Primeira Pessoa
Didier Eribon: «Somos todos submetidos a veredictos sociais»
António Guerreiro

Esta entrevista ao filósofo Didier Eribon, com paragem obrigatória no autobiográfico Regresso a Reims, o seu livro que teve uma enorme repercussão internacional, mostra as potencialidades de um «pensamento crítico» que atravessa disciplinas, desdenha das respectivas fronteiras e cria instrumentos teóricos de crítica e análise política e sociológica.

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Didier Eribon © Eric Fougere / Getty Images

Didier Eribon é geralmente apresentado como filósofo e sociólogo. Mas, na verdade, os seus territórios disciplinares são ainda mais vastos e abolem fronteiras tradicionais. A sua experiência de escrita, depois da formação universitária em filosofia, foi como crítico literário do jornal francês Libération, no início dos anos 80. Foi então que conheceu Michel Foucault, ao qual o seu nome ficou ligado através de uma biografia, Michel Foucault, 1926–1984, que teve uma primeira edição em 1989 e uma segunda, revista e aumentada, em 2012. No seu percurso intelectual autónomo (e enquanto professor com um longo e prestigiado curriculum internacional), Foucault e Bourdieu são dois marcos fundamentais. A suas Réflexions sur la question gay, um livro publicado em 1999, foi um acontecimento na vida intelectual francesa, quando os gender studies de importação americana ainda não tinham penetrado em França. É um livro coerente com os aspectos de intervenção política que marcam uma grande parte da obra de Didier Eribon. Esse livro fornece abundante matéria de reflexão teórica que servirá parcialmente de alicerce a um livro de 2009 que teve uma enorme repercussão internacional: Retour à Reims (Regresso a Reims, na edição portuguesa, tradução de João Carlos Alvim, Dom Quixote). Reims é a cidade francesa onde nasceu e onde viveu até ao início da idade adulta, quando foi para Paris prosseguir os estudos universitários. A ideia de regresso, explicitada no título, implica a ideia de fuga: Didier Eribon fugiu da família, do meio pobre e operário onde tinha nascido, da homofobia com que se confrontava no ambiente em que cresceu. E regressa depois de perceber que na sua experiência biográfica, em Paris, já não era determinante a «vergonha sexual», mas a «vergonha de classe». É em torno desta dupla vergonha e do modo como ambas são inculcadas através de injúrias e veredictos que se constrói esse livro autobiográfico que é ao mesmo tempo de sociologia e de teoria política. Regresso a Reims é um livro que reflecte sobre questões sociológicas, geralmente ausentes nos gender studies, mas é ao mesmo tempo uma narrativa autobiográfica com uma dimensão literária. Não admira, por isso, que o encenador alemão Thomas Ostermeier o tenha trazido para o palco, numa adaptação dramática, e o realizador francês Jean-Gabriel Périot tenha feito, a partir dele, uma adaptação cinematográfica, Retour à Reims (Fragments). Didier Eribon ocupa actualmente um lugar de destaque na vida intelectual francesa, da qual — sobretudo na sua dimensão política — é também um sofisticado analista e crítico.

ANTÓNIO GUERREIRO  O seu primeiro livro é de entrevistas a Georges Dumézil. Visto à distância, não parece nada evidente esse seu interesse por Dumézil, sobretudo se tivermos em conta o que vos separa em termos políticos.

