Há já algumas décadas que ouvimos, em grande parte do (predominantemente branco) mundo ocidental e a cada novo processo eleitoral, lamentos acerca das taxas de abstenção cada vez mais elevadas (em especial entre os «jovens»), da prevalência dos partidos chamados «populistas» e da falta de substância das campanhas eleitorais, que se furtam à discussão dos assuntos sociais e ecológicos mais importantes. A apreciação que é feita parece ir agora muito para lá do descontentamento: as democracias representativas estão a naufragar.
Partindo da verificação comum de que as democracias representativas entraram em colapso, Yves Citton, professor de Literatura e Media na Universidade Paris 8, co-director da revista Multitudes e autor, entre muitos outros livros e artigos, de Médiarchie e Pour une écologie de l’attention, reflecte sobre um sistema de poder estruturado pela lógica da medialidade, de onde nasce, por exemplo, o conspiracionismo.
LAMENTOS DAS DEMOCRACIAS BRANCAS
Os «jovens» não votam: estarão desmobilizados, distraídos, ou serão estúpidos? Ou talvez, simplesmente, já não caiam na esparrela: já não estão disponíveis para se fazerem de parvos. Os discursos hipócritas e as posturas histriónicas da maior parte dos candidatos cada vez menos conseguem esconder a mentira fundamental da política do costume — uma mentira que é constitutiva dos nossos «debates políticos» porque está na base dos nossos cálculos económicos. Neoliberais ou keynesianos, todos esperam maior crescimento e mais consumo. Nos Estados Unidos como no Reino Unido, em França como na Itália, mesmo quando partidos minoritários de esquerda ou ecologistas chegam ao poder, o cocktail eleitoral vencedor tem de prometer mais poder de compra, mais trabalho, mais riqueza, mais trickle-down, melhores serviços com menos impostos, menos regulação, menos crime, menos estrangeiros. Não é preciso ser-se um especialista em equações diferenciais para perceber o quão desesperadas (e desesperançadas) são as «soluções» propostas pelos políticos tradicionais (brancos, na sua maioria) para enfrentar ou evitar as questões mais prementes do nosso tempo (desigualdades revoltantes, a sexta grande extinção, as alterações climáticas, o fim da Natureza barata).
O naufrágio das democracias representativas acontece precisamente no descompasso dramático entre, de um lado, as mentiras que a política do costume precisa de prometer para vencer eleições e, do outro, as verdades que ninguém ousa proferir (pois retirariam a quem as proferisse qualquer hipótese de ser eleito). Esse descompasso não é tanto uma questão de agenda, mas uma questão de infra-estrutura. Aquilo que Benjamin Bratton chama, com escárnio, «o modelo avatar da representação política» é estruturado em torno de um processo simbólico, que ele resume da seguinte maneira:
Primeiro, escolher um mal, que faz coisas más às pessoas, e depois imaginar o inverso dessa coisa má, que logo se torna a coisa boa. Identificá-la com o bem. Em seguida, encontrar avatares humanos dessa coisa boa: pessoas que personificam essa identificação, e adequadamente articuladas entre elas. […] Investir colectivamente uma pluralidade de avatares com agência oficial e articular as suas várias personificações no seio de um fórum soberano no qual estão representadas políticas em potência. Aí, a reunião de avatares contesta uma variedade de simbolizações e, depois disso, codifica as declarações de consenso em decretos. Estas políticas são simulações, por escrito, de modelos de transformações futuras que procuram garantir que o bem será realizado. Alocam-se meios financeiros para fazer aplicar a simulação do decreto no mundo real. […] Se o processo não funciona, e não vemos menos do mal, então volte-se à fase em que os avatares são polidos e filtrados, em busca da pureza que é a sua personificação com o bem. Repetir.1
"A mentira fundamental sobre a qual as nossas democracias descontentes são construídas consiste em supor que indivíduos de livre-arbítrio escolhem livremente a agenda política à qual aderem quando elegem um avatar humano em vez de outro."
Este modelo de representação política — desenvolvido localmente, mas promovido colonialmente à escala global — está claramente a perder força. Já nem as pessoas brancas acreditam no sistema branco (e muitas vezes supremacista) que defendem (e às vezes impõem pela via militar), feito para ser admirado por todas as populações do planeta, estampado com o rótulo da «democracia» (ocidental). Seria insensato alegrarmo-nos com esta queda: ao passo que a arrogância colonial europeia merece ser esmagada, os méritos do regime das liberdades (relativas e desiguais) desenvolvido no mundo ocidental conservam o seu apelo, amplo e compreensível, aos olhos de regiões submetidas às dores da (pouco sofisticada) corrupção, da opressão militar e da autocracia. E, no entanto, na medida em que produz uma mistura de apelo e descontentamento, a democracia representativa requer um duplo movimento de reenquadramento e crítica.
O reenquadramento pode inspirar-se na história alternativa da democracia escrita no seio da Tradição Negra Radical. Em The Terms of Order,2 Cedric J. Robinson esboçou uma abordagem ao poder político não centrada nas pessoas brancas que desconstrói as noções de ordem, hierarquia, liderança, poder, lei, formalização, responsabilização, individualismo — tudo pressupostos do conceito dominante de democracia. Em The Undercommons e em All Incomplete3, Stefano Harney e Fred Moten prosseguem o seu trabalho pioneiro ao desconstruir a prevalência iníqua de um vocabulário baseado em conceitos como interesses, melhorias, políticas, política, governança ou logística. Esta tradição alternativa, firmemente ancorada tanto nas reivindicações da negritude como na crítica da branquitude, fornece-nos a todas e a todos uma estrutura diferente com que considerar o que pode ser atractivo ou repulsivo, necessário ou dispensável na maneira como os seres humanos partilham a sua incompletude nas suas práticas colectivas plurais de habitar um território.
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