Assunto
Garrincha e o povo da geral
José Paulo Florenzano

Da autoria de um reputado sociólogo do desporto, consultor de várias instituições como o Museu do Futebol, em São Paulo, este artigo fala das clivagens sócio-raciais entre os clubes brasileiros. Percorrendo alguns aspectos da mitologia futebolística, José Paulo Florenzano detém-se em Garrincha, o «anjo de pernas tortas», que foi um jovem «pingente», isto é, um passageiro que se pendurava no exterior de uma carruagem do comboio para não pagar a viagem que o levava da periferia para o centro do Rio de Janeiro.

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O processo de implantação, difusão e consolidação do futebol no Rio de Janeiro foi balizado pelas relações complexas e contraditórias envolvendo, de um lado, os clubes de elite instalados nos bairros mais privilegiados da Zona Sul e, de outro lado, os clubes populares distribuídos ao longo da malha ferroviária que servia as regiões suburbanas onde habitava a massa trabalhadora.1 A distância estabelecida entre as agremiações inseridas nestes dois circuitos futebolísticos, no entanto, não se delineava apenas em termos geográficos, mas também se revelava em termos sociorraciais, demarcando fronteiras simbólicas de um jogo de poder para o qual o futebol tanto concorria, reforçando-o em muitos aspectos, quanto se opunha, subvertendo-o em pontos cruciais.

À medida que a prática esportiva importada da Europa se popularizava no Rio, os principais clubes da metrópole carioca, Flamengo, Botafogo, Fluminense e Vasco, passavam a recrutar cada vez mais atletas provenientes dos subúrbios distantes, das cidades vizinhas ou, mesmo, das favelas incrustadas nos morros que circundavam a Zona Sul. As resistências contra a presença de pobres e negros nos times da elite iam sendo, pouco a pouco, superadas por um cálculo pragmático movido pela lógica agonística do espetáculo, caracterizando uma mudança de postura justificada pela ideologia da democracia racial, propagada no país desde a década de 30.

As narrativas correlatas do país do futebol e do país da democracia racial reforçavam-se mutuamente, projetando tanto interna quanto externamente uma representação distorcida e idealizada do Brasil, a qual acabaria adquirindo contornos mais nítidos a partir da conquista da Copa de 58. O cronista e dramaturgo Nélson Rodrigues, no Jornal dos Sports, realçava o valor histórico daquela façanha esportiva: «Muitos poderão achar, com sólida obtusidade, que, na Suécia, houve somente o êxito de um time de futebol.» Ledo engano! Segundo o autor, em 1958 tivemos sobretudo a «vitória de todos os humilhados e ofendidos do Brasil», dentre os quais ele destacava o «pingente da Central».2

O comentário de Nélson Rodrigues constitui um exemplo emblemático da narrativa que, em primeiro lugar, construía o Brasil como o país do futebol e, em segundo lugar, atribuía ao futebol o poder simbólico de redimir o povo brasileiro. Mas, além destes dois aspectos interligados, a crônica chama-nos a atenção também pela menção ao pingente da Estrada de Ferro Central do Brasil. Figura familiar ao carioca, presente na paisagem urbana, não deixava de suscitar um misto de inquietação e admiração, sendo, ao mesmo tempo, exaltada em letras de samba e execrada em artigos de jornal. A imprensa, com efeito, noticiava a sua existência diariamente, relegando-a, porém, às colunas policiais. Sendo assim, detenhamo-nos na análise do pingente, pois, conforme pretendemos mostrar, ele nos levará ao cerne da mitologia futebolística criada a partir da conquista do Mundial de 58.

"As resistências contra a presença de pobres e negros nos times da elite iam sendo, pouco a pouco, superadas por um cálculo pragmático movido pela lógica agonística do espetáculo, caracterizando uma mudança de postura justificada pela ideologia da democracia racial."

