Registo
Sobre a realidade labiríntica das praças vazias (ou a Stimmung de Nietzsche em Turim)
Steffen Dix

A exposição de Yves Klein sobre o vazio foi apresentada há sessenta e cinco anos, em 1958, na Galerie Iris Clert, em Paris, e é considerada um momento fundamental da história da arte. Este ensaio de Steffen Dix faz dela o ponto de partida para uma viagem pessoal de interrogação sobre o lugar do vazio na arte e na filosofia. Ao nome de Klein, juntam-se aqui os de Giorgio de Chirico, com a sua pittura metafisica, de Friedrich Nietzsche, com a sua filosofia de afirmação da vida como obra de arte, e de Fernando Pessoa, com os seus heterónimos e a sua cidade. Steffen Dix é um investigador alemão e professor universitário. Especialista em história religiosa e modernismo na Europa, é também tradutor e autor de reconhecidos estudos sobre Fernando Pessoa.

Yves Klein

Nota escrita por Albert Camus após a abertura da exposição Le Vide, 1958 
© The Estate of Yves Klein / ADAGP, Paris

No dia 28 de Abril de 1958, foi inaugurada em Paris uma exposição de Yves Klein com o título La Spécialisation de la sensibilité à l’état matière première en sensibilité picturale stabilisée. A inauguração foi um sucesso tremendo, o dia era também o do trigésimo aniversário do artista, e às nove da noite juntou-se um grupo imenso na Galerie Iris Clert, situada no n.º 3 da rue des Beaux-Arts, em Saint-Germain-des-Prés. Yves Klein afirmou, com grande satisfação, que às 21h45 já não se conseguia mexer, tamanha era a multidão. O sucesso da inauguração justificou-se plenamente, uma vez que a obra exposta era bastante invulgar. Além do longo título oficial (e algo inacessível e críptico), a exposição teve também uma outra designação abreviada que descreve, de forma mais precisa, o único objecto exibido: Le Vide. Albert Camus esteve na inauguração e anotou sucintamente: «Avec le vide, les pleins pouvoirs.» [Com o vazio, os plenos poderes.]

Exibir o vazio é já uma experiência altamente transcendente, mas a inauguração teve ainda um aspecto bastante irónico, uma vez que o objecto principal da exposição — o vazio — desapareceu no momento em que a única sala da galeria começou a encher-se de convidados. O vazio deixa de ser vazio no momento em que é preenchido. Dois anos mais tarde, o vazio ressurgiu muito visivelmente numa outra obra iconográfica de Yves Klein. Na montagem fotográfica Le Saut dans le vide vê-se o artista a saltar para um espaço vácuo. Na mesma altura, o vazio tornou-se o centro dos seus trabalhos monocromáticos e chegou a ser, a partir de 1960, a referência principal para o Nouveau Realisme em França ou para o grupo ZERO na Alemanha, que tencionaram estabelecer novas formas de perceber o real. Por outras palavras, a representação do vazio teve a função de despertar, no observador, uma maior sensibilidade espiritual. O vazio não foi entendido como um horror vacui ou um niilismo filosófico, mas sim como tentativa de reproduzir uma beleza imanente que aponta para uma realidade que se encontra — ou que se encontra supostamente — além do físico: tà metà tà physiká. Neste sentido, uma galeria vazia ou uma pintura monocromática representam uma questão que ultrapassa as capacidades epistemológicas do ser humano. Como se pode exibir o vazio? Em termos filosóficos, a pergunta não tem resposta. O vazio desaparece logo no momento em que um observador pretende observá-lo, uma vez que há sempre uma relação imediata e imanente entre o observador e o observado. O observador faz parte do observado, e ao supor que o observador existe na realidade, ele não pode observar o vazio sem preenchê-lo involuntariamente com a sua própria presença. O vazio é um paradoxo. Ou seja, será que o vazio (ou o nada) existe realmente?

