O processo de implantação, difusão e consolidação do futebol no Rio de Janeiro foi balizado pelas relações complexas e contraditórias envolvendo, de um lado, os clubes de elite instalados nos bairros mais privilegiados da Zona Sul e, de outro lado, os clubes populares distribuídos ao longo da malha ferroviária que servia as regiões suburbanas onde habitava a massa trabalhadora.1 A distância estabelecida entre as agremiações inseridas nestes dois circuitos futebolísticos, no entanto, não se delineava apenas em termos geográficos, mas também se revelava em termos sociorraciais, demarcando fronteiras simbólicas de um jogo de poder para o qual o futebol tanto concorria, reforçando-o em muitos aspectos, quanto se opunha, subvertendo-o em pontos cruciais.
À medida que a prática esportiva importada da Europa se popularizava no Rio, os principais clubes da metrópole carioca, Flamengo, Botafogo, Fluminense e Vasco, passavam a recrutar cada vez mais atletas provenientes dos subúrbios distantes, das cidades vizinhas ou, mesmo, das favelas incrustadas nos morros que circundavam a Zona Sul. As resistências contra a presença de pobres e negros nos times da elite iam sendo, pouco a pouco, superadas por um cálculo pragmático movido pela lógica agonística do espetáculo, caracterizando uma mudança de postura justificada pela ideologia da democracia racial, propagada no país desde a década de 30.
As narrativas correlatas do país do futebol e do país da democracia racial reforçavam-se mutuamente, projetando tanto interna quanto externamente uma representação distorcida e idealizada do Brasil, a qual acabaria adquirindo contornos mais nítidos a partir da conquista da Copa de 58. O cronista e dramaturgo Nélson Rodrigues, no Jornal dos Sports, realçava o valor histórico daquela façanha esportiva: «Muitos poderão achar, com sólida obtusidade, que, na Suécia, houve somente o êxito de um time de futebol.» Ledo engano! Segundo o autor, em 1958 tivemos sobretudo a «vitória de todos os humilhados e ofendidos do Brasil», dentre os quais ele destacava o «pingente da Central».2
O comentário de Nélson Rodrigues constitui um exemplo emblemático da narrativa que, em primeiro lugar, construía o Brasil como o país do futebol e, em segundo lugar, atribuía ao futebol o poder simbólico de redimir o povo brasileiro. Mas, além destes dois aspectos interligados, a crônica chama-nos a atenção também pela menção ao pingente da Estrada de Ferro Central do Brasil. Figura familiar ao carioca, presente na paisagem urbana, não deixava de suscitar um misto de inquietação e admiração, sendo, ao mesmo tempo, exaltada em letras de samba e execrada em artigos de jornal. A imprensa, com efeito, noticiava a sua existência diariamente, relegando-a, porém, às colunas policiais. Sendo assim, detenhamo-nos na análise do pingente, pois, conforme pretendemos mostrar, ele nos levará ao cerne da mitologia futebolística criada a partir da conquista do Mundial de 58.
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