Assunto
Wendy Brown: o mercado como fenómeno total
Afonso Dias Ramos

Um dos nomes maiores da filosofia política contemporânea, Wendy Brown tem publicado recentemente alguns dos estudos de referência sobre o neoliberalismo, reconstituindo não só a longa trajectória histórica que culminou no momento presente, como alertando para o facto de se encontrar em rota de colisão com a própria ideia de democracia. Em conversa com a Electra, Wendy Brown percorre e interpela várias das fracturas do presente político.

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Wendy Brown é uma das filósofas políticas e críticas culturais mais provocadoras da actualidade, e uma pensadora pioneira na tentativa de compreender as formas contemporâneas do poder político e de procurar a possibilidade democrática. É Professora na Escola de Ciências Sociais do Instituto de Estudos Avançados em Princeton e Professora jubilada de Ciência Política na Universidade da Califórnia, Berkeley. Com um trabalho que cruza economia política, filosofia continental, análise cultural e estudos críticos do direito, Brown é reconhecida pelas suas contribuições decisivas para o estudo do neoliberalismo, feminismo, cidadania e soberania, mas também pelo seu activismo, nomeadamente a favor de um ensino superior público. É autora de vários livros, incluindo Manhood and Politics (1988), States of Injury (1995), Politics Out of History (2001), Regulating Aversion (2006) e Walled States, Waning Sovereignty (2010), nos quais percorre a teoria crítica para analisar as formações contemporâneas de poder, identidade e subjectividade nas democracias liberais. Recentemente, Wendy Brown dedicou-se às fundações filosóficas e formações políticas do neoliberalismo. Em Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution (2015), redefiniu o neoliberalismo como uma série de políticas económicas, invadindo todas as esferas da vida e recriando tudo no mundo à imagem da economia. Chama a isto «um ataque multifacetado aos valores democráticos», dado que «tanto as pessoas como os Estados são formados segundo o modelo de uma empresa contemporânea».

AFONSO DIAS RAMOS  As suas contribuições para a teoria política sempre tiveram um cunho sociocultural. Como foi a sua formação intelectual?

WENDY BROWN  Cheguei à Universidade da Califórnia em Santa Cruz com a ideia de possivelmente me tornar médica. Interessavam-me as perspectivas da psicologia e da psiquiatra. Mas tendo em conta o ambiente altamente politizado do início dos anos 70, e o meio intelectual muito estimulante na universidade, dei por mim embrenhada em cadeiras sobre teoria social, economia, sociologia… Interessava-me sobretudo o panorama geral do mundo que as ciências sociais proporcionavam, mais do que os seus métodos formais e os estudos empíricos. Inicialmente, atraía-me a economia, achava que esta continha «a verdade» do Universo. Felizmente, o Departamento de Economia encontrava-se dividido entre economistas marxistas e neoclássicos. Isso possibilitou-me aprender economia marxista, mas também ter algum treino em economia neoclássica. Marx levou-me a Hegel e Hegel levou-me a Platão. Para o final da minha licenciatura, estava fascinada com a história do pensamento político. Prossegui os estudos em teoria política, economia política e teoria social, com um foco no modo como os seres humanos podem viver conjuntamente, como nos governamos a nós mesmos, como nos sustentamos em grupo através das estruturas políticas e das relações económicas. A teoria política é onde me instalo. Mas o meu projecto foi sempre compreender o mundo contemporâneo de um ponto de vista histórico, teórico, político e económico.

ADR  Como concebe o nexo entre a teoria e prática no seu trabalho, sendo tanto activista como académica? Em Edgework (2005), lançou um aviso contra os perigos de confundir teoria crítica e acção política.

