Metropolitano
Roger Ekirch: O sono e a cidade
Diogo Vaz Pinto

Com o seu livro At Day’s Close: Night in Times Past, publicado em 2005, o historiador americano Roger Ekirch mudou muitas ideias existentes sobre o sono do passado e do presente. Mostrou, por exemplo, como a Revolução Industrial transformou radicalmente o tempo e o modo como se dormia antes, passando-se, sobretudo nas cidades, de um sono bifásico a um sono consolidado de oito horas, que ele classifica como «uma invenção moderna». O sono e a insónia constituem uma preocupação notória e crescente das sociedades contemporâneas. Todos estes temas são abordados pelo professor da Universidade Virginia Tech numa entrevista conduzida por Diogo Vaz Pinto.

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Pietro Lorenzetti, O sonho de Sobach, 1329 © Fotografia: Scala, Florença / Pinacoteca Nazionale, Siena

Professor do departamento de História da Universidade Virginia Tech, Roger Ekirch é um historiador que se especializou no período inicial da constituição dos Estados Unidos, tendo sido levado a montar um intrincado esquema de antecedentes e relações do Novo Continente com a Europa, aventurando-se mais tarde numa visão compreensiva da forma como as pessoas dormiam e prosseguiam a sua vida na ausência do Sol, desde o período medieval até à Revolução Industrial. Esta é a matéria do livro At Day’s Close, um relato da vida ao longo de séculos durante as horas da noite e de sono, articulando indícios e traçando um rastro de migalhas através de uma extensa pesquisa feita ao longo de mais de uma década em arquivos e bibliotecas públicas, recolhendo informações no folclore, nos livros de memórias, na correspondência privada, bem como nos registos dos tribunais ou relatórios médicos, traçando assim uma história da vida privada enquanto o Sol dava a volta e os actos e gestos eram medidos à luz de velas, ao passo que muitas outras coisas só eram possíveis graças ao abrigo da escuridão.

Se a História não é um livro de auto-ajuda, por vezes ajuda descobrir que há padrões que à luz dos hábitos actuais podem parecer disfuncionais, mas na verdade, nalguns casos, até podem ter sido a norma. Foi na década de 80, quando o historiador norte-americano Roger Ekirch estava a fazer pes- quisas para um livro sobre os hábitos nocturnos no período que antecedeu a Revolução Industrial, que, nos arquivos de uma biblioteca pública de Londres, deu com referências a «primeiro sono» e «segundo sono» num relatório criminal do século XVII.

DIOGO VAZ PINTO  Como é que foi despertado este seu interesse pela vida nocturna, pelos nossos padrões de sono ao longo dos tempos?

