Assunto
Jorge Gaspar: «O ordenamento do campo precede o ordenamento da cidade»
António Guerreiro

Nesta entrevista, Jorge Gaspar mostra que o seu conhecimento, enquanto geógrafo, do território — português e europeu — e das mais variadas questões relativas ao campo e à cidade, se prolonga numa cultura literária e artística que confere ao seu discurso a capacidade de atravessar fronteiras disciplinares e encher-se de aspectos curiosos e pertinentes.

Jorge Gaspar, geógrafo e urbanista, Professor Emérito da Universidade de Lisboa, coleccionador de arte contemporânea portuguesa e, com a sua mulher, Ana Marin, dinamizador e mecenas de um programa de exposições e residências para jovens artistas em Alvito, onde tem uma segunda casa e onde reuniu grande parte da colecção, conhece o território português de lés-a-lés, as cidades e os campos, a geografia, a história, a cultura. Quando começa a falar destes assuntos, parece um mapa requintado de geografia física e humana, daqueles cheios de linhas, formas e cores. Se quisermos encontrar uma personalidade da sua área científica com o qual compará-lo, Orlando Ribeiro, de quem foi aluno, é talvez o nome que se impõe imediatamente.

Esta entrevista é sobre um tema preciso: a cidade e o campo, nas suas oposições e continuidades geográficas e históricas. E decorreu no edifício do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território, o IGOT, na Cidade Universitária, onde Jorge Gaspar mantém um gabinete. Ao longo da conversa, ficaremos a saber que a sua relação com a zona onde é hoje a reitoria da Universidade e o relvado em frente que desce até ao Campo Grande é muito antiga, faz parte do seu «romance das origens» e não apenas da sua vida académica. Ali, viveu ele a sua infância; aquele território, antes de ser o coração da Cidade Universitária, foi uma quinta da família. A entrevista podia ter começado por aqui: a cidade cosmopolita do conhecimento, no passado relativamente recente, foi campo de cultivo.

Para a entrevista, Jorge Gaspar veio preparado com uma antologia de citações, passagens d’A Ilustre Casa de Ramires e sobretudo d’Os Maias, mas também de um romance de Agustina Bessa-Luís, onde o campo é evocado, representado, caracterizado. Serviram estas citações para Jorge Gaspar mostrar a ocorrência do campo como tópico amplamente representado na literatura, onde ele encontra definições que variam historicamente em função de valores estético-culturais, mas também em função da história do urbanismo. Desde que o Renascimento inventou o conceito de paisagem, o campo tornou-se objecto de muitas metamorfoses e figurações estéticas. Das várias citações de que se muniu Jorge Gaspar, que poderiam ser o corpus de um estudo temático, transcrevemos esta passagem d’Os Maias:

Mas o Ega resistia. O campo, dizia ele, era bom para os selvagens. O homem, à maneira que se civiliza, afasta-se da natureza; e a realização do progresso, o paraíso na Terra, que pressagiam os Idealistas, concebia-o ele como uma vasta cidade ocupando totalmente o Globo, toda de casas, toda de pedra, e tendo apenas aqui e além um bosquezinho sagrado de roseiras, onde se fossem colher os ramalhetes para perfumar o altar da Justiça.

Depois de fazer este percurso pela literatura, à maneira de um intróito, Jorge Gaspar prosseguiu sem ser preciso fazer-lhe qualquer pergunta.

JORGE GASPAR  Trouxe aqui um livro fabuloso, Town and Country Planning, publicado em 1941, de um grande urbanista inglês, sir Patrick Abercrombie, que trata do planeamento conjunto da cidade e do campo. Ele iniciou esta luta nos anos 20, em Inglaterra, e criou mesmo uma associação que ainda existe, o CPRE, Council for the Preservation of Rural England.

ANTÓNIO GUERREIRO  Nesse tempo, o que é que ameaçava a Inglaterra rural?

