Planisfério
Outono no Cairo com Youssef Rakha
André Príncipe e José Pedro Cortes

Youssef Rakha é escritor, jornalista, crítico literário, editor e fotógrafo. Nasceu e vive no Cairo, tendo estudado Inglês e Filosofia no Reino Unido. A sua obra, reconhecida e premiada, dá ao árabe a oportunidade de uma ousada renovação e reinvenção linguística. Nela, o Cairo é uma cidade que se descobre a si própria. Além da ficção, este autor, que cultiva muitos interesses e pratica várias actividades, tem escrito muito sobre a relação entre fotografia e literatura. Na conversa que aconteceu no Egipto, os fotógrafos e editores André Príncipe e José Pedro Cortes falam com Rakha de política, de religião, de arte, de viagens, da vida — da infelicidade a que fugimos e da esperança que nos foge. Com este trabalho em que as palavras e as imagens se desafiam, Príncipe e Cortes continuam a série que iniciaram com Hisham Mayet em Tânger, publicada na Electra 7.

Youssef Rakha, nascido no Cairo, Egipto, a 12 de Junho de 1976, é um escritor. Filho único de um advogado ex-marxista, Elsaid Rakha, e de uma tradutora de inglês para árabe, Labiba Saad, Youssef nasceu e cresceu em Dokki, na margem ocidental do Nilo, onde vive actualmente com a família. Aos dezassete anos mudou-se para o Reino Unido, onde em 1998 obteve uma licenciatura com louvor em Inglês e Filosofia, na Universidade de Hull. Ao regressar ao seu país, juntou-se à equipa do Al-Ahram Weekly, o jornal de língua inglesa com sede no Cairo, para o qual colabora regularmente desde 1999.

Rakha é sobretudo conhecido pelo seu primeiro romance, O Livro do Selo do Sultão: Estranhos incidentes da História na cidade de Marte. Publicado em 2011, este livro é estudado pelo seu uso inovador do árabe, a abordagem pós-moderna ao tema do califado, bem como a reinvenção da cidade do Cairo e sua importância na história da literatura árabe.

Desde 2011, Rakha completou outros dois romances, parte de uma trilogia sobre a Revolução de Janeiro, Os Crocodilos e Paolo. O último foi nomeado para o Booker Árabe em 2017 (selecção do Prémio Internacional de Ficção Árabe de 2017) e recebeu o Prémio Cultural Sawiris de 2017 para Melhor Romance.

Rakha também é conhecido como fotógrafo e editor de um site bilingue sobre literatura e fotografia. Há muitos anos que contribui para a cobertura da cultura árabe em inglês, como repórter, crítico literário e editor cultural.

O seu trabalho explora a língua e a identidade no contexto do Cairo, com ligações fortes ao cânone islamo-árabe e à literatura mundial. Move-se entre vários géneros, tanto em árabe como em inglês, distinguindo-se pelos seus ensaios, poemas e romances. É uma figura literária bem conhecida no Cairo e em Beirute.

© André Príncipe

© André Príncipe

AQUI, AGORA

São 9 da noite de 19 de Outubro de 2021. Está calor, uns 27 graus. Vamos encontrar-nos com o Youssef no bar do Golden Tulip Hotel Flamenco, em Zamalek, a poucos minutos donde estamos. Hoje vamos falar de como ele viveu a Primavera Árabe. Prefere encontrar-se connosco num bar de um hotel internacional. Sente-se mais confortável, mais seguro. Servem-se bebidas alcoólicas, os jogos da Liga dos Campeões passam em ecrãs gigantes. O bar está meio vazio, os números da covid estão a subir em todo o lado.

ANDRÉ PRÍNCIPE  Hoje de manhã fui com o Hisham a uma loja de discos, ele queria comprar uns vinis líbios. À saída, ele disse: «Ó meu Deus, o meu sotaque líbio! Eles não percebem nada!» E depois disse: «O árabe egípcio é a coisa mais intimidante, porque eles eram a cultura. Eles eram os filmes, a rádio.»

YOUSSEF RAKHA  Tradicionalmente, sim, mas já não é bem assim. A maior parte das pessoas entende o dialecto egípcio. Mas os egípcios não fazem nenhum esforço para compreender os outros, porque dominámos os media durante décadas. Na altura em que eu viajava para Beirute, tentava falar árabe libanês. Acabava por se parecer mais com palestiniano, por causa do meu sotaque. Mas o mais engraçado é que ninguém percebia porque é que um egípcio estava a falar outro dialecto.

JOSÉ PEDRO CORTES  Vocês são a voz mais forte?

YR  Agora há uma variante síria e uma variante do Golfo, mas é tudo controlado pelo dinheiro do Golfo. Mesmo quando é a nossa voz, não somos necessariamente nós. Há línguas faladas diferentes… Mas quando escrevemos, são todas a mesma língua. Nesse sentido, é um pouco como o alemão. A língua que escrevemos é diferente da língua que falamos. Acho que o árabe marroquino e o árabe egípcio são bem mais diferentes do que o espanhol e o italiano. Na verdade, até gosto bastante disso. Cresci a pensar que era uma coisa opressiva, que devíamos ter línguas nacionais, como na Europa. Mas agora acho  maravilhoso termos esta continuidade. Não perdemos a nossa língua nacional. Acho que poderíamos ter dicionários e gramáticas para os diversos dialectos. Isso devia ser adoptado, mas ainda não aconteceu. Faria uma campanha a favor disso.

