Primeira Pessoa
Jonathan Crary: práticas de recusa radical
Afonso Dias Ramos

Uma década depois de ter lançado 24/7, um celebrado ensaio sobre o modo como o sistema económico contemporâneo nos obriga a trabalhar 24 horas por dia e 7 dias por semana, abolindo a possibilidade de parar ou mesmo dormir, o teórico norte-americano Jonathan Crary conversa com a Electra sobre o livro que acaba de publicar, Terra Queimada, uma análise devastadora de como a era digital não só não trouxe consigo a mudança radical que anunciou em tempos, como se revelou incompatível com a ideia de um planeta sustentável e da interdependência entre seres humanos.

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À medida que a utopia dos dias iniciais da Internet parece ser uma miragem cada vez mais distante, não têm faltado nos últimos anos condenações aos custos e consequências de uma vida online. Após o sucesso internacional de um pequeno ensaio sobre a diminuição do sono e o espectáculo ininterrupto da vida tecnocrática na modernidade, 24/7: O capitalismo tardio e os fins do sono (2013), Jonathan Crary regressa com um dos ataques mais implacáveis ao capitalismo digital no livro Terra Queimada: Da era digital ao mundo pós-capitalista (2022). «Se houver um futuro habitável e partilhado no nosso planeta», afirma na primeira linha deste panfleto, «será um futuro offline, desligado dos sistemas e das operações de destruição do mundo do capitalismo 24/7». Este livro irreverente sustenta a ideia de que a era digital significa tanto a desintegração social como o colapso ambiental. Atingimos a fase terminal do capitalismo global, de acordo com Crary, que trocou o detalhe e as nuances da escrita académica pela firmeza do panfletismo social. «O complexo da Internet», defende aqui, «é uma máquina implacável de vício, solidão, falsas esperanças, crueldade, psicose, dívida, vidas gastas, corrosão da memória e desintegração social», uma vez que «a velocidade e ubiquidade das redes digitais maximizam a prioridade incontestável do obter, possuir, cobiçar, ressentir, invejar». O veredicto não deixa dúvidas: «A Internet ultrapassou o limiar de irreparabilidade e toxicidade», enfrentando agora «um mundo que opera sem pausa, sem possibilidade de renovação ou recuperação, asfixiando-se no seu próprio calor e lixo».

Jonathan Crary é professor de Arte e Teoria Moderna na Universidade de Columbia em Nova Iorque, e foi também professor convidado nas universidades de Princeton e de Harvard. Foi um dos editores fundadores (e permanece co-editor) da Zone Books, uma editora independente sem fins lucrativos. Aclamado enquanto teórico político, pensador crítico e historiador da arte, Jonathan Crary é o autor de estudos imprescindíveis sobre a formação da cultura visual na viragem para o século XX, como Técnicas do Observador: Visão e modernidade no século XIX (1990) e Suspensões da Percepção: Atenção, espectáculo e cultura (2000).

AFONSO DIAS RAMOS  Em 24/7, avisou: «É particularmente revelador que livros e ensaios escritos sobre os novos media há cinco anos apenas já se encontrem desactualizados.» O que o levou a escrever Terra Queimada nove anos depois? A urgência e o ímpeto deste livro parecem diferentes.

JONATHAN CRARY  Depois de 24/7 trabalhei numa série de projectos diferentes, e só a pouco e pouco me apercebi de que precisava de uma sequela, já que não tinha lidado adequadamente com aquilo que considerava serem os desenvolvimentos e trajectórias que estavam a piorar e podiam ser potencialmente catastróficos. Devo dizer, antes de mais, que 24/7 constituiu uma mudança consciente ao nível da minha identidade enquanto intelectual, na medida em que quis afastar-me de uma linguagem e de um formato académicos. Não foi propriamente uma ruptura total porque, se consultar as notas de rodapé, continuam a ser uma série de referências literárias e filosóficas. Mas 24/7 demonstrou-me que podia chegar a um público mais alargado, muito para lá do meu trabalho pessoaacadémico. Em vez de receber e-mails que vinham sobretudo de académicos, estudantes e artistas, comecei a ser contactado por pessoas de origens bastante diversificadas, e muitas vezes completamente fora de qualquer âmbito académico. Quando comecei a escrever Terra Queimada, quis levar isso ainda mais além. Claro que não poderia fingir que não era um intelectual, mas queria ver-me livre de algumas das limitações inerentes ao discurso académico. As escolhas retóricas que fiz ao escrever Terra Queimada foram diferentes mesmo das de 24/7. No início do livro, refiro a tradição histórica do panfleto político, tal como começou no século xvii em Inglaterra e noutros sítios. Queria que o texto fosse uma forma de agitação, de incitamento. Sabia que iria ser um trabalho polarizador e, desde que o livro saiu, as respostas provaram que estava certo. Mas voltando à sua questão, e olhando apenas para o título dos dois livros, 24/7 e Terra Queimada, poderíamos questionar: Quais são as consequências inevitáveis de um mundo a 24/7, tal como o descrevi? Quais são as consequências de as luzes nunca serem apagadas, de os motores nunca serem desligados? O que resulta de um mundo de ininterrupta produção, consumo e extracção de recursos, todas essas coisas que identifiquei ali? Muito simplesmente, o resultado é uma terra queimada. Uma das coisas que tentei fazer neste livro foi expandir algumas das conotações desta frase familiar. As dimensões ambientais da terra queimada são apenas um dos aspectos que queria evocar. Para mim, uma terra queimada é igualmente compreensível em termos da degradação das comunidades humanas e do empobrecimento da experiência interpessoal e social sob o capitalismo. Foi isso a que chamei o «complexo da Internet» e a sua omnipresença 24/7 como um dos impulsos definidores da crise em que nos encontramos hoje. Ambos os livros estão a reportar-se a alguns dos impactos devastadores do capitalismo num planeta que deveria ser organizado à volta daquilo que afirma a vida e daquilo que apoia a mutualidade e a comunidade.