JG  Era a ameaça urbana e industrial. No mundo contemporâneo, tudo é acelerado pela Revolução Industrial e pelo desastre ambiental por ela causado. Preservar a Inglaterra rural era visto como um acto de salvação. Esta associação, hoje em dia, actua também na esfera urbana porque entendeu que para preservar o campo, o countryside, era preciso ordenar melhor a cidade. Numa fase posterior, tem de ser referido o nome de Peter Hall e o seu livro de 1973, The Containment of Urban England, sobre como conter o crescimento urbano. Peter Hall faz críticas àquela primeira tentativa de Abercrombie de fixar o campo. Town and Country Planning foi um dos motores da periurbanização, a urbanização marginal, aquilo que vem a seguir ao suburbano. Um dos grandes impulsionadores do periurbano foi este acto que procurava criar delimitações muito estritas entre zonas urbanas e zonas rurais, o que acabou por fazer do campo um grande atractivo. Podemos ver isto à luz da actualidade, em que se acumulam vários factores que levam a que se tenha criado o desejo de uma fuga para o campo. Mas se esta corrida sucedesse de facto em larga escala, iríamos ter no campo movimentos de urbanização, e certamente a pior das urbanizações, que é a urbanização difusa. A urbanização difusa em Portugal, que se verifica sobretudo no Centro e Litoral Norte, é uma urbanização in situ, como eu lhe chamei. São as pessoas rurais e os seus descendentes, que abandonam a agricultura e vão trabalhar nas fábricas e nos serviços. Muitos fazem deslocações pendulares de casa para a fábrica, continuam a ter a sua casa no campo. Esta população urbaniza-se. Uma das características da urbanização em relação à actividade rural agrária é o ritmo de vida, o horário, tanto diário como anual. A população tem ritmos de tempo diferentes, consoante seja da cidade ou do campo, e é essa diferença que determina se é urbano ou se é rural.

"A cidade copiou o bom arranjo do campo, que é muito anterior. Quando se desenvolvem os conhecimentos de geometria, eles são aplicados nos campos."

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João Hogan, Sem título, 1969 © Fotografia: João Neves

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João Hogan, Sem título, 1969 © Fotografia: João Neves

AG  Mas não reside unicamente aí a diferença tão interiorizada e tão persistente entre campo e cidade…

JG  A palavra «campo» usa-se nos nossos documentos desde o final da Idade Média ou mesmo antes e vai adquirindo diferentes contornos. Veja, por exemplo, como ela está presente n’ Os Maias, muitas vezes sob a forma de uma discussão sobre a oposição cidade–campo, ou então como um retiro. Carlos arranja a Maria Eduarda «uma casa de campo». E veja também como chega aos nossos dias a ideia de que o campo tem um papel regenerador que nos salva dos pecados e malefícios da cidade. Veja a limpeza, o papel regenerador do campo, que chega até hoje. Na discussão sobre as vantagens do campo e as vantagens da cidade, os ingleses são os mais irredutíveis. Consideram o campo superior à cidade e isso explica-se porque a Inglaterra foi muito mais destruída pela Revolução Industrial. Os romances de Charles Dickens mostram uma cidade onde tudo é pútrido, miasmático, sujo.

AG  Mas, além das representações literárias, qual será a definição precisa de campo?

JG  O campo é a terra agricultada que está para lá da cidade. Estou a pensar numa imagem de Bolonha que devo a um italiano, Emilio Sereni, que escreveu uma monumental história da paisagem agrária italiana. Nesse livro fantástico, ele mostra uma imagem onde se vê uma parte de Bolonha, a muralha e o campo para lá dela. E o que se vê de um lado e de outro é uma organização geométrica. Tal como as vinhas estão alinhadas, a mesma atitude geométrica encontra-se no planeamento da cidade. E isto levanta uma questão muito curiosa: então o campo copiou a cidade? Não, é o contrário. A cidade é que copiou o bom arranjo do campo, que é muito anterior. Quando se desenvolvem os conhecimentos de geometria, eles são aplicados nos campos. O Egipto é um bom exemplo disso. Os primeiros grandes avanços da geometria foram aplicados justamente para delimitar propriedades no Nilo, porque havia enchentes anuais que destruíam tudo. Eles tinham de ter mapas das propriedades. Esse é o princípio do agrimensor, isto é, do geómetra. Leonardo da Vinci foi um grande geómetra. Um dos seus trabalhos foi desenhar as alterações do curso do rio Arno.

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