JPC  E essa continuidade também é política, no sentido de que aquilo que está a acontecer no Médio Oriente, por exemplo, também te afecta?

YR  Claro. Na Europa, a ideia do Estado-nação enquanto identidade a que as pessoas aderem está bem mais estabelecida. Aqui, as pessoas mais facilmente se descrevem como muçulmanas, egípcios antigos ou árabes. É por isso que o discurso de Estado, o discurso que defende o Estado, é tão histérico — falta-lhe confiança. Tradicionalmente, no discurso político árabe, o islamismo contrasta com o nacionalismo árabe. Porque o nacionalismo é árabe. Se disseres que és nacionalista no Egipto ou na Síria, não te estás a referir a ser sírio ou egípcio. Também encontras esse sentimento, mas é uma minoria. Em geral, o nacionalismo significa o nacionalismo árabe, que é uma construção, não existe na realidade. Quando ia a cidades árabes para trabalhar nos meus diários de viagem, tive essa epifania, e em Beirute. Ao viajar para estas cidades e escrever sobre a minha estadia nelas estava a tentar resgatar uma herança que não era arabista ou nacionalista árabe, mas que tem que ver com o que significa ser-se árabe, num sentido não político. Definitivamente, acho que isto é algo a considerar. Um sentimento ligado à língua e, em grande medida, a uma herança partilhada, uma cultura partilhada, e eu estava a lidar com isso. Depois, no meu primeiro romance, fui para lá do que significa ser-se árabe e entrei no território do que significa ser-se muçulmano. Descrever-me-ia como um nómada sem Estado nem cultura. Um pensador livre, sim. Mas alguém que não tem grande interesse em estar noutro lugar. Acho que é isso que transmite valor ao meu trabalho e existência, o facto de estar aqui agora, de não estar noutro lugar, e de não fantasiar sobre estar noutro lugar. Estou aqui agora… Estes gressinos são muito bons, não são?

© André Príncipe

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"Na Europa, a ideia do Estado- -nação enquanto identidade a que as pessoas aderem está bem mais estabelecida. Aqui, as pessoas mais facilmente se descrevem como muçulmanas, egípcios antigos ou árabes. É por isso que o discurso de Estado, o discurso que defende o Estado, é tão histérico — falta-lhe confiança."

© José Pedro Cortes

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© José Pedro Cortes

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© André Príncipe

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© José Pedro Cortes

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© André Príncipe

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AP  Sim, são ricos!

YR  São ricos, sim. Por exemplo, essa é uma das palavras que é diferente nos vários dialectos árabes, quando queres dizer que algo é saboroso. Aqui dizemos hilw, que quer dizer «doce». Mas no Líbano e na Síria dizem tayib, que quer dizer «bom». E… na Palestina têm a sua própria palavra: zaki, que quer dizer «cheira bem». Algumas palavras árabes variam de país para país, não sei bem porquê. Como a palavra para «agora». A palavra para «agora» não é a mesma em todo o lado.

AP  Para «agora»?

YR  Sim. As pessoas usam palavras diferentes para dizer «agora».

AP  Agora por essa não esperava eu! Podes falar-nos um pouco sobre o teu envolvimento na Primavera Árabe?

YR  Começou muito antes de 2011. Tenho um passado de esquerda… Nunca fui um marxista convicto, mas era contra o status quo, a ordem global. Mais tarde passei a achar que podíamos concentrar-nos noutras coisas para lá da política, desde que assegurássemos os nossos direitos e liberdades, que são o essencial. Mantive esta posição durante uns cinco ou seis anos. E apesar de o Governo da altura ser mau, as coisas estavam a movimentar-se nessa direcção. Têm de compreender que o Egipto era governado pelo Exército desde 1952. A elite governante ou esteve no Exército, ou esteve ligada a ele. Houve como que um golpe de Estado que se transformou numa revolta popular. Depois disso, o Egipto tornou-se uma espécie de Estado pseudo-socialista, e depois capitalista, embora meio centralizado. E por fim tornou-se extremamente corrupto e incompetente, mas politicamente livre, de certa maneira. Sob pressão americana, obviamente. Talvez por causa da corrupção e da estupidez de alguns governantes, o Exército ficou descontente. Foi algo de que não nos apercebemos, já que eles se tinham retirado por completo. Houve muitos abusos policiais e a polícia era vista como uma milícia protectora dos empresários. Seja como for, não estava completamente convencido de que a revolução pudesse ser organizada no Facebook… Na altura, até gozei com isso no próprio Facebook. Mas depois, no dia em que aconteceu, fui para lá.

© André Príncipe

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© José Pedro Cortes

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