Registo
Humano, mais humano: Proust reencarnado
Jean-Marc Quaranta

No centenário da morte de Marcel Proust, o seu reconhecido especialista Jean-Marc Quaranta mostra, num novo ensaio escrito para a Electra, como a obra do grande escritor francês e todas as investigações que tem gerado obrigam a olhar a relação com a sua vida de outra maneira, mudando o próprio estatuto literário da figura do autor. Trata-se, por isso, de uma autêntica e original «reencarnação». Jean-Marc Quaranta é professor universitário e membro da equipa Proust. É autor da obra Un amour de Proust. Alfred Agostinelli (1888–1914) e foi ele quem preparou, estabeleceu, apresentou e anotou a edição do romance Le Temps perdu, que constituiu uma primeira versão dos dois primeiros volumes de Em Busca do Tempo Perdido, e que permaneceu inédito, tendo sido apenas publicado em 2021.

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Marcel Proust, 1887

Todas as imagens: Paul Nadar

 

Cem anos após a sua morte (1922), pouco mais de cento e cinquenta anos após o seu nascimento (1871), Marcel Proust tornou-se um dos escritores mais importantes do século XX. A sua escrita característica abriu o caminho para o nouveau roman; a forma como a sua vida lhe deu o desejo de escrever, e alimentou a sua obra, faz dele um precursor da autoficção. Os escritores mencionam-no frequentemente, os cronistas citam-no, muitas vezes sem o ter lido; o episódio da madalena é usado para ilustrar, em programas de rádio e televisão, jornais e nas conversas mais banais a experiência singular da memória que ressurge a partir de uma sensação, quando menos se espera. Proust tornou-se um nome que circula, um episódio conhecido de todos, um romance que se lê — em parte1 —, alguns estereótipos: as frases longas, a madalena (de novo), a homossexualidade, o ciúme, o snobismo, a crónica de uma sociedade em metamorfose; Proust é simultaneamente um indicador, um modelo, uma referência: uma marca.

A nossa concepção do escritor, influenciada pelo Iluminismo e pelo Romantismo, incita-nos ainda mais a ver nele um estilo, um universo, uma essência, um espírito puro, tudo menos um homem. O estruturalismo, ao ter-nos ensinado a separar o texto da instância que o enuncia e do seu contexto de escrita, transpôs para a crítica literária e para o estudo das Letras o «desaparecimento elocutório do poeta»2. A isto, acrescenta-se a distinção que o próprio Proust estabelece entre o Eu social e o Eu criador, em alguns rascunhos publicados com o título Contra Sainte-Beuve: «um livro é o produto de um outro eu diferente daquele que manifestamos nos nossos hábitos, na sociedade, nos nossos vícios»3.

Contudo, desde há alguns anos para cá, e graças, em particular, a estes dois aniversários, o «grande autor francês» reencarna. A metempsicose é no incipit de Em Busca do Tempo Perdido uma das metáforas da memória e da continuidade do Eu. Todavia, não se trata aqui da reencarnação de uma alma num novo corpo, mas de uma «ressurreição do corpo» do autor e de tudo o que está em torno da escrita do texto, contradizendo assim a ideia da «morte do autor»4. Algumas publicações recentes, e outras mais antigas, ilustram esta reencarnação do escritor e, sem pôr em causa a importância do texto, reposicionam a vida do autor e tudo o que está em torno da sua criação.

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Sarah Bernhardt em Izeïl, 1894

 

"O estudo de Alfred Agostinelli (motorista e, mais tarde, secretário), que serviu como principal modelo para Albertine, a jovem mulher, permite-nos apreender a forma como a vida afectiva do escritor molda o romance e acompanha a sua génese."

Este movimento, actualmente generalizado, tem a sua origem no final dos anos 80. A edição da Bibliothèque de la Pléiade5, ao integrar um número considerável de rascunhos da obra, começou a instalar a ideia, junto de um público instruído, de que este texto excepcional não tinha saído totalmente delineado da cabeça do seu autor, mas que era o fruto de uma génese complexa que se estendeu ao longo de vários anos. A publicação, na mesma época, de uma versão dactilografada, até então desconhecida, de Albertina desaparecida6 veio confirmá-lo. Nela, o escritor tinha rasurado, poucos dias antes da sua morte, uma grande parte do texto, sem que se conheçam as suas intenções.