 

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Giorgio de Chirico, Nature-morte. Torino printanière, 1914

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Piazza San Carlo, Turim, 1929 page124image21401920

Hoje em dia, a exposição do vazio na Galerie Iris Clert é considerada um ponto de viragem na história da arte. Porém, a apresentação do vazio não foi propriamente uma novidade. O vazio foi, desde sempre, um sujet relevante na arte moderna e teve lugar de destaque nas obras de alguns dos artistas mais celebrados do século XX. Kazimir Malevich, Piet Mondrian, Marcel Duchamp, Mark Rothko ou Giorgio de Chirico colocaram, no centro da sua arte, a questão da interacção entre materialidade e imaterialidade. E sobretudo na obra de Giorgio de Chirico encontra-se uma analogia muito particular com os trabalhos de Yves Klein. Na sua pittura metafisica, o pintor italiano antecipou o vazio espacial do artista francês. Le Vide de Yves Klein foi uma instalação, uma sala branca deserta, um espaço público vazio, um lugar acessível e visitável (e absurdamente preenchido na noite da inauguração). Uma grande parte da pittura metafisica representa a tentativa de traduzir a sensação de um vazio espacial para a pintura com ênfase na realidade do vazio. A diferença entre Yves Klein e Giorgio de Chirico consiste, naturalmente, no facto de as praças vazias apresentadas na pittura metafisica não poderem ser visitadas fisicamente. Contudo, a tentativa de visualizar o vazio continua a ser uma contradição, ou uma provocação pérfida para as nossas competências metafísicas. Giorgio de Chirico foi dos primeiros artistas plásticos a dedicar uma parte importante da sua obra à questão complexa da realidade do vazio. A sua pittura metafisica foi sempre e inteiramente uma contradição cativante, mas ganhou, sobretudo nos últimos tempos, uma nova fascinação imprevista.

Foi curiosamente o lockdown que trouxe consigo uma possibilidade involuntária de voltar a reflectir a questão da realidade do vazio. O vazio dos espaços públicos tornou-se, durante algumas semanas, um fenómeno omnipresente. Embora contrariando as ordens públicas, o lockdown forneceu a oportunidade única de visitar algumas praças vazias, da mesma espécie das que se vêem nas pinturas de Giorgio de Chirico. Um vírus invisível proporcionou alguns momentos breves nos quais nos podíamos inteirar da extraordinária realidade das praças vazias. As praças vazias da pittura metafisica tornaram-se uma realidade visitável na Primavera de 2020. Ou seja, a pandemia incentivou uma nova reflexão sobre as praças vazias, pintadas nos anos áureos do modernismo europeu. Mas que fascínio representa uma praça vazia?

No dia 26 de Janeiro de 1910, Giorgio de Chirico encontrava-se em Florença e escreveu uma carta a Fritz Gartz, na qual afirmou ser o único que tinha verdadeiramente compreendido a filosofia de Friedrich Nietzsche, e toda a sua obra era uma prova desse entendimento.1 Fritz Gartz, pintor do realismo expressivo, era um amigo de Munique com quem Giorgio de Chirico estudou, entre 1906 e 1909, na Akademie der Bildenen Künste. Nessa altura, os dois amigos conheceram, na Neue Pinacothek de Munique, as obras de Arnold Böcklin e Max Klinger, que se revelaram uma influência decisiva para Giorgio de Chirico. O simbolismo de Böcklin, muito em particular, causou-lhe uma impressão inesquecível. Mais importante para a sua pittura metafisica foram, porém, dois outros momentos, em 1909. No Outono desse ano, pouco depois da sua chegada a Florença, Giorgio de Chirico passou uma tarde soalheira num banco da Piazza Santa Croce, quase vazia, e observou o monumento a Dante. Embora não sendo a primeira vez que o pintor havia passado algum tempo nesta praça emblemática do centro de Florença, teve a «sensação estranha» de ver tudo «pela primeira vez». Percebeu que a realidade da Piazza Santa Croce é um enigma. As duas primeiras obras da sua arte metafísica têm o título L’Énigme de l’oracle e L’Énigme d’un après-midi d’automne, sendo que a segunda é claramente a realização da «sensação estranha» de ver a Piazza Santa Croce quase vazia, com o monumento a Dante que reaparece na tela como uma estátua grega que lança uma extensa sombra numa tarde soalheira de Outono.

[...]

1. Cf. Ara H. Merjian, «“Il faut méditerraniser la peinture”, Giorgio de Chirico’s Metaphysical Painting, Nietzsche, and “the Obscurity of Light”», Santa Bárbara: California Italian Studies, 1–1, 2010, p. 4.