Assunto
A metacidade
Pedro Ignacio Alonso

Pedro Ignacio Alonso, arquitecto e professor de teoria da arquitectura na Universidade Católica do Chile, escreve sobre a validade da dicotomia cidade-campo, sobre a problemática que ela suscita num tempo em se deu a contracção do mundo através da velocidade e, por conseguinte, as cidades, por mais distantes que estejam umas das outras, formam uma mesma área metropolitana.

Thomas Struth

Shinjuku-ku, Tóquio, 1986 © Thomas Struth

 

Diz-se que a Terra já não é o que era. E é verdade, se tivermos em consideração as transformações avassaladoras produzidas pelo aquecimento global e a crise ambiental causada por inúmeros níveis de contaminação dos solos, da água e do ar. Nesta, inclui-se ainda o impacto ecológico da poluição luminosa à noite nas cidades, que de resto nos impede completamente de ver as estrelas a partir de zonas urbanas e das suas redondezas.

A par da poluição provocada pelas substâncias que dão cabo do meio ambiente, o filósofo, teórico cultural e urbanista francês Paul Virilio sugere que, sem dúvida, «deveríamos também ser capazes de detectar a poluição súbita das distâncias e dos períodos que está a degradar a extensão do nosso habitat»1. Refere-se à velocidade e à maneira como as telecomunicações e os meios de transporte ultra-rápidos têm transformado radicalmente as antigas relações entre tempo e espaço à escala planetária. O que propõe, assim, é uma abordagem a este problema diferente daquela em que os ecologistas continuam a insistir. Um problema que certamente passa despercebido nos relatórios do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas sobre aquecimento global.

Na verdade, estas preocupações já haviam sido articuladas, antes de Virilio, pelo artista e sociólogo britânico John McHale, que no início dos anos 70, no seu livro The Ecological Context, se apercebeu de que «o nosso mundo se tornou de repente muito mais pequeno». Para sustentar esta observação, publicou o diagrama de uma investigação do Centro Internacional de Desenvolvimento Industrial, da Universidade de Stanford, sobre «a contracção do nosso planeta pelo aumento global da velocidade de transporte e de comunicação».

O que há de novo nas asserções de Virilio, porém, é o facto de uma tal contracção do mundo ser considerada o resultado de um tipo de poluição — a velocidade — que ele associa à irrupção daquilo a que chama a «cidade-mundo», «inteiramente dependente da telecomunicação»2. Propõe então um novo tipo de ecologia, a Ecologia Cinzenta, concebida de maneira a descrever e compreender uma situação que não tem que ver apenas com contaminações do ar, da água, da luz ou do som, mas acima de tudo com «o fim da oposição entre cidade e campo». A aceleração das mudanças tecnológicas e a obliteração do espaço representam, de acordo com Virilio, o fim de dicotomias simplistas entre cidade e campo, ou entre o urbano e o não-urbano. Na mesma linha, John McHale afirmara que «já não há divisão possível entre fábrica e exploração agrícola ou, no mesmo sentido, entre cidade e campo»3.

É talvez paradoxal que essas dicotomias simplistas ainda se mantenham, pelo menos se pensarmos no tema de Countryside, The Future, uma exposição recente de Rem Koolhaas em parceria com o gabinete AMO no Museu Guggenheim, em Nova Iorque: a premissa de base deste projecto de curadoria torna essa oposição explícita logo à partida, fornecendo dados para reforçar a divisão entre o urbano e o não-urbano. O «campo», como afirmam, são os 98% da superfície da Terra não ocupados por cidades, o que inclui territórios rurais, remotos e selvagens. Colocadas neste contexto, as teses propostas por McHale e Virilio trazem à luz uma polémica ainda por resolver.