A primeira biografia de Proust, de carácter académico7, ao ter acrescentado estes elementos genéticos ao que conhecíamos da vida do escritor e do seu círculo, ajudou a reposicionar o romance no tempo de vida do seu autor. Evelyne Bloch-Dano debruçou-se sobre Jeanne Proust8 e analisou o lugar da mãe na construção do Eu do futuro escritor e o papel desta no advento da sua escrita. Pôs também em evidência o «lado judeu» de Marcel Proust, título da obra recente de Antoine Compagnon, que prolonga e enriquece estas descobertas9. Este «solo mental»10 do escritor é também feito da atmosfera da qual imergiu na sua juventude. Os diferentes questionários a que respondeu — e cuja forma passou a ser, mais tarde, designada com o apelido do escritor — constituem outros modos de apreender o meio no qual viveu o jovem Marcel Proust11.

Graças a esta visibilidade dada ao ambiente familiar e social do futuro escritor, desenha-se a figura de um jovem que pertence a um meio burguês, em parte oriundo da burguesia judia assimilada (como Swann), e que frequenta o meio republicano, com ideias sociais progressistas. Esta reinterpretação do autor de Em Busca do Tempo Perdido permite ler o texto de um outro modo. As raízes republicanas do jovem Proust ajudam a explicar a preocupação social do romancista, por exemplo, no episódio em que os ricos que jantam no Grand Hôtel são vistos como habitantes de um «imenso e maravilhoso aquário, diante de cuja parede de vidro a população de Balbec, os pescadores e também as famílias da pequena burguesia» e quando o narrador coloca «a grande questão social […] de saber se a parede de vidro irá proteger para sempre o festim dos bichos maravilhosos e se as pessoas obscuras que espreitam avidamente na noite não virão apanhá-los no seu aquário e comê-los»12.

A atenção inesperada, neste romance da aristocracia e da burguesia, ao povo e à criadagem — quer se trate de Françoise, a criada da família do herói, ou do ascensorista de Balbec — é também elucidada nos estudos que se debruçam sobre as empregadas que serviram Proust. A biografia de Céleste Albaret13 refere a importância do papel da criada na elaboração imaginária e material de Em Busca do Tempo Perdido, e abre a porta do espaço íntimo de Proust; o livro de entrevistas de Céleste Albaret14 aparece aliás como precursor da reencarnação do escritor, o que talvez explique a recepção mitigada de que foi alvo aquando da sua publicação.

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Stéphane Mallarmé e Méry Laurent, 1896

 

1. Nicolas Ragonneau, Proustonomics, cent ans avec Marcel Proust, Mazères: Le Temps qu’il fait, 2021, pp. 67–108.
2. Stéphane Mallarmé, Poemas em Prosa, Trad. de Diogo Paiva, Lisboa: Assírio & Alvim, 2022.
3. Marcel Proust, Contra Sainte-Beuve, Trad. de Mafalda Borges Soares, Lisboa: Chiado Editores, 2018, p. 168.
4. Roland Barthes, «La Mort de l’auteur», Le Plaisir du texte, Paris: Seuil, 1973.
5. Marcel Proust, À la recherche du temps perdu, Jean-Yves Tadié (org.), Paris: Gallimard, 4 vols., 1987–89.
6. Marcel Proust, Albertine disparue, Nathalie Mauriac (ed.), Paris: Grasset, 1987.
7. Jean-Yves Tadié, Marcel Proust, Paris: Gallimard, 1996.
8. Evelyne Bloch-Dano, Madame Proust, Paris: Grasset, 2004.
9. Antoine Compagnon, Proust du côté juif, Paris: Gallimard, 2022.
10. Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido — Do Lado de Swann, Trad. de Pedro Tamen, Lisboa: Círculo de Leitores, 7 vols., 2003, I, p. 195.
11. Evelyne Bloch-Dano, Une jeunesse de Marcel Proust, Paris: Stock, 2017.
12. Marcel Proust, op. cit., 2003, I, pp. 264–65.
13. Laure Hillerin, À la recherche de Céleste Albaret, Paris: Flammarion, 2021.
14. Céleste Albaret, Monsieur Proust, entrevistas com Georges Belmont, Paris: Robert Laffont, 1973.