Agamben mostrou, todavia, que o entrelaçamento destas duas concepções — a jurídico-política, por um lado, e a económico-gestionária, por outro — tem raízes profundas nos clássicos do pensamento político grego e instituiu uma tradição ambígua que não é fácil desenredar.
Muitas das tentativas de esclarecimento e de explicação para o actual mau estado em que se encontra a democracia são, ao mesmo tempo, necessárias e insuficientes. Entre elas, alega-se que o desaparecimento de alternativas político-ideológicas claras, nítidas e contrastadas, dando aquela tremenda e tépida sensação de «mais do mesmo» e de «são todos iguais», frustra, paralisa e desmotiva os cidadãos-eleitores.
Argumenta-se, complementarmente, que o sistema político-económico- -financeiro a que se chama neoliberalismo globalizado e globalizador capturou os verdadeiros poderes que pertenciam à política, deixando os políticos prisioneiros de uma lógica inelutável que os obriga a servir, voluntária ou involuntariamente, os imperativos e os interesses da ortodoxia desse sistema, tornando-os impotentes e incapazes de propor a diferença que mobiliza e gera alternativas e escolhas. A esta impossibilidade de fazer a diferença real, de criar a alternativa consistente e de ousar a heterodoxia corajosa chamou-se, nos anos 90, o «pensamento único».
Este pensamento único, que não autoriza nem diferenças, nem alternativas, nem heterodoxias, considera-se detentor do sentido da História e da direcção do progresso, representando um novo determinismo histórico, certamente tão dogmático e tão equivocado como estava o antigo determinismo marxista-leninista do materialismo dialéctico e do materialismo histórico.
Este novo determinismo, mesmo quando o evoca repetidamente e com uma unção quase religiosa, desmente e contraria o que disse o filósofo liberal Karl Popper sobre a miséria do historicismo, as sociedades abertas e a visão de um futuro sempre indeterminado e a construir pela novidade do nosso pensamento e pela deliberação da nossa acção.
Este pensamento único, com a sua ausência estrutural de alteridade, desequilibra e fecha o sistema político democrático, tornando-o monolítico, impossibilitando a existência de válvulas de escape e impedindo o seu funcionamento dinâmico e criador. É a ele que muitos atribuem os populismos e os nacional-populismos que alastram e ameaçam mesmo as democracias antigas e consolidadas. Esses populismos, com o seu discurso antipolítica e contra os políticos, ressuscitam, afinal e paradoxalmente, a política na sua face mais selvagem e vingativa.
Há, porém, quem olhe para os populismos contemporâneos de outra maneira. É o caso da conhecida cientista política Chantal Mouffe que, num artigo escrito para este dossier da Electra, expõe as suas ideias sobre o fenómeno, esclarecendo alguns conceitos que criou e que ajudam a pensar a ameaçadora actualidade política e social do populismo.
Alguns outros ensaístas políticos afirmam que a anulação intencional e metódica da política, da filosofia política e até da economia política, que temos testemunhado, visou a sua substituição forçada e redutora pela economia financeira e pela sociologia mercantil, transformando assim o político em mero gestor, técnico de vendas ou especialista de marketing.
O nó-cego fica ainda mais apertado quando se proclama que a política que não for feita de acordo com as leis e as regras imperativas do sistema económico-social dominante ignora a realidade e as nossas obrigações perante ela, acusando-se essa política, denunciada como utópica ou irrealista, de ser um delírio ideológico, um fiasco económico, uma inaptidão gestionária ou uma irresponsabilidade para com o futuro e as gerações que o vão construir e sofrer.
Deste modo, a escolha deixou de poder assumir-se e exercer-se entre políticas diferentes, doutrinas diversas, ideias divergentes, ideologias opostas, morais políticas contrárias, propostas antagónicas, para ser reduzida a uma escolha «responsável» ou «irresponsável» entre a realidade e a fantasia.
À tal fantasia — dita incompetente, inaceitável e cheia de consequências nefastas — é dado o nome mal-afamado de ideologia ou de «preconceito ideológico». No código canónico do sistema económico e financeiro global, chama-se ideologia ao que é discordante desse sistema. Tudo aquilo que o defende ou reafirma, por mais ideológico, utópico e irrealista que tantas vezes seja, como mostrou o sociólogo Pierre Bourdieu, tem sempre os nomes de realismo, pragmatismo, verdade, rigor, competência, capacidade de gestão, correcção financeira, visão de futuro.
Por isso, quando esse sistema e os dispositivos que lhe são aliados reclamam por «reformas», torna-se evidente que tais reformas são as que adequam o que ainda não está adequado à sua ortodoxia de pressupostos, propósitos e proveitos.
Na mesma linha de produção de instrumentos conceptuais de poder, a clássica distinção entre direita e esquerda passou a ser considerada anacrónica e já sem sentido útil para descrever a realidade política e operar nela. Mas os que isso proclamavam foram aqueles que, depois, começaram a exibir altivamente os troféus que simbolizam o triunfo da direita sobre a esquerda.
