Passagens
Annie Ernaux: «A época em que eu era uma jovem ficou-me na memória como a época das coisas sem nome. São terríveis, essas coisas sem nome.»*
Simonetta Greggio

A partir de uma passagem da entrevista que a escritora francesa Annie Ernaux, consagrada com o Prémio Nobel da Literatura em 2022, lhe concedeu, em 2021, para uma revista, a romancista, tradutora e jornalista italiana Simonetta Greggio fala do contributo fundamental da obra e das posições públicas de Ernaux para dar nomes a coisas sem nome, porque a sua existência era negada, escondida ou ignorada.

louise bourgeois

Louise Bourgeois, Le lit, gros édredon (with lips), 1997 © The Easton Foundation / VAGA, Nova Iorque

 

«Quando se faz desaparecer uma pessoa, quando se destrói um país, é uma língua que está a ser assassinada.» Estas palavras, proferidas por Pinar Selek — escritora turca presa e torturada no seu país pelas suas actividades pró-arménias e hoje exilada em França —, tiveram um efeito especial sobre mim. Lembraram-me as do meu pai quando, à falta de outras ameaças, antes de bater-me, me dizia: «Cala-te, ou corto-te a língua!»

Nas Metamorfoses de Ovídio, Tereu aprisiona Filomela e corta-lhe a língua antes de molestá-la, para que ela não possa denunciá-lo a Procne, mulher de Tereu. Mas Filomela faz chegar a Procne um pano onde bordou o rosto de Tereu, identificando-o pelo nome. Como vingança, Procne mata o seu filho mais novo, corta-o aos bocados, assa-o e serve-o de jantar ao seu marido.

Os laços entre violência, silêncio e morte existem desde sempre nos mitos da humanidade.

«Ma era solo un modo di dire» — mas era só uma maneira de falar —, diz-se, na minha família, quando se fala do que me aconteceu na adolescência. Fui obrigada a abandonar a minha casa de infância e o meu país para fugir à violência do meu pai. «Un modo di dire»? Para mim, o que essa expressão quer dizer é que, quando as palavras faltam, a agressão toma o seu lugar.

Dupla constatação: aquela que fala é perigosa. Aqueles a quem faltam as palavras batem. A palavra dita expõe. A palavra mata — mata.

"As palavras são monstruosas. Elas revelam os segredos. Obrigam a observar, a ver. Criam uma barreira entre um antes e um depois."

Lembro-me das discussões ferozes com uma querida amiga — as mesmas discussões que ressurgem continuamente quando estou com a minha mãe: o que tu fazes, afirmam elas, é obsceno. Dizer as coisas (pior: escrevê- ‑las) é indecente. O obsceno — ob-sceno, o que não está em cena — da minha escrita seria, na melhor das hipóteses, indelicado ou impudico e, na pior, repugnante, ou até mesmo pornográfico. O ob-sceno refere-se, obrigatoriamente, àquele — àquela — que mostra. «Che mostra». Não são os actos que são monstruosos, mas as palavras que denunciam esses actos. Expulsa-se o mensageiro para não ter de se ouvir a mensagem.

As palavras são, portanto, monstruosas. Elas revelam os segredos. Obrigam a observar, a ver. Criam uma barreira entre um antes e um depois.

Chamar as coisas pelo nome é nomear as etapas da consciência, chamar as realidades ao nosso coração, ao nosso espírito, à nossa própria memória; é uma aventura aterradora e fortificante, onde o pensamento e o coração participam num mesmo movimento, onde as emoções e as reflexões se desafiam — se dilaceram. Porque encontrar as palavras é fazê-las emergir em nós. Elas já lá estão, as palavras, como que escritas com tinta invisível: ao fazer arder o material que nos constitui, elas revelam-se.

* Entrevista a Annie Ernaux por Simonetta Greggio, Marie Claire, 08.03.2021.

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