Assunto
Democracia agonística e populismo
Chantal Mouffe

Chantal Mouffe, professora de teoria política na Universidade de Westminster, Inglaterra, prossegue neste artigo a formulação de algumas ideias que tem desenvolvido nos seus livros: uma concepção agonística da política, isto é, que não procura o consenso e integra os afectos, as paixões; e uma recuperação de alguns aspectos do populismo para uma radicalização da democracia.

Começarei por delinear a minha concepção do político. Propus distinguir entre o político, que está ligado à dimensão de antagonismo presente em todas as sociedades — um antagonismo que pode aflorar no seio de uma grande variedade de relações sociais —, e a política, que visa estabelecer uma ordem e organizar a coexistência humana em condições atravessadas pelo político e, portanto, sempre caracterizadas pelo conflito. Encontramos esta distinção entre o político e a política em outras teorias do agonismo, ainda que nem sempre com o mesmo significado. Aliás, podemos até distinguir duas maneiras contrárias de definir o político: há teorias segundo as quais o político remete para um espaço de liberdade e acção comum, enquanto outras o vêem como lugar de conflito e antagonismo. É nesses entendimentos opostos que podemos encontrar a origem da divergência fundamental entre as diferentes teorias do agonismo. A minha tese é a de que só quando se reconhecer o carácter inerradicável do conflito e do antagonismo é que será possível pensar de maneira propriamente política e enfrentar o desafio que se apresenta à democracia.

Para compreender a dimensão do político é necessário admitir a existência de conflitos que não podem ter uma solução racional: é precisamente isto que se quer dizer com «antagonismo». Como é evidente, nem todos os conflitos são antagónicos por natureza; mas são-no os conflitos propriamente políticos, já que envolvem sempre decisões que não podem ser tomadas de maneira estritamente racional. A vida política nunca conseguirá livrar-se do antagonismo, por ser indissociável da acção pública e da formação de identidades colectivas. Na política visa-se constituir um «nós» num contexto de diversidade e conflito; para isso, contudo, é preciso distinguir o «nós» de um «eles», e há sempre a possibilidade de, dentro de certas condições, este nós/eles tomar a forma de um confronto antagónico amigo/inimigo. É por isso que defendo que a questão fulcral para a política democrática não é alcançar um consenso sem exclusão — que consistiria em criar um «nós» sem um «eles» correspondente —, mas estabelecer a discriminação nós/eles de um modo que seja compatível com as instituições democráticas. É algo a que a maior parte dos teóricos da democracia liberal se tem esquivado, em resultado da visão inadequada que têm do pluralismo. Ainda que reconheçam que vivemos num mundo em que coexistem múltiplos valores e perspectivas, e que é impossível, por razões empíricas, cada um de nós adoptá-los a todos, esses teóricos imaginam que, todos reunidos, os valores e perspectivas formam um conjunto harmonioso e não conflituoso. Este tipo de pensamento é, portanto, incapaz de explicar a natureza necessariamente conflituosa do pluralismo, que decorre da impossibilidade de reconciliar todos os pontos de vista, e por isto é inevitável que venha a negar a dimensão antagónica do político.

De acordo com o modelo «agonístico» que tenho vindo a desenvolver em diversos textos, conceber a democracia pluralista de uma maneira que não negue a dimensão antagónica pressupõe dois modos possíveis de manifestação dessa dimensão: como um confronto amigo/inimigo ou como um confronto entre populismoadversários. É a este último que proponho chamar «agonístico». O confronto agonístico é diferente do antagónico não porque permite o consenso, mas porque o oponente é considerado, em vez de um inimigo a destruir, um adversário cuja existência é percebida como legítima. As suas ideias serão combatidas vigorosamente, mas o seu direito a defendê-las nunca será posto em causa. Não chega, contudo, a desaparecer a categoria de inimigo, mantendo-se pertinente no que concerne àqueles que, por rejeitarem a consensualidade do conflito na própria base da democracia pluralista, não podem tomar parte na luta agonística. A questão dos limites do pluralismo é então fundamental para a democracia, e não há maneira de lhe escapar.

