Primeira Pessoa
Mário Lúcio Sousa: «Deveríamos estar a banir as fronteiras»
João Pacheco

Entrevista ao músico, cantor, poeta e ex-ministro da Cultura de Cabo Verde, autor de Manifesto a Crioulização, onde se fala da experiência de quem nasceu numa aldeia de pescadores, no Tarrafal da ilha de Santiago, e das potencialidades políticas e culturais do modelo crioulo.

joao pacheco

Vive entre o Brasil e Cabo Verde. É músico e escritor, tem coleccionado prémios importantes. Antes de entrar para a escola, começou a escrever no chão. Riscava assim a terra da aldeia do Tarrafal, onde nasceu em 1964. Durante os anos à frente do Ministério da Cultura de Cabo Verde, Mário Lúcio Sousa meditava todos os dias sobre os riscos do poder. Se começa a escrever em português, sabe que pode estar um livro a caminho, como os romances O Novíssimo Testamento, O Diabo Foi Meu Padeiro ou Biografia do Língua. Se os versos se formam em crioulo, é porque vem aí uma música.

JOÃO PACHECO  É filho do mar?

MÁRIO LÚCIO SOUSA  Sou filho do mar fisicamente: nasci à beira-mar numa aldeia de pescadores chamada Monte Iria, no Tarrafal de Santiago. E sou filho do mar também pelas cosmogonias iorubas. Mas também sou filho do mar numa dimensão etnológica crioula. Os crioulos pertencem ao Atlântico. O Atlântico formatou essa terceira identidade nova.

JP  Escreveu que «o passado pode ser uma grande prisão para qualquer cultura», no livro Manifesto a Crioulização.

MLS  O passado prende. E se não tivermos a capacidade de projectar a nossa sombra, podemos ser ofuscados pela própria sombra. Há várias culturas cuja única referência é o próprio passado. Consegue-se viver centenas de milhares de anos com essa projecção. Estamos a ver na modernidade que isso se torna uma fonte de conflitos irreparável. Porque há amarras e não há libertação. Ora, o que acontece com essa projecção? Logo que nos conseguimos libertar do passado sem renegar as nossas referências, somos capazes de construir o futuro. Porque nos abrimos a outras possibilidades, a outros encontros. E quando tomamos o passado como uma referência de construção e não como uma construção de referências, aí nos libertamos. E com esses valores somos capazes de construir uma identidade de futuro. No fundo, o ser humano tem um único conflito desde que apareceu na face da Terra. É a sua luta de apego ao que conhece e o confronto com aquilo a que chamam novidade, que acontece a cada milésimo de segundo. A novidade é o desafio à nossa própria existência. Ainda bem que ela existe, para que a vida não seja uma monotonia eterna.

JP  Foi viver para um quartel aos dez anos. Como é que os seus pais autorizaram essa mudança?

MLS  Até hoje me pergunto sobre isso. E até hoje, nas minhas meditações diárias, de manhã e à noite, agradeço aquilo que eles fizeram por mim. É algo que não tem explicação. Porque eu era muito apegado à minha mãe. Éramos parecidos, calados. Em criança, passava horas a brincar com formigas e a minha mãe ao lado, só a olhar para mim. Então, teve essa cena de eu estar a ler poemas aos dez anos no poial de esquina da casa. E fui chamado pelo crepúsculo. Desci de casa, percorri uns bons mil e quinhentos metros até chegar à beira-mar. Fiquei ali, já não conseguia mais ler. Ao subir, encontrei o Mário Elísio, um comandante militar. E ele perguntou-me: «O que estás a fazer na rua?» Disse que estava a ler poemas e ele achou estranho. Escondi o livro e ele disse: «Lê.» E eu disse-lhe: «Não, eu sei o livro.» E recitei-o. Ele ficou embasbacado.

JP   Que livro era?

MLS  Era o livro Nôte, de um poeta que tinha como pseudónimo Kaoberdiano. O nome oficial é Felisberto Vieira, faleceu há pouco tempo. Foi dos primeiros a escrever livros de protesto ou livros revolucionários em crioulo. Recitei o livro e o homem perguntou-me: «Mas tu moras onde?» E levou-me a casa, para conhecer os meus pais. Chegou, teve lá uma conversa com os meus pais e ouvi-o a dizer que tinham de me dar uma educação especial porque não era normal que eu com aquela idade recitasse o livro. Lembro-me de a minha mãe responder apontando para a fronte, dizendo: «Hummmm, ele nasceu assim…»

JP  Não bate bem da bola…

MLS  Da tola, sim. Mas ele disse: «O Estado gostaria de dar a esse menino uma educação especial.» E eu respondi: «Eu vou.» E nessa mesma noite fui com o Mário para o quartel, que era no campo de concentração do Tarrafal.