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"O futuro foi reduzido à questão de se saber que dispositivos vamos ser obrigados a comprar e à volta dos quais havemos de construir as nossas vidas."

ADR  24/7 é sobre esse mundo ininterrupto sem descanso, ou a experiência de já não ter um botão para ligar e desligar, mas Terra Queimada parece mais um ultimato, como uma tomada de decisão para fazer log off ou sign out, aquilo a que chamou de «práticas de recusa radical».

JC  A frase que abre o livro enuncia uma das formas importantes de recusa: a recusa das inúmeras restrições à nossa imaginação política e social. Se formos imaginar um planeta habitável de forma honesta e realista, a nossa visão de um mundo pós-capital, pós-crescimento, simplesmente não pode incluir os meios tecnológicos com que vivemos hoje. Não digo que vão desaparecer totalmente. Contudo, o pressuposto preguiçoso de que podemos ir além de uma organização capitalista do planeta e continuar a viver as nossas vidas em sistemas concebidos e administrados por empresas transnacionais é uma das grandes ilusões do momento presente. Como poderá haver um mundo pós-capitalista no qual as instituições essenciais do capitalismo do século XXI persistem e florescem? Também há outras ilusões paralelas associadas a soluções para as alterações climáticas, como por exemplo a fantasia de que os carros eléctricos oferecem uma espécie de resposta. Na verdade, representam uma intensificação dos modelos capitalistas de consumo e de produção que estão a agravar as coisas, com essa irresponsável extracção de recursos necessária para fornecer às pessoas os veículos eléctricos e as suas baterias. Nos Estados Unidos, os interesses poderosos continuam a bloquear financeiramente os comboios de alta velocidade e os transportes públicos. Os meios fundamentais que precisamos para transformar o modo como vivemos as nossas vidas têm sido completamente excluídos do discurso mainstream.

ADR  A crise climática aparece de passagem em 24/7, mas passou para o primeiro plano em Terra Queimada. No intervalo entre estes livros, surgiu uma vaga de literatura a defender que a economia pós-capitalista deve adoptar a tecnologia digital, porque nos libertará do trabalho. Mas neste ensaio defende categoricamente o oposto disso, considerando-a incompatível com um planeta habitável e formas de vida igualitárias. O seu livro nunca é antitecnologia, mas é peremptório quanto a «não exist[ir]em sujeitos revolucionários nas redes sociais».

JC  Outra das ilusões dominantes é sobre como fomos condicionados a equiparar «tecnologia» a uma categoria muito reduzida de aparatos e de redes que são propriedade de um punhado de empresas globais. E apesar disso, se alguém criticar esses produtos ou questionar a sua necessidade, é atacado como sendo «contra a tecnologia». Isto é absurdo, tendo em conta a imensa diversidade de técnicas e de materialidades que o engenho humano, ao longo de milhares de anos, nos deixou como herança. Contudo, muitas pessoas, incluindo algumas que estão de acordo comigo, sentem-se intimidadas e temem ser classificadas e marginalizadas como «luditas». Num certo sentido, estão a pedir-nos que aceitemos uma ideia de futuro que é na verdade um presente paralisado e perpétuo em que estas tecnologias obrigatórias estão «aqui para ficar». O futuro foi reduzido à questão de se saber que dispositivos vamos ser obrigados a comprar e à volta dos quais havemos de construir as nossas vidas.

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