ROGER EKIRCH  Antes deste At Day’s Close tinha escrito dois outros livros, e ambos versavam sobre os primeiros tempos da história da América, que era a matéria da minha licenciatura. Na altura, eu e um colega nascido em Paris discutíamos os temas de investigação que gostaríamos de vir a desenvolver. Foi ele que teve a ideia de trabalharmos sobre o sono, sobre como tinha evoluído a forma como dormíamos. Achei o tema fascinante, e a verdade é que já me tinha perguntado porque é que não havia nenhum estudo significativo sobre os nossos hábitos de sono ao longo dos tempos. Acontece que esse meu colega não chegou a acabar a licenciatura e eu herdei o projecto, em meados da década de 80. O problema é que, com o passar dos anos, os horizontes do projecto original continuavam a desdobrar-se e, se inicialmente pensei que devia restringir-me aos arquivos em língua inglesa, comecei a reunir cada vez mais informação das colónias britânicas, assim como dados que me chegavam da Europa continental. A certa altura, quando estava imerso no levantamento de informação, fiz duas descobertas que ajudaram a aliviar a minha ansiedade por não saber se teria matéria suficiente sequer para preencher um capítulo. A primeira foi a descoberta de que até ao começo da modernidade, entre os finais da Idade Média até à Revolução Industrial, as pessoas levavam o sono muito a sério, independentemente da sua classe social. A partir do momento em que se alcançava alguma segurança económica, a compra de uma boa cama era uma das prioridades. No testamento, era comum a cama ser dos artigos mais proeminentes, com o qual o testamentário mostrava a sua preferência por um dos herdeiros. Isto é um indicador da importância dada ao sono. A segunda descoberta que fiz, nos Arquivos Nacionais, em Londres, foi uma série de depoimentos, tanto de vítimas de crimes como de testemunhas, sobre o «primeiro sono». Isto intrigou-me e tentei perceber o significado da expressão. Felizmente, por essa altura já havia algumas bases de dados com obras literárias, sobretudo poemas e peças de teatro, em que me foi possível pesquisar o termo tanto de originais em inglês como de obras traduzidas, e foi assim que começaram a surgir pistas. Dei-me conta de que havia uma familiaridade na forma como era referido esse padrão de sono, hoje estranho para nós. Eram referências bastante usuais, o que dava a entender que qualquer pessoa de então sabia do que se tratava. O que se subentendia era que, entre dois períodos de sono, havia em média uma interrupção de, pelo menos, uma hora, durante a qual as pessoas se ocupavam com uma série de afazeres: meditar, rezar, ter relações sexuais, realizar tarefas domésticas, ocupações que não exigissem grande iluminação. Em 1995, deparei-me com um artigo do New York Times com os estudos clínicos conduzidos por Thomas Weir, um psiquiatra e especialista do sono, no National Institute of Mental Health, estudos que
envolveram quinze homens voluntários que durante a noite não tinham qualquer acesso a luz artificial e que, ao fim de três semanas, começaram a revelar um padrão bifásico ou segmentado do sono. As descobertas deste estudo não eram exactamente coincidentes com o que eu havia descoberto nos arquivos históricos, mas eram bastante próximas. E Weir tentava explicar este fenómeno, enfatizando a ausência da luz artificial, o que estava de acordo com os indícios no meu levantamento. Contactei-o e iniciámos uma correspondência em que ficou claro que ele estava tão entusiasmado como eu em relação à complementaridade das nossas pesquisas. A partir de perspectivas diferentes chegámos a resultados bastante similares. Depois do livro, entre os vários artigos que publiquei, o mais importante é de 2015, no qual tento demonstrar que nas sociedades ocidentais, até à generalização do uso de luz artificial, este era o padrão de sono dominante. Mas o facto é que este padrão se mantém até muito mais tarde, bem depois da Revolução Industrial, em comunidades onde a noite ainda impõe o seu manto de escuridão. Há referências que vão até ao século XX e, no meu levantamento, encontrei algumas que remontam à Grécia e à Roma antigas. Até Homero parece referir-se a este sono segmentado.

"No testamento, era comum a cama ser dos artigos mais proeminentes, com o qual o testamentário mostrava a sua preferência por um dos herdeiros."

DVP  É curioso como a apreensão e o estudo sobre os padrões de sono têm vindo a assumir uma importância cada vez maior, revelando que, em média, nas sociedades ocidentais, as pessoas passaram a dormir cada vez menos horas. Em 24/7. O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono, Jonathan Crary aponta para os esforços sucessivos da nossa sociedade para tentar criar um regime de produção e consumo que a noite não vem interromper.

RE  Talvez sejam estas perturbações que me levam, actualmente, a falar mais com médicos do que com historiadores ou investigadores. E, embora nem toda a comunidade científica esteja de acordo com as teses que tenho defendido, encontro um grande número de pessoas interessadas neste trabalho. Parece-me que a minha pesquisa veio obrigar a rever a ideia do que é um padrão de sono normal. Não posso afirmar que um padrão de sono bifásico seja o padrão normal para toda a humanidade até ao período da Revolução Industrial, mas o que pude demonstrar com a publicação do meu livro e com o trabalho que tenho desenvolvido desde então é que a ideia de um sono consolidado de oito horas seguidas é uma invenção moderna, embora tenha encontrado referências de pessoas que até à Primeira Guerra Mundial ainda tinham um sono bifásico. Outra razão para este interesse dos médicos pela minha pesquisa é a minha tese de que a insónia que se sofre a meio da noite, a principal perturbação do sono no nosso tempo, é ainda um eco persistente desse anterior padrão de sono. Despertar a meio da noite era a norma. Só no final do século XIX e início do século XX é que começam a surgir as primeiras referências a esta forma de insónia, e a partir de então passa a ser encarada como uma perturbação do sono bastante comum.

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