Portfolio
Viviane Sassen: Género, dissecação e flores
Josseline Black

A fotógrafa Viviane Sassen preparou para esta edição de Electra um conjunto de trabalhos recentes e inéditos, que mostram simultaneamente aquilo que, ao longo da sua carreira, a singularizou como artista e a actual fase da sua criação visual. Num ensaio de apresentação da sua obra, a curadora e escritora norte-americana Josseline Black afirma: «Poucos conseguem fundir dois mundos, o da fotografia de moda e o da fotografia de arte, e Sassen está na vanguarda deste movimento de fusão — na subtil medida em que ela própria rejeita categorizações.» A curadora destaca a influência do surrealismo na artista e, sobre as imagens reveladas neste «Portfolio», diz: «Uma das particularidades mais marcantes destas fotografias é não precisarem de legenda; neste sentido, o que têm de mundano transcende a mundanidade. E estamos de novo em sintonia com a ideia de “encarar o mundo de frente”, de estabelecer contacto visual com o que está à nossa frente. Nestas imagens, o delicado jogo, quase totémico, entre a fotografia e a pintura é ainda a prova de que Sassen mansamente contraria as comuns expectativas.»

E quando se sente realizado ou, por assim dizer, atinge um estado de graça, o Homem desiste de fingir que é Deus. Isto é, não se sente obrigado a desenhar, a pintar, a descrever por palavras ou por música o que vê à sua volta. Deixa acontecer. E só precisa de olhar de frente o mundo para descobrir que o ser humano é bem capaz de ser uma obra-prima.

Henry Miller
(Stand still like the hummingbird, 1962)

No seu ensaio «The angel is my watermark» [O anjo é a minha divisa], Henry Miller, o vate místico e adúltero, defende que o estado de graça é análogo à capacidade de observar a vida tal como ela se apresenta, sem o propósito de lhe encenar a beleza que implicitamente a define. Qual é a expressão artística que se baseia integralmente na corroboração absoluta da observação? A fotografia. Ao longo da sua história, a fotografia tem enfrentado uma série de tensões que contribuem quer para definir a sua utilidade, quer para refrear a sua autenticidade. Diferentes pontos de vista têm analisado a fotografia, situando-a ora como exercício de representação, ora como tentativa gorada de captar o que está sempre em movimento, ora como um meio de censura e, sobretudo, como um substituto das limitações da percepção óptica. A fotografia pode ser tudo isto, mas não se esgota aqui.

Mais interessante, porém, será reflectir sobre os modos como a fotografia, na consequência de uma intenção e de uma curiosidade do fotógrafo, pode gerar um saber complexo, e como tal cria nele o desejo de colmatar a lacuna entre os mistérios do corpo e o geral fluir da vida. Será possível olhar uma fotografia em termos formais na mesma medida em que a vemos como transmissão de conhecimento? A questão que se levanta, expressa em pergunta de retórica, será esta: que aspectos de uma fotografia podem suscitar uma mudança nesse observador que tem acesso àquilo que a imagem propõe? E ainda, tendo em conta o punctum definido por Barthes: o que é que atrai o nosso olhar para esse indefinível que, numa fotografia, permite a narrativa? O fotógrafo que conheça a fundo o que o punctum honesta e generosamente nos promete será sem dúvida um nome a seguir. Como afirmava o artista uruguaio Alejandro Cesarco na sua instalação The Reader (slides a cores, 35 mm, 2011), «o género, em arte, é uma perspectiva a partir da qual podemos ler». Esta noção permite-nos identificar imediatamente quem merece ser considerado um pioneiro, tendo por base a sua perspectiva inequívoca, indiscutivelmente profética, e a expansão coerente da sua área de trabalho. Pioneiro é quem convida à participação.

