo o tempo está submetido à condição da produção semiótica para a acumulação de valor."

wanda pimentel

Wanda Pimentel, Envolvimento, 1969
© Fotografia: Marco Terranova / Cortesia Beatriz Pimentel

 

AG  E, no entanto, a grande utopia do nosso tempo é que a digitalização pode dar-nos finalmente muito mais tempo livre ou até mesmo libertar-nos do trabalho.

FB  No célebre Fragmento sobre as máquinas, que considero o mais importante texto de toda a obra marxiana, Marx utiliza a expressão, em inglês, «general intellect» para falar do conhecimento como factor de libertação em relação ao trabalho assalariado. Este fragmento sobre as máquinas, como sabemos, é uma das grandes referências do pensamento operaista italiano. Mas há aí uma ambiguidade que Marx não pôde imaginar. É verdade que o conhecimento liberta da fadiga do trabalho, mas o problema é: quem faz a gestão da técnica que torna possível a transformação do trabalho em actividade semiótica? É o capital. E sob a condição do capital, o trabalho semiótico e a técnica não funcionam como factores de libertação, funcionam como criações de um novo trabalho. Onde está a armadilha? Creio que está na expectativa que o capitalismo produziu, que é uma expectativa de constante expansão. Expansão do capital, expansão da produção, expansão do consumo, pelo que somos incapazes de experimentar a fruição do tempo. Somos forçados continuamente a pensar que o tempo que vivemos deve ser para acumular: acumular valor, acumular capital, mas também para acumular consumo, para consumir mais. Ora, o consumismo não é uma coisa marginal na história do capitalismo, é aquilo que obriga a reentrar constantemente numa relação de dependência assalariada, numa relação de trabalho. A técnica liberta do trabalho, o problema é que ao mesmo tempo, sob a condição do capital, a técnica cria constantemente novas necessidades, novos trabalhos. Creio que o conceito que o operaismo não chegou a pensar é o conceito de «frugalidade». Nos anos 60 e 70 o tema político geral era «mais salário e menos trabalho». E isto traduzia-se na ideia de que os operários querem sempre mais. O que é que significa querer sempre mais, querer tudo? Nós não temos necessidade de tudo. O que faltou foi uma verdadeira crítica do consumo…

"A técnica liberta do trabalho, o problema é que ao mesmo tempo […] a técnica cria constantemente novas necessidades, novos trabalhos."

AG  Algo que o movimento sindicalista parece não ter percebido ainda…

FB  Pois não. Recordo-me das discussões na década de 70 sobre o tema o consumo. O operaismo italiano refutava a crítica do consumo. Porquê? Porque entendia que os operários tinham razão em querer consumir mais. Mas isto, antropologicamente falando, para além da esfera sindical, da esfera da luta operária imediata, é um erro conceptual. Perdemos de vista a questão da utilidade. A frugalidade parece um conceito religioso, cristão, e por isso não agradava ao pensamento operaista.

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