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No decorrer dos anos 50, os periódicos do Rio noticiavam a rotina constituída pelas quedas fatais de passageiros nas linhas de trem. Dia após dia, o leitor se deparava com pequenas notas a respeito de um estudante adolescente, de um jovem suburbano ou de um operário manual que, ao viajar pendurado do lado de fora do comboio, isto é, como pingente, desequilibrava-se e caía sobre os trilhos, sofrendo uma sequela física ou padecendo a «morte imediata».3 Às vezes, a nota jornalística ressaltava o horror que involucrava os acidentes, como o verificado em uma das estações da Central do Brasil no final de 1953. Um «desconhecido», dizia a reportagem, que viajava de madrugada como «pingente», caiu do comboio «sem ser percebido por ninguém», encontrando a morte «sob as rodas de um dos carros».4

A imprensa carioca recolhia em notas breves os corpos despedaçados pela engrenagem de aço que transportava os trabalhadores do subúrbio para a cidade e depois desta última de volta para o subúrbio, perfazendo um movimento de vaivém ao longo do qual esvaíam-se as existências anônimas para as quais eles estavam destinados. Fosse caindo sob as rodas que moviam os vagões do comboio, fosse chocando-se contra os postes instalados às margens dos trilhos, a morte trágica espreitava os pingentes em cada curva da rede ferroviária.5 O risco, no entanto, não demovia os «rapazes na flor da idade» de abdicarem de uma conduta situada à beira do abismo. Ao contrário, eles pareciam cada vez mais seduzidos por uma aventura que aos olhos dos formadores de opinião se afigurava como um «estranho esporte», praticado com «incrível ligeireza», mercê de uma técnica corporal que se traduzia na arte de tomar o trem em movimento e de viajar pendurado, do lado externo dos vagões.6

O esporte de risco possuía regras não escritas, códigos de honra e equipas rivais formadas com base na inscrição territorial dos jovens no vasto e diversificado subúrbio carioca ou nos municípios que compunham a Baixada Fluminense. A conduta de risco, por sua vez, implicava a habilidade em driblar os obstáculos que surgiam ao longo da viagem, como, em especial, o representado pelo «Poste Bellini». Localizado entre as estações do Engenho de Dentro e do Encantado, ele era responsável por um grande número de acidentes no ramal que passava diante do Estádio do Maracanã. Devido à dificuldade em driblá-lo, os pingentes lhe atribuíram a alcunha de Bellini, alusão ao vigor físico e ao estilo viril do zagueiro do Vasco da Gama, e capitão da seleção brasileira, pelo qual «ninguém passava».7 A nomeação do poste revela-nos o quanto o universo simbólico dos viajantes de trem achava-se inter-relacionado com o dos frequentadores de futebol. De fato, o pingente da Central do Brasil e o torcedor da geral do Maracanã constituíam as duas faces de uma mesma personagem. A geral comportava cerca de 35 mil pessoas, do total de 155 mil lugares do estádio, e localizava-se no setor térreo onde se acompanhava as partidas de pé, em meio à multidão e com escassa visibilidade do campo. Estas condições precárias assemelhavam-se às oferecidas pelo sistema de transporte ferroviário, como de resto reconhecia o Jornal dos Sports: «Dentro de uma lata de sardinhas há muito mais espaço do que dentro de um trem que traz gente para o futebol.»8

1. Leonardo Affonso de Miranda Pereira, Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902–1938), Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
2. Nélson Rodrigues, «A descoberta do Brasil», Jornal dos Sports, 22.07.1958.
3. «Na polícia e nas ruas», Jornal do Brasil, 08.12.1951.
4. «Na polícia e nas ruas», Jornal do Brasil, 04.11.1954.
5. «Bateu com a cabeça no poste e caiu na via férrea», Jornal do Brasil, 11.10.1956.
6. «Campanha a favor dos Pingentes», Jornal do Brasil, 06.12.1956. Cf. Marcel Mauss, «As técnicas do corpo», Sociologia e Antropologia, São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
7. «Central: esperança vem em números que falam em mortes», Jornal do Brasil, 24.07.1960.
8. «Tem direito, mas não deve...», Jornal dos Sports, 18.03.1954.

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