Viviane Sassen: artista, fotógrafa, figura pública. Criadora de um género. Poucos conseguem fundir os dois mundos, o da fotografia de moda e o da fotografia de arte, e Sassen está na vanguarda deste movimento de fusão — na subtil medida em que ela própria rejeita categorizações. Acima de tudo continua a ser o motor de uma estética cinética que simultaneamente vem emancipar o corpo, numa indústria alicerçada na violenta repressão de género, e colocar a «natureza-morta» num lugar jubiloso da fotografia contemporânea. Sassen refere que o surrealismo foi uma das suas primeiras influências, o que é particularmente importante, pois o projecto surrealista baseia-se num exercício de fragmentação temporal. Ou seja, tema, ambiente, cor e horizontes são assumidos mantendo, cada um, o seu próprio ritmo, assim exprimindo a viagem visual que percorre o fluxo do tempo. Outra característica que define o surrealismo é o conceito de beleza, que já Lautréamont considerava ser efeito de um olhar que reclama cada parcela em vez de as camuflar no todo: o Belo é «como o encontro fortuito de uma máquina de costura com um guarda-chuva sobre a mesa de anatomia». Viviane Sassen tem um modo especial de cortar o que não é necessário ao processo de aprendizagem, tudo o que está fora do enquadramento e, neste sentido, dissecar — à maneira surrealista — os elementos daquilo que fotografa.

O ikebana tradicional, criado para imitar a vida em transformação, incorpora a assimetria. Esses arranjos florais eram tidos como instrumento e evidência da meditação sobre a simplicidade. Ao praticante de ikebana era exigido que se concentrasse no seu momento presente antes de escolher as flores e os outros elementos naturais. A arte em si era inseparável da interioridade de quem a praticava. Há um paralelo entre o ikebana e a obra de Sassen, na medida em que a assimetria é usada como forma de homenagear a complexidade e de trabalhar aquilo que fundamenta o realismo. Por conseguinte, na obra de Sassen há um efeito único de ricochete entre o real e o surreal — quando um é posto em prática numa fotografia, o outro surge por arrasto.

Em termos de viagem entre universos do afecto, Viviane Sassen refere, numa entrevista a Sean O’Hagan para o The Guardian, que está «com um pé no mundo do inconsciente». E acrescenta: «Estou a tentar evocar esse universo paralelo que vivi na infância e que não consegui encontrar quando regressei à Holanda. Todos os artistas, de certa maneira, fazem auto-retratos — e é isso que eu faço, por instinto.» Viviane Sassen nasceu em Amesterdão, mas passou parte da infância no Quénia, e continua a trabalhar em África. Esse trânsito de partida e regresso ao mundo ocidental está muito presente na sua obra. Negar que existem ecos autobiográficos numa produção artística é, em última análise, um pretensiosismo. Como Sassen reconhece, é exactamente na reflexão que faz sobre o seu processo de crescimento que se desenvolve uma perspectiva sociológica mais ampla.

Para este número da revista Electra, Sassen preparou uma série de trabalhos recentes — e inéditos — que se apresentam como documentos em si mesmos, pontos de luz, ténues evocações. Naturalmente, podem ser lidos também numa sequência, mas isso será para quem tem um especial apetite pela narrativa. Uma das particularidades mais marcantes destas fotografias é não precisarem de legenda; neste sentido, o que têm de mundano transcende a mundanidade. E estamos de novo em sintonia com a ideia de «olhar de frente o mundo», de estabelecer contacto visual com o que está à nossa frente. Nestas imagens, o delicado jogo, quase totémico, entre a fotografia e a pintura é ainda a prova de que Sassen mansamente contraria as comuns expectativas. Em última análise, a cor e a pose configuram a satisfação de um grande desejo de liberdade. A excepcional contribuição artística de Viviane Sassen enquadra-se no adágio russo «come, que o apetite logo vem». Quanto mais vemos trabalhos seus, mais nos apetece a delícia desta iguaria rara. Fotografias encantadoras. Necessárias. Arrojadas.

1. Matthias Michalka, Manuela Ammer, Angie Keefer, François Piron, Alejandro Cesarco, Ostfildern: Hatje Cantz, 2012.
2. Conde de Lautréamont, Les Chants de Maldoror, 1869, Canto VI, cap. 3.