Mas tal como os conceitos, também os números podem ser enganadores. Abordagens alternativas à distinção entre cidade e campo poderiam apontar 3% dos terrenos como urbanos e 38% como agrícolas. Para completar a estimativa, a Gronelândia, a Antártida, os glaciares e as calotas de gelo corresponderiam a 10% da Terra, com os restantes 49% ocupados por outras paisagens selvagens como florestas, desertos e montanhas. Estas percentagens, contudo, por levarem em conta apenas as superfícies continentais, excluem o mar. Se na análise final incluirmos os 70,8% do planeta que correspondem a oceanos, os números mudam para apenas 0,9% de áreas urbanas e 11,1% de terrenos agrícolas, com 2,9% para a Antártida, a Gronelândia, os glaciares e as calotas de gelo, e os restantes 14,3% pertencendo a florestas, desertos, montanhas e por aí em diante.

Parece-nos relevante incluir os oceanos nestes cálculos, já que também eles estão sujeitos a contaminação e à velocidade humana. Ou, melhor, à contaminação da velocidade humana. O esbatimento de fronteiras que Virilio aqui identifica provém de uma avaliação da dimensão da Terra que introduz o tempo como factor fundamental. De forma contundente, refere «armas de comunicação maciça» que nos conduzem a uma «terceira era de guerra e um novo estádio da cidade, ou, mais exactamente, da metacidade pós-industrial». De acordo com este ponto de vista, a oposição simplista entre cidade e campo foi há muito superada por uma cidade-mundo (e/ou metacidade) que é o produto de uma nova relação com as distâncias no tempo e no espaço «criada pela velocidade absoluta da radiação electromagnética»4.

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João Hogan, Sem título, 1972 © Fotografia: João Neves

 

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João Hogan, Sem título, 1972 © Fotografia: João Neves

 

"A aceleração das mudanças tecnológicas e a obliteração do espaço representam o fim de dicotomias simplistas entre cidade e campo, ou entre o urbano e o não-urbano."

Assim, uma Ecologia Cinzenta atenta à biosfera e ao ritmo acelerado da degradação desta substitui-se à distinção entre o urbano e o não-urbano (uma clivagem que se torna a si mesma irrelevante do ponto de vista da poluição). É sabido que a grande maioria dos ecossistemas do nosso planeta se encontra degradada, em resultado da acção humana directa ou indirecta. Parte desta degradação «é verificada em modificações substanciais da composição, estrutura e funcionamento dos ecossistemas que estão vinculadas a problemas como a extinção global de espécies e a alteração de ciclos bioquímicos, e que resultam de transformações globais no meio ambiente»5. Do ponto de vista da ecologia, subitamente, as funções normais dos limites urbanos já não importam. McHale insistiu nisto, dizendo que «a poluição do ar, da água e do solo não é local — o ar não está circunscrito a fronteiras locais ou nacionais, tal como as águas não o estão». Os 99,1% não estão suficientemente distantes para serem considerados remotos ou selvagens, se tivermos em conta a combinação entre espaço e tempo, ou a ideia de distância e a maneira como começou a afectar a nossa consciência. Postos à prova pela actividade humana, os 99,1% estão já poluídos e pertencem à metacidade mundial. A contracção do planeta através da velocidade e da telecomunicação é, na verdade, o desaparecimento virtual de toda a distância. De repente, Nova Iorque e Londres, Xangai e Los Angeles passam a pertencer à mesma área metropolitana, sem nenhuma extensão real de terreno entre si. A velocidade parece ter-nos finalmente permitido alcançar à escala planetária a Cidade Nua de Guy Debord, uma dimensão verdadeiramente psicogeográfica que retira da imagem tudo o que é suprimido pelos efeitos do ambiente geográfico tal como organizados pelo nosso comportamento e os nossos níveis de percepção.

[...]

1. Paul Virilio, Open Sky, Londres: Verso, 1997, p. 58.
2. Ibidem, p. 59.
3. John McHale, The Ecological Context, Nova Iorque: George Braziller, 1970, p. 8.
4. Paul Virilio, op. cit., p. 60
5. Pablo A. Marquet et al., «Los ecosistemas del desierto de Atacama y área andina adyacente en el norte de Chile», Revista Chilena de Historia Natural, Santiago: n.º 71, 1998, p. 594. Richard Stites, Revolutionary Dreams: Utopian Vision and Experimental Life in the Russian Revolution, Oxford: Oxford University Press, 1989, p. 193.