A distinção entre antagonismo (relação amigo/inimigo) e agonismo (relação entre adversários) permite compreender porque é que, ao contrário do que acreditam muitos teóricos da democracia, não é necessário negar a inevitabilidade do antagonismo para poder conceber uma ordem democrática. Pelo contrário, o confronto agonístico, longe de representar um perigo para a democracia, é mesmo a condição para a sua existência. É claro que a democracia não pode sobreviver sem certas formas de consenso que têm que ver com a fidelidade aos valores ético-políticos que fundam a sua legitimidade e às instituições em que estes se inscrevem; mas a democracia deve também viabilizar a expressão agonística do conflito, que exige que os cidadãos tenham a possibilidade genuína de escolher entre alternativas reais.

"Defendo que a questão fulcral para a política democrática não é alcançar um consenso sem exclusão — criar um nós sem um eles —, mas estabelecer a discriminação nós/eles de um modo que seja compatível com as instituições democráticas."

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POLÍTICA E HEGEMONIA

De maneira a perceber adequadamente a natureza da luta agonística, é também necessário introduzir a categoria da hegemonia. Compreender o político como a possibilidade sempre presente do antagonismo implica reconhecer que não existe um entendimento final e que a indecidibilidade permeia todas as ordens. É precisamente a esta dimensão que se refere a categoria da hegemonia, ao mostrar que todas as sociedades são produto de práticas que procuram instituir a ordem no seio da contingência. O social é constituído por práticas hegemónicas sedimentadas, ou seja, práticas que ocultam os actos originários das suas instituições políticas contingentes e que dão a aparência de derivar de uma ordem natural. Esta perspectiva revela que todas as ordens resultam da articulação temporária e precária de práticas contingentes; são hegemónicas por natureza, e políticas na sua origem. Todas elas são estabelecidas através da exclusão de outras possibilidades e expressam sempre uma estrutura particular de relações de poder: daí o seu carácter político.

O que está em causa na luta agonística é a própria configuração das relações de poder que estruturam cada ordem social e o tipo de hegemonia que constroem. É um confronto entre projectos hegemónicos contrários que nunca pode ser reconciliado pela razão. Assim, a dimensão antagónica está sempre presente, mas é encenada por meio de um confronto cujos procedimentos são aceites pelos adversários. De acordo com esta perspectiva do agonismo, todas as ordens sociais são instituídas politicamente e o terreno em que ocorrem as intervenções hegemónicas, sendo já produto de práticas hegemónicas anteriores, nunca é neutro. Deste modo, vê-se a esfera pública como um campo de batalha em que diferentes projectos hegemónicos se confrontam sem possibilidade de reconciliação final.

"O meu objectivo é desafiar a visão racionalista dominante na teoria política democrática, expondo o papel crucial desempenhado pelos afectos na construção de identidades políticas."

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PAIXÕES EM POLÍTICA

Depois destas considerações gerais, quero examinar o papel das «paixões», que considero central no campo da política. Ao usar o termo «paixões», pretendo criar uma demarcação em relação ao assunto das emoções individuais. Para ser mais precisa, com «paixões» quero designar um certo tipo de afectos comuns, aquele que é mobilizado politicamente na construção da forma nós/eles de identificação. O meu objectivo é desafiar a visão racionalista dominante na teoria política democrática salientando o carácter simultaneamente colectivo e faccioso da acção política e expondo o papel crucial desempenhado pelos afectos na construção de identidades políticas.

Uma das minhas principais críticas às teorias da democracia liberal tem que ver com a sua incapacidade de aceitar esta dimensão afectiva, uma incapacidade que entendo como consequência da imagem que têm da acção política: o indivíduo age movido ou pelos seus interesses, ou por preocupações morais. Isto impede-as de reconhecer a natureza colectiva dos agentes políticos e de levantar uma das questões fulcrais da política: como é que são criadas as formas de identificação colectiva?

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