JP   Que já não era campo de concentração.

MLS  Já não. O campo tinha sido libertado em 1974, em Maio. E eu cheguei em 1975, em Maio ou em Junho. Lembro-me que uns meses depois entrei na escolinha do colonato, que ficava a cem metros do campo. Fui para a residência dos oficiais, que era a residência do antigo director do campo. Era uma casa linda. Nunca tinha entrado numa casa com casa-de-banho.

JP   Ficou instalado nessa casa?

MLS  Sim. E a partir daí a minha vida tomou o rumo que teve até hoje, por causa da literatura, da escrita. Sou pai e pergunto-me: «Mas como é que os pais deixam uma criança de dez anos sair de casa com um desconhecido?» Lembro-me da figura dos dois. Nunca tinha visto o meu pai e a minha mãe sentados ao lado um do outro. Foi a primeira vez. Parece que estavam à espera de alguma coisa e deixaram, com toda a serenidade. No ano seguinte, o meu pai faleceu. E três anos depois faleceu a minha mãe. Éramos doze em casa e era do meu dinheiro da bolsa de estudos que o lar conseguia viver.

JP   Quando os seus pais morreram, ainda tinha tempo para servir de escriba de pessoas que não sabiam escrever?

MLS  Isso foi um pouco antes. Eu já devia estar na segunda ou terceira classe, oito ou nove anos. O meu irmão Eurico fazia esse trabalho antes de mim. Depois foi estudar para a Cidade da Praia.

JP  Mas era um trabalho?

MLS  Era um trabalho comunitário, gratuito. As crianças que sabiam ler não eram muitas. O meu pai tinha a preocupação de mandar os filhos para a escola. Passei a substituir os meus irmãos, a escrever as cartas para a malta que estava na tropa em Angola. Na minha zona havia muitos jovens que iam para a tropa em Angola e na Guiné. E também para os maridos emigrados.

JP  Escrevia em português?

MLS  Sim. Se não fosse em português, achavam que não era sério. Naquela época, aquilo era de uma inocência abissal. Lembro-me das coisas que se mandava dizer: «Mando dizer que a vaca Pintada está prenha.» Era uma grande notícia em 1971. Lembro-me dos anos de seca terrível. Lembro-me de uma prima minha vir de longe, a pé, com um sol de queimar, para trazer uma abóbora à minha avó. Durante uns dias comemos essa abóbora, fervida com água. Era muito penoso, aquilo. Escrevia o que mandavam dizer. As mulheres falavam em crioulo e eu traduzia para português. E depois havia um ritual de que gostava muito. Tinha de ler a carta toda em português, de novo. E a senhora confirmava se estava certo. Porque ao ouvir, ela entendia. Mas não sabia falar nem escrever português. Tornei-me numa espécie de menino comunitário. Para contar os paralelepípedos, para ajudar a dividir as moedas, a dividir as cavalas e os chicharros depois da pesca… Tudo o que era contagem e escrita era comigo. Há uma relação intrínseca na minha vida com as letras, com a literatura.

JP Qual foi a sua primeira religião?

MLS  Católica. Fui baptizado na igreja de Santo Amaro Abade, no Tarrafal. E frequentei a Igreja Católica durante um tempo. Lembro-me de ir à missa. Depois, saí de casa aos dez anos e mudei-me para a Igreja do Nazareno. Sozinho. Era mais alegre, havia mais cânticos. Na Igreja Católica havia o coro da igreja. Ensaiavam e o ritual era diferente. Os fiéis não participavam, senão para repetir. E na Igreja do Nazareno foi óptimo porque havia instrumentos musicais. Tinham violão e órgão e deixavam-nos mexer. Deram-nos o Novo Testamento. Ao fim de algum tempo, davam-nos uma Bíblia. Foi o meu primeiro livro. Gostava tanto de ler o Novo Testamento. Também por isso, depois escrevi o Novíssimo Testamento.

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