Aos efeitos causados por este movimento imparável — ou esta revolução interminável — que, desde os anos 80 do século XX, reconfigurou a democracia e, segundo muitos, a capturou e falseia, juntou-se uma outra fonte de pressão que tem acentuado gravemente a sua fragilização. Trata-se da judicialização da política e da tentativa continuada do sistema judicial para se opor, sobrepor e impor ao sistema político em consonância e cumplicidade com o sistema mediático. Esta conjugação de ataques concertados à credibilidade do regime democrático constitui uma poderosa causa do seu desprestígio e um importante gerador de impulsos antidemocráticos e populistas.
Não se trata de desvalorizar ou deixar de reconhecer o papel essencial do exercício normal e indispensável do poder judicial no cumprimento da lei e de combate ao crime. Trata-se de reconhecer a criação de um dispositivo que gera e gere o sensacionalismo jurídico-mediático, tornando o poder judicial uma espécie de inimigo impiedoso e justiceiro dos outros poderes e dos seus representantes ou protagonistas, os poderosos e famosos, numa exibição premeditada, oportuna e planeada estrategicamente para afirmar o seu poder fáctico e a sua força corporativa.
Algumas das vozes que se têm levantado para denunciar a astenia demo- crática olham para aquelas que podem ser as outras razões dessa atonia e acusam a esquerda de haver apostado tudo nas causas identitárias, apelidadas de fracturantes, desvalorizando e secundarizando a questão social e abandonando o campo onde se defendem os direitos dos mais desprotegidos, vulneráveis e lesados.
No catálogo dos factores de erosão democrática, está também a crise do Estado-providência (ou social, ou de bem-estar), cujas causas são motivo de disputas inconfessadamente ideológicas. Para uns, o problema está na dimensão do Estado, que é excessivamente grande e garante direitos a mais, que não podem ser financeiramente suportados. Esse argumento expressa-se na fórmula: «Não há dinheiro para pagar o actual Estado-providência.»
Aos que isto declaram, outros contrapõem que o regime capitalista, na sua actual etapa, é fundado na especulação financeira, na dominação do lucro e na desigualdade social. Por isso, o Estado-providência é contrário à lógica natural e intrínseca do novo capitalismo, segundo a qual é inaceitável o uso de dinheiro que se destina à solidariedade e favorece a igualdade — e não a competição e a diferença, a competitividade e o rendimento, que são os motores da sua marcha vitoriosa.
É claro que, para os que fazem suas as teses neoliberais, elas não enfraquecem a democracia, mas reforçam-na, pois levam a energia da liberdade, o resultado da iniciativa e a vantagem do espírito empreendedor até onde eles nunca tinham ido. Para os que assim pensam, a crise actual das democracias é apenas uma crise de crescimento. As suas verdadeiras causas são, segundo eles, a inércia que não aceita a mudança e quer conservar os ultrapassados mitos da igualdade e da distribuição da riqueza, mesmo quando não a conseguem criar e se mostram incapazes de lidar com o tempo novo. Esse é o tempo do desenvolvimento capitalista assente na tecnologia, na comunicação, na globalização, no mercado e no lucro.
Seja qual for a sua índole e a sua causa, a crise da democracia existe e está presente. Aos motivos que fomos enunciando, acrescentam-se ainda razões de fundo que têm levado ao descrédito da política e da democracia, acusadas de não conseguirem dar resposta a questões vitais. Entre essas, estão a aceleração crescente do tempo, a mutabilidade contínua do mundo, sob o impulso avassalador da técnica, a instabilidade ameaçadora dos factores económicos e sociais que determinam a insegurança da vida quotidiana e a falibilidade permanente das expectativas, tornando tudo contingente, provisório e precário. Isso gera, inevitavelmente, incerteza e inquietação, frustração e medo.
A professora da Harvard Business School e especialista nos efeitos das novas tecnologias sobre o mundo do trabalho Shoshana Zuboff chamou ao nosso tempo a «era do capitalismo da vigilância», estabelecendo estas três leis: Tudo o que pode ser automatizado será automatizado. Tudo o que possa ser informatizado será informatizado. Todas as aplicações digitais que podem ser usadas para vigilância e controle serão usadas para vigilância e controle. Para esta reconhecida autora, o Google e o Facebook são ou tornaram-se «antíteses da democracia».
Mesmo quando não estão inteiramente consciencializadas e são apenas nebulosamente adivinhadas, todas estas transformações radicais, com consequências omnipresentes para a democracia, geram um mal-estar, individual e colectivo, e um desencanto que confiscam, diminuem ou anulam a vitalidade democrática.
Perante tantas pressões e condições de risco, a democracia aparece frequentemente como um regime sequestrado, impotente, incapaz de cumprir as suas promessas, de realizar os seus fins e de garantir os princípios em nome dos quais se institui e proclama: a defesa do interesse geral e do bem comum, o cumprimento da legalidade democrática e da igualdade de todos perante a lei, a protecção da liberdade e dos direitos fundamentais que dela decorrem e a corporizam.
Numa entrevista dada para este dossier da Electra, a cientista política Wendy Brown afirma:
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