Assunto
O gosto pela teoria
Geoffroy de Lagasnerie

O filósofo e sociólogo francês Geoffroy de Lagasnerie explora neste artigo o facto de o objecto dos seus investimentos intelectuais nunca ter sido a literatura, mas sim a teoria. Essa sua condição pessoal fornece-lhe um motivo para analisar o que significa, tanto no plano do conhecimento como no plano libidinal, a atracção pela teoria.

Albert Oehlen

Albert Oehlen, Captain Jack, 1997 © Fotografia: Archive Galerie Max Hetzler Berlim, Paris, Londres / DACS / SPA, Lisboa

 

1.

Desde que me lembro, desde que tenho idade para me orientar livremente na cultura, de escolher os livros que queria ler e de não me contentar com aqueles que me eram impostos pela escola, senti sempre um gosto quase exclusivo pela teoria. A partir dos dezasseis ou dezassete anos, as minhas leituras viraram-se quase unicamente para a filosofia e a sociologia, por vezes para o direito e a economia. Praticamente não desenvolvi qualquer gosto pela literatura, pela leitura de romances ou de poesia, e senti sempre um certo desinteresse pela história, disciplina que mantém uma relação estreita com a escrita literária e que constitui a mais literária (por ser a mais narrativa) das ciências humanas. Os meus amigos nunca me oferecem romances no Natal ou no meu aniversário, visto que, como dizem, «não vale a pena dar romances ao Geoffroy, que ele nunca os lê».

Quando era adolescente, vivia com os meus irmãos e a minha irmã em casa do meu padrasto (o novo companheiro da minha mãe depois de se divorciar do meu pai), onde dispunha de uma biblioteca bastante grande, que continha tanto romance como ensaio. E quando me punha à procura de um livro para me entreter, inclinava-me sempre para as obras teóricas ou políticas, e especialmente para os textos de Marx, Lénine, Bakunin, que o meu padrasto possuía desde a época em que fora um estudante de esquerda.

Essa orientação para a actividade teórica não se limita ao domínio dos livros. Constitui uma orientação geral na vida, e em especial na vida cultural. Na minha existência, a teoria ocupa o lugar que, para outros, ocupa a literatura, o teatro ou a arte. Da mesma forma que praticamente nunca leio um texto literário, ou então só os que formalmente se assemelham a ensaios (Kertész, Bernhard, por vezes Hrabal), aborreço-me nos museus e não sinto qualquer gosto particular pela arte. Aquilo que alguns encontram nos romances, na poesia, na pintura, eu encontro na teoria. Esta inclinação muitas vezes leva-me a sentir-me deslocado em relação aos gostos dos outros. Da mesma forma que nunca percebi porque é que as classes populares se viram para a extrema-direita ou para a direita e não para a extrema-esquerda quando se desiludem com um governo de esquerda moderada, também não percebo porque é que tão poucos se sentem atraídos, excitados e emocionados com a teoria. Porque é que a teoria não produz a mesma intensidade e o mesmo fervor público que produz uma exposição ou uma peça de teatro?

2.

Quando se fala de «gosto», tende-se a associar essa noção a práticas que, no inconsciente social, são da esfera do corpo ou dos afectos (a arte, a literatura, a cozinha, a decoração, o sexo) e não a actividades como a filosofia, porque esta última está associada à razão ou ao espírito. Mas gostaria aqui de me libertar de teoriauma divisão fictícia como essa e colocar a questão da teoria como uma questão de gosto: de que é que gostamos quando gostamos de teoria? Que é que está em jogo quando se investe os afectos, as emoções, as preferências em textos de sociologia, de filosofia ou de economia, ao invés de o fazer em pintura ou em romances? Quais são os efeitos da teoria sobre quem a lê e quem a escreve? Gostaria de tentar esclarecer o que se poderia designar como os princípios fundamentais da libido teórica. Que é que pode explicar a preferência por um livro de Bourdieu, de Adorno ou de Freud, o facto de sentir um certo thrill ao lê-los, e, por outro lado, um extremo aborrecimento perante um romance ou uma banda desenhada? E visto que em mim — e isso, pude constatar, é bastante comum — o gosto pela teoria se desenvolveu em detrimento de um gosto pela arte ou pela cultura, tal como o gosto pela arte e pela literatura frequentemente se desenvolve contra o gosto pela teoria, é possível identificar oposições entre estas duas preferências, como dois géneros de psiquismos que se opusessem, duas psicologias. 