WB  Isso tornou-se um assunto tão importante hoje em dia, com tanta controvérsia sobre o conhecimento politizado e sobre aquilo que deveríamos ou não ensinar nas universidades. A academia permite uma distância face ao mundo que se estuda e se teoriza. Essa distância tem de ser preservada. Se a questão de «o que deve ser feito» se antecipar à questão de «o que se está a passar», não vamos agir de um modo inteligente. Seremos reactivos, veiculando as normas e estruturas de poder existentes, mesmo quando pensamos que estamos a resistir-lhes. Podemos elaborar um trabalho teórico orientado directamente para o mundo, mas isto é muito diferente de suprimir o intervalo entre a teoria e a prática, ou entre a academia e o activismo. Também precisamos de preservar um espaço de pensamento, investigação e aprendizagem longe do imediatismo das ruas, do parlamento ou da imprensa, porque o discurso académico e o ensino são bastante diferentes do discurso e da acção política. Max Weber dizia que, na sala de aula, a linguagem era como um arado para remexer o pensamento político, mas na esfera política, a linguagem era uma espada para ganhar a guerra. Uma sala de aula sem o escrutínio crítico, sem vontade de considerar e de criticar todos os termos e todas as estruturas, não é de todo uma sala de aula. Por isso, insisto na distinção entre academia e activismo, e entre teoria e política, mesmo que tomar essa posição hoje em dia signifique estar cada vez mais isolada. A esquerda e a direita estão muito empenhadas em politizar tudo na universidade.

ADR  Os seus primeiros livros continham discussões detalhadas e eruditas de vários pensadores críticos, e dirigiam-se a um público académico. Mas os livros mais recentes destinam-se a um público mais alargado. Foi mera coincidência que a mudança tenha ocorrido assim que o neoliberalismo passou para o primeiro plano no seu trabalho?

WB  Não reflecti sobre isso, vou especular um pouco… Quando uma pessoa é jovem e ainda não tem um público, escreve para si mesma enquanto intelectual, ou então para um círculo restrito de leitores. No meu caso, acho que escrevia para uma esquerda feminista e académica. Mas assim que comecei a perceber que existiria um público para além da academia e da esquerda, comecei a escrever de modo diferente, e provavelmente isso tornou-se mais claro no meu livro sobre tolerância. Não estou muito interessada em debates puramente académicos, ainda que continue comprometida com padrões académicos elevados, tanto para mim própria como para os meus alunos.

"Todos os elementos da vida e todas as instituições foram refundados pela razão neoliberal."

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ADR  De certo modo, essa tentativa de não pregar só aos convertidos também segue um fio condutor do seu trabalho, a ideia da política como paradoxo, quer seja o par provocatório de Hayek e Foucault, o fanatismo na tolerância, ou a construção de muros numa era transnacional…

WB  Não me imagino a ser capaz de persuadir um público militante de direita ou neoliberal. Mas é possível que aqueles que estão indecisos em matérias de valores familiares, neoliberalismo e socialismo, leiam um trabalho que possa provocar ou mudar o modo como pensam. Mas também gosto de desarrumar alguns hábitos da esquerda. Estou sempre a pensar em dissonância com certos axiomas esquerdistas. Isso sucede habitualmente quando convoco certas preocupações da teoria política que expandem ou que desafiam o marxismo em torno de questões sobre democracia.

ADR  As suas teorias sobre neoliberalismo geraram muito interesse, mesmo quando o próprio termo ainda estava confinado a círculos académicos ou activistas. Podia explicar como entende este conceito?

WB  A narrativa convencional do neoliberalismo está focada numa série de políticas económicas: desregulação, privatização de bens públicos, desmantelamento do Estado social, redução da tributação progressiva. Mas esta formulação faz dele meramente um anti-keynesianismo. Também é importante olhar para aquilo a que Foucault chamou de neoliberalismo como forma de razão governamental, ou racionalidade política, e que produz um modo de nos compreendermos a nós próprios, aos Estados e às sociedades segundo os termos do mercado. De uma forma consciente ou inconsciente, passámos a pensar em tudo segundo os termos do mercado. Todos os elementos da vida e todas as instituições foram refundados pela razão neoliberal, das universidades aos hospitais e às ONG, mesmo os movimentos sociais e, claro, o Estado, todos agora funcionam como um negócio e são geralmente liderados por negociantes. Assim, segundo Foucault, sob o neoliberalismo, não somos apenas um novo tipo de homo oeconomicus, mas somos unicamente um homo oeconomicus. Tem sido esta a ordem vigente desde a revolução Reagan-Thatcher no Norte Global, e desde a deposição de Allende e a imposição de Pinochet no Sul Global. Mas esta ordem também começou a desmoronar-se. Foi severamente posta em causa pela crise financeira de 2009 e, mais recentemente, pela pandemia de covid-19. De certa forma, é chocante só agora começarmos a compreender a linguagem que nos tem organizado e governado, não só nos detalhes mais ínfimos e subjectivos, mas também ao nível macro, no modo como se gera uma desigualdade grotesca, um saque extremo do planeta e a anulação da democracia.

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