Passagens
«Pois eu acho que todo o progresso é também um retrocesso...»*
Dario Gentili

Uma frase de Robert Musil, em que o autor de O Homem sem Qualidades, com a atitude crítica do modernismo vienense, manifesta um enorme cepticismo em relação à ideia de progresso, é aqui comentada e analisada por Dario Gentili, professor de filosofia na Universidade Roma Tre.

«Pois eu acho que todo o progresso é também um retrocesso. Só existe progresso num determinado sentido. E como a nossa vida, no seu conjunto, não tem sentido, também não existe progresso aplicável ao todo.»*

corita

Corita Kent, One Way [Sentido único], 1967 © Cortesia Corita Art Center e Kaufmann Repetto

 

A «nossa vida no seu todo» não tem «sentido», defende Ulrich, o protagonista d’O Homem sem Qualidades, de Robert Musil. E é por isso que ela não conhece o progresso, ou seja — atendo-nos ao significado mais usual e generalizado do termo —, não avança no sentido do melhoramento; as condições de existência da humanidade não melhoram de época para época e de geração para geração. Há poucas décadas apenas, esta frase de Musil, tão carregada de niilismo e decadentismo, teria soado actual somente a uma minoritária sensibilidade antimodernista, não reflectindo, certamente, o sentimento comum. Hoje, porém, quantos de nós proclamariam sem hesitações a sua confiança no progresso? Quantos afirmariam, sem medo de ser desmentidos, que os filhos viverão em condições melhores que as dos pais? Quantos o defenderiam logo hoje, na conjuntura actual de uma crise que é ao mesmo tempo social, económica, sanitária e ecológica?

Todavia, seria redutor ler na frase de Musil apenas uma contraposição entre existencialismo — o sentido da vida — e modernismo — a confiança no progresso. Ela revela, antes, a sobreposição, senão mesmo a confusão, entre «sentido» e «direcção», a que a concepção de progresso deve a sua fortuna desde o século XIX em diante: uma determinada direcção no curso da evolução da humanidade acabou por colonizar o sentido da vida. Do ponto de vista do progresso, a vida só tem sentido se prosseguir ao longo da direcção já traçada. Não é, pois, a vida no seu todo que tem sentido, mas apenas a forma de vida que avança na direcção em que já se encontra. Logo, o progresso segue uma linha contínua, onde cada passo em frente confere sentido ao passo imediatamente precedente, e vice-versa. É assim que se forma o curso progressivo da história que acaba por corresponder ao sentido da história. Os caminhos interrompidos — que nenhum presente nos leva a seguir — estão destinados a perder-se no esquecimento; e, com eles, os passos que os haviam até então percorrido. O progresso selecciona, de entre todos os caminhos abertos de época para época e de geração para geração, aquele que representa a via mestra e que é, por isso, seguido.

Estou a insistir na metáfora do percurso, do traçado, da via, porque é a própria etimologia do termo «progresso» a sugeri-la. Com efeito, «progresso» deriva do verbo latino progredi, que significa «andar em frente, avançar ». É a mesma etimologia do termo alemão de Musil: Fortschritt é, na verdade, ainda mais específico e indica o «passo em frente» na direcção que se está a percorrer. Afirmar, como faz Musil, que progresso (Fort-Schritt: passo em frente) e regresso (Rück-Schritt: passo atrás) se equivalem significa simplesmente que a vida, no seu todo, não percorre nenhuma direcção determinada: se não há uma via traçada, não se anda nem para a frente, nem para trás. Quer isto dizer, então, que a vida não tem sentido, que é insensata? Eis-nos no coração do problema eminentemente moderno do progresso. Se sentido e direcção coincidem, e se a vida só tem sentido quando é encarreirada numa determinada direcção, no momento em que se olha para a vida de fora e para lá do curso do progresso ela parece insensata. É o ponto de vista de Ulrich, que se julga «sem qualidades» para empregar ou investir no progresso da humanidade; ou melhor, que julga não ter as «capacidades» — hoje diríamos «competências », skills — requeridas para viver na sociedade do progresso. Não se faz à vida, limita-se a manter o passo. Por não assumir aquela forma determinada, a sua vida é insensata. A forma de vida prevista pelo progresso não permite sentidos alternativos.

* Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Tradução de João Barrento, Alfragide: Dom Quixote, Volume I, 2017, p. 631.

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