"A universidade não é o lugar certo para a teoria. Ela é inclusive atravessada por pulsões anti‑intelectuais extremamente fortes."

oehlen

Albert Oehlen, Sem título, 1992–2005 © Albert Oehlen / Fotografia: Archive Galerie Max Hetzler Berlim, Paris, Londres

 

3.

Ao afirmar a possibilidade de conceber a teoria como um objecto legítimo de investimento libidinal, ao nível da arte ou da cultura, antes de mais quero questionar uma hierarquia presente de um modo implícito no nosso mundo. A sociedade na qual vivemos parece profundamente marcada por o que se poderia designar como uma degradação simbólica da actividade teórica em relação à arte ou à literatura. Acontece-me encontrar vários pintores, artistas, cineastas que dizem abertamente nunca terem lido filosofia ou sociologia, ao passo que os mesmos são capazes de me olhar com estranheza quando digo que raramente entro num museu ou leio um romance. Como se, no nosso mundo, fosse aceitável prescindir da teoria, mas não da arte ou da literatura… Como se se estivesse a perder algo ao passar ao lado da experiência artística, mas não acontecesse o mesmo se se passar ao lado da teoria. Um artista ficará sempre ligeiramente aborrecido por um filósofo não ir à sua exposição ver as suas obras, mas não se sentirá ele próprio obrigado a ler um livro de teoria. A teoria não é considerada um objecto de gosto e de cultura, mas, sim, ora um trabalho reservado a uma profissão especialista, ora um gosto dispensável, secundário, uma espécie de hobby não essencial, parasitário.

Poder-se-ia ter a tentação de explicar essa distância para com a teoria através da dificuldade de acesso a esse tipo de produção. Mas aqueles que alardeiam uma distância para com a teoria têm também muitas vezes tendência para privilegiar as obras literárias, cinematográficas ou artísticas que se apresentam como esotéricas e de acesso difícil, e cujos códigos para a compreensão são na sua maioria tão elaborados como aqueles que é preciso dominar para se aceder a uma obra teórica. Se a dificuldade é aceitável e se o facto de não se compreender tudo espontaneamente é valorizado quando se trata de arte, porque é que não se observa a mesma atitude para com a teoria? Se a distância para com a teoria só pode ser explicada pela sua dificuldade, que é que essa distância traduz? Poderá ela ser o sintoma da existência de um anti-intelectualismo extremamente poderoso na nossa cultura?

4.

Se quisermos compreender as emoções e as ligações sensíveis que a teoria pode produzir, antes de mais é preciso não a confundir com a forma que esta assume, em grande parte, na universidade. A produção académica oferece uma imagem mutilada do trabalho teórico. Há uma diferença profunda entre a essência da actividade teórica tal como esta se pode desenvolver entre os autores mais distintos e aquilo que se fabrica enquanto discurso filosófico ou sociológico no campo académico. Foucault dizia, e além do mais com razão, que nos devíamos questionar se a tendência da universidade para tornar o conhecimento em algo triste, aborrecido, não deveria ser vista como uma tecnologia política destinada a desviar as pessoas do conhecimento e dos efeitos de libertação que daí podiam decorrer. A universidade não é o lugar certo para a teoria. Ela é inclusive atravessada por pulsões anti-intelectuais extremamente fortes. A organização da investigação universitária realiza-se através da constituição de circuitos restritos e especializados de discussão ou de publicação obcecados com a questão do método e da conformidade. O espírito deve autoconstranger-se, mutilar-se, impor-se limites para conseguir inscrever-se neles. Nas suas «Notas sobre as ciências humanas e a cultura», Adorno sublinha que essa obsessão com a conformidade e o controlo na universidade tem por consequência que o espírito ganhe tendência para perder, nela, a sua especificidade: a imaginação, a espontaneidade, a liberdade são aí reprimidas. Como exemplo típico desta tendência, cita a observação de um professor que diz a um estudante: «Não está aqui para pensar, mas para investigar.» Dito de outro modo, aquilo a que chamo «teoria», e a que também se pode chamar «pensamento», deve ser considerado como uma prática que se desenvolve fora dos limites da investigação académica — tal como a pintura ou a literatura modernas historicamente se constituíram contra as tutelas académicas.

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