Podemos escrever uma história política do futebol? Que desafios enfrentaremos se o fizermos? Que limites devemos traçar para que a nossa leitura política do fenómeno não se torne abusiva? Como fazê-lo sem contribuir para a expansão do império da política, que tende a subordinar à sua lógica tudo o que lhe é estranho? E o que nos pode ensinar o futebol acerca da nossa forma de imaginar a própria política? Nas próximas páginas, numa digressão histórica que nos levará do primeiro pontapé de bicicleta realizado num Campeonato do Mundo de Futebol até à célebre «mão de Deus» protagonizada por Diego Armando Maradona, procurarei equacionar estas questões.
Uma história política do futebol está repleta de acontecimentos marcantes, de contingências geopolíticas e manifestações ideológicas, de nomes e figuras que se tornaram objecto de culto, onde se projectaram aspirações e visões do mundo. É sobre tudo isto que escreve o historiador José Neves.
DE LEÔNIDAS DA SILVA AO DÍNAMO DE MOSCOVO
O brasileiro Leônidas da Silva foi um dos futebolistas que mais se destacou na terceira edição do Campeonato do Mundo de Futebol, realizada em França em 1938. Os jornalistas que cobriam o torneio encontraram na sua performance indícios de um virtuosismo singular, de que seria exemplar o pontapé de bicicleta que Leônidas efectuara durante a prova. A precedência da execução deste gesto tem sido reivindicada por outros futebolistas sul-americanos, e, não por acaso, na região o pontapé de bicicleta é também conhecido por «chilena». Independentemente do mito acerca das suas origens, a bicicleta que Leônidas efectuou no Mundial de 1938 foi então saudada na imprensa internacional como uma inovação no repertório da modalidade.
Já no Brasil, ao mesmo tempo que se desfazia em elogios a Leônidas, o sociólogo Gilberto Freyre tratava de enaltecer o comportamento da equipa brasileira no seu conjunto. Na verdade, para Freyre, era a própria figura genérica de futebolista brasileiro que estava em causa: o jeito brasileiro de jogar futebol desenhava um horizonte de alegria a que o país atrairia o resto da humanidade. O desencantamento da vida moderna em sociedades europeias cada vez mais rotinizadas encontraria hipótese de redenção num Brasil dionisíaco, sem medo de ser feliz, avesso à burocracia e subtraído aos malefícios da industrialização. Um país que seria a promessa de um futuro maravilhoso, enraizado num passado multirracial, de que Leônidas — ainda hoje recordado como o Diamante Negro — era parte destacada.
A Segunda Guerra Mundial veio ensombrar este horizonte radioso, mesmo se o Brasil entrou no conflito quando este já ia avançado. A guerra alterou os hábitos sociais, transformou as práticas laborais, mudou as relações políticas um pouco por todo o globo — e perturbou o desenvolvimento da prática desportiva. Várias foram as competições regionais e nacionais suspensas, afectadas também pela mobilização militar de milhões de homens jovens. A nível internacional, o interregno foi ainda mais notório. A primeira edição do Campeonato do Mundo de Futebol tivera lugar no Uruguai em 1930, ano do centenário da independência daquele país sul-americano; a segunda edição, em 1934, seria realizada em Itália, seguindo-se a França em 1938, evento no qual a selecção brasileira obteria o terceiro lugar. Mas as edições de 42 e de 46 já não se realizaram. A quarta edição teria lugar em 1950 e precisamente no Brasil, tendo saído vencedora, pela segunda vez na história, a seleção uruguaia.
O gosto pelo futebol, esse, nem por isso terá esmorecido durante a guerra. Tão pouco se anularam por inteiro os efeitos internacionais do jogo. Um episódio simbólico, ainda que menor, é sugestivo de ambas as coisas. Eric Hobsbawm foi um dos jovens homens que, por quase toda a Europa, foram mobilizados para o esforço de guerra. Já então formado em História e membro do Partido Comunista Britânico, Hobsbawm integraria uma unidade militar de engenharia. Daí faria chegar à embaixada soviética em Londres uma bola de futebol assinada por diversos dos seus camaradas de companhia. O esférico deveria ser enviado pelos serviços diplomáticos soviéticos à unidade russa equivalente, sublinhando a solidariedade na luta comum contra a Alemanha nazi.
"A primeira edição do Campeonato do Mundo de Futebol tivera lugar no Uruguai em 1930, ano do centenário da independência daquele país sul-americano, a segunda edição, em 1934, seria realizada em Itália, seguindo-se França em 1938."
Curiosamente, assim que a paz chegou, e as partidas internacionais retomaram o seu curso, uma das primeiras equipas a protagonizar o relançamento dos encontros internacionais no Reino Unido foi o Dínamo de Moscovo. Ainda em finais de 1945, numa digressão iniciada em Londres, a equipa moscovita levou multidões de espectadores aos estádios britânicos. Era o regresso de hábitos de consumo e divertimento popular que se encontravam em ascensão já antes da guerra. Também por isso a digressão constituiu motivo de atenção por parte da imprensa britânica, numa fase da história do futebol em que a leitura da crónica do jogo, assim como a cobertura radiofónica, ainda imunes à concorrência que lhes viria a ser oferecida pela imagem televisiva, complementavam ou substituíam a experiência de acompanhamento presencial da partida. De caminho, celebrava-se o fim da guerra e os jornais aplaudiam a digressão soviética por rasgar novos horizontes de cooperação internacional e de diplomacia, com base na memória viva da aliança de forças contra o fascismo e o nazismo. As provas de competência futebolística que os atletas soviéticos foram dando nas partidas que disputaram em solo britânico surpreenderam a generalidade dos observadores. O assunto tornou-se mesmo motivo de reflexão e debate. Os bons resultados obtidos pelos atletas soviéticos foram saudados com desportivismo por uma parte da imprensa. Mas tornar-se-iam igualmente motivo de averiguação e suspeita para outros. Para alguns a dinâmica associativa do jogo soviético, com passes geométricos e em progressão, ia ao encontro de tradições e hábitos que faziam a história do futebol britânico. Mas, para outros, a intensidade dessa mesma dinâmica deveria ser tida como efeito de um ambiente de ordem e disciplina superiormente ditado — quando não insidiosamente inculcado — aos onze jogadores soviéticos que actuavam no relvado. O histórico jornalista e treinador George Allison argumentaria que a competência dos jogadores do Dínamo deveria ser menorizada, na medida em que a sua performance seria o resultado da aplicação de um plano pré-determinado, à margem do qual o futebolista soviético, carente de um sentido de individualidade, se mostraria incapaz de actuar com sucesso.
O termo totalitarismo ganharia verdadeira notoriedade conceptual anos mais tarde, aos ombros de pensadoras como Hannah Arendt, mas vinha já ganhando balanço no género de filosofia informal que os debates futebolísticos sempre envolvem. A Guerra Fria ainda não tinha começado, mas o seu prenúncio já marcava o ritmo da Europa do imediato pós-guerra.
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