Assunto
Futebol, o epílogo dos intelectuais
Marc Perelman

Marc Perelman, professor na Universidade de Paris-Nanterre, é autor de uma extensa bibliografia sobre o que ele classifica como «barbárie desportiva» e as suas extensões para além dos estádios. Le football, une peste émotionnelle (2006), escrito a meias com o sociólogo Jean-Marie Brohm, é um dos seus livros mais conhecidos. Neste artigo, analisa e critica a sua organização institucional e cegueira benevolente dos intelectuais em relação a este desporto e a sua organização institucional.

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A alguns meses do próximo Campeonato do Mundo de Futebol, no Catar, para o qual a construção de oito estádios climatizados matou 6500 trabalhadores, privados, desde a sua chegada, de todos os direitos elementares, o meu artigo destina-se a promover a reflexão sobre a verdadeira natureza do futebol e quem apoia a sua dominação.

O historiador Paul Dietschy consagrou um longo livro ao futebol, Histoire du football (2010), onde lhe atribui todas as virtudes: entusiasmo das multidões, vingança dos pobres e das minorias, independência e nação, luta de classes, desporto popular, etc. Este livro apologético procura dizer muito sobre a nossa história, em geral, e sobre a globalização, em particular. Pretende fazer um elogio narrativo dos clubes, dos treinadores e dos jogadores, todos excepcionais. Em contrapartida, o futebol nunca é analisado à luz da instituição a que está associado. A evolução do futebol é reduzida a uma sucessão de modificações das regras e das suas codificações, prolongada até aos dias de hoje: limites do campo, estatuto dos jogadores, profissionalismo… E o estádio, por seu turno, permite «novas redes de sociabilidade, mas também a fruição de momentos de liberdade e excitação que a vida na fábrica excluía». O autor não concebe a organização do futebol como uma estrutura institucional de um tipo novo. Nem mesmo quanto à forma de lazer sob a qual se apresenta. O futebol está sempre do lado certo, é o motor de um mundo novo: de uma nova cultura, de uma nova imprensa, etc. — mesmo após ter sido feito refém das forças fascistas activas entre as duas guerras mundiais (Itália, Alemanha), ou ter-se tornado no vector de propaganda da junta militar argentina, um governo fascista, em 1978. Dietschy ousa assim afirmar que, em 1978, «o êxtase provocado pela obtenção de um título mundial […] é, antes de mais, uma alegria em si mesma, partilhada entre próximos e vizinhos, e não rima necessariamente com a adesão ao poder instalado». Bem pelo contrário, a vitória da equipa da Argentina consolidou o poder instalado e reforçou a sua legitimidade.

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"O chauvinismo e o nacionalismo engendrados pelo futebol não são denunciados, mas postos em evidência como manifestações de uma revitalização dos povos."

Com Jean-François Pradeau, um amante de futebol ultra-platónico, e a publicação do seu livro Dans les tribunes. Éloge du supporter [Nas bancadas: um elogio do adepto, 2010], atingiu-se o auge da evolução extrema do aficionado — que chega a raiar o delírio quando, no prefácio, nos informa de que «o verdadeiro objecto da filosofia é a partida de futebol». O autor fundamenta a sua «tese» evocando o carácter popular do futebol — «sem dúvida o mais popular de entre todos os desportos, já que é, de longe, o mais praticado na Terra» e, sobretudo, porque «não há nada mais partilhado no mundo que o conhecimento sobre futebol». J.-F. Pradeau pretende celebrar, acima de tudo, o estádio, que é o «verdadeiro coração» do futebol, pois «torna possível uma experiência erudita e erótica». Segundo ele, «o adepto vem ao estádio com uma cultura, com um saber, e é em busca de uma experiência verdadeiramente espiritual, ao mesmo tempo moral e apaixonada, que se põe a caminho». É claro que o adepto não é sempre uma «besta inculta» quando chega ao estádio. Pelo contrário, é no interior que passa a sê-lo. Pradeau mostra-se um apaixonado permanente do estádio, das suas bancadas e dos seus adeptos, e quer falar-nos do «amor que liga esses adeptos e que os leva ao estádio», pois o que está em causa para eles é uma «cerimónia amorosa». O objecto do amor não é, pois, uma pessoa de carne e osso, um corpo singular, mas uma estrutura de massas (o estádio) recheada de corpos aglomerados nas bancadas. Pradeau insiste sobre a sua «própria experiência erótica» enquanto adepto: «o estádio é amor», «o estádio distingue-se, antes de mais, como uma forma absolutamente original de comunhão erótica». E não esconde a sua alegria em estar rodeado de adeptos e ser envolvido pelo estádio, como num «abraço». Note-se o machismo descomplexado do pensador platónico ou o seu ódio às mulheres, ao negar às «senhoras» o seu lugar no estádio. São «espectadores que alteram a sua constituição fisiológica e comprometem involuntariamente o advento e a erecção cultural do estádio com «E» maiúsculo». O adepto é a personagem central do estádio, não por qualquer símbolo visível («envolto nas cores da equipa»), mas pelo facto de «partilhar com os seus semelhantes uma cultura oral de riqueza considerável: uma cultura que assenta sobre uma tradição de mais de um século, alimentada por eventos internacionais, que aproxima as gerações […]. O adepto está imbuído de uma cultura futebolística […] aprofundada por leituras». Não se percebe de que cultura fala J.-F. Pradeau, a não ser o «conhecimento» — aprofundado, é certo — da composição das equipas e dos seus cânticos. O ultra-platónico insiste no desvario ao declarar que «o adepto é um sábio; sim, um sábio, um apaixonado pela beleza». E revela-se ainda mais quando afirma que «é ao escutar as bancadas que se compreende o quanto os seus cânticos e as suas exclamações, que podem parecer violentas, belicosas ou homofóbicas, têm, na verdade, um significado profundamente moral». Diga-se em boa justiça que Pradeau reconhece o carácter grosseiro, vulgar e violento dos adeptos, entre outros, durante as batalhas travadas entre bancadas opostas. Tudo isso se relaciona com o comportamento no mínimo equívoco dos adeptos, pois «nas bancadas dos estádios de futebol do mundo inteiro os fiéis abraçam-se e acariciam-se, falam, trocam conhecimentos, berram, entoam cânticos, exaltam os heróis, gritam disparates». E as afirmações equívocas continuam, quando evoca «o amor trocado pelos jogadores, que se manifesta, de repente, no abraço carnal a que se abandonam no momento em que o árbitro assinala o final de uma partida vitoriosa». E ainda mais ao ver todos esses homens que «se abraçam e, sobretudo, se enlaçam e se acariciam. Sim, as mãos sobre os ombros, as mãos sobre as ancas, as mãos pousadas abertamente sobre as nádegas, os estalos e as palmadas; mas também, acima de tudo, todos esses gestos ternos que surpreendem no meio de esforços violentos. […] Sim, beijos, abraços em pirueta, amontoados: vede como trepam uns sobre os outros a seguir a um golo!». Na conclusão do seu livro, Pradeau não hesita em pedir que nos «lancemos nos braços uns dos outros e nos abracemos enquanto berramos o nome do nosso herói, que já terá despido a sua camisola para vir a correr oferecer-nos o seu corpo, que amaremos sem reservas».

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