DIDIER ERIBON Politicamente, sim. Mas trata-se de alguém que era muito próximo de Michel Foucault, o qual, na sua lição inaugural no Collège de France, em 1970, diz que lhe deve muito. Dumézil foi um historiador das religiões e é considerado um dos grandes pensadores do estruturalismo, marcou várias gerações de intelectuais. Foi um dos grandes nomes do pensamento francês nos anos 50, 60 e 70 do século passado. Foi muito importante não apenas para Foucault, mas também para Deleuze, Bourdieu e Althusser. E até para filósofos não estruturalistas: encontramos em Sartre e Simone de Beauvoir referências a Dumézil. Foi em meados dos anos 80 que lhe fiz as entrevistas, mas ele morreu em Outubro de 1986, antes da saída do livro. O estruturalismo de Dumézil marca profundamente o método de Foucault na sua História da Loucura e mesmo em As Palavras e as Coisas. A noção foucaultiana de episteme, o alicerce que organiza o conjunto dos discursos de uma sociedade, vem em grande parte de Dumézil. Encontrei-o através de Foucault. Fui assistir à lição inaugural de Bourdieu no Collège de France em 1982 e no fim, no pátio, entre muita gente, estava Dumézil e Foucault, que mo apresentou. Foucault morreu em 1984 e reencontrei Dumézil no funeral, acompanhei-o a casa e falámos durante algumas horas. A partir desse momento, comecei a ver Dumézil uma vez por semana para conversarmos. E aí iniciei esse livro de entrevistas, que tem a seguinte dedicatória: «À l’ombre de Michel Foucault». Enquanto fazia esse livro com Dumézil, colocava-lhe muitas perguntas sobre Foucault. Então ele disse-me: «Não pode ser metade sobre Foucault, isso vai desequilibrar o livro. Porque é que não fazes um livro só sobre Foucault, uma biografia? Eu ajudo-te e dou-te todas as informações e documentos de que disponho.» Em 1986 comecei então a trabalhar na biografia de Foucault. Tinha-o conhecido em 1980, apresentado por um amigo comum. Eu tinha o projecto de uma revista e encontrei-me com Foucault e um dos meus amigos, o escritor Mathieu Lindon, para falarmos disso. Ficámos amigos, muito próximos. Foucault gostava de se rodear de um círculo de amigos, em geral jovens gays, entre eles Hervé Guibert, Mathieu Lindon. Passei a vê-lo regularmente, uma ou duas vezes por semana, e jantávamos juntos, às vezes com outros desse pequeno círculo. Foucault teorizou isso num texto onde fala da amizade como modo de vida. Havia aí, nesse círculo, uma relação de amizade colectiva, e Foucault desempenhava um papel não de maître à penser, mas de director de consciência: aquele que dava conselhos, ouvia os outros, falava, tentava ajudar.

AG Mathieu Lindon, no livro Ce qu’aimer veut dire (2011), conta o que se passava na casa de Foucault, ocupada muitas vezes por esse grupo, e diz que Foucault conseguia, ainda assim, isolar‑se desse ambiente festivo e ruidoso e continuar a trabalhar…

DE  Mas muitas vezes, quando a sua casa se enchia de gente, ele estava fora, nos Estados Unidos. Emprestava o apartamento quando estava em Berkeley. Esse círculo de amigos era muito importante para Foucault porque lhe proporcionava a possibilidade de se pôr um pouco à distância da vida intelectual e ter conversas simples, amigáveis, benevolentes. É sabido que a vida intelectual não é marcada pela indulgência e pela gentileza. Mathieu Lindon e Hervé Guibert quase não falavam dos livros deles. Nessa época, eu era jornalista literário no Libération e falava muito com Foucault de livros e dos livros que ele estava a escrever. Além disso, fiz-lhe algumas entrevistas. Portanto, tinha com ele uma relação de amizade, mas também de trabalho.

AG Quando lemos a sua biografia de Foucault, não conseguimos adivinhar que era muito próximo dele. É uma biografia muito sóbria quanto à proximidade entre o biógrafo e o biografado.

DE  Isso é verdade sobretudo para a primeira edição, de 1989, mas não tanto para a segunda, de 2012. Quando trabalhei no livro, entre 1986 e 1989, servi-me de muitas coisas que sabia de Foucault, muitas coisas que ele me tinha dito, a minha proximidade com ele ajudava-me a tentar fazer um retrato o mais exacto possível, mas não queria ostentar o que isso devia ao conhecimento pessoal. Quis fazer um livro mais histórico e sociológico do que um livro escrito por um amigo. Quando foi publicado, muita gente que nem sequer tinha conhecido Foucault apontou isto e aquilo como não sendo verdade. Ora, tratava-se de coisas que Foucault me tinha dito, retiradas muitas vezes de documentos que me tinha mostrado. Depois, fiz outros livros e não queria passar a vida a escrever uma nova versão. Essa edição de 2012 é muito mais completa e há muitas coisas mais pessoais. Por exemplo, a controvérsia e a relação com Derrida e com Bourdieu, e também a questão da sexualidade e da homossexualidade. E, aqui, há por vezes anotações pessoais, onde digo várias vezes «eu», muito mais do que na primeira edição. Mas antes desse, fiz um livro de entrevistas a Claude Lévi-Strauss, que se chama De près et de loin, publicado em 1988. Era também uma exploração da vida intelectual francesa do século XX, nomeadamente do pensamento estruturalista, do debate em torno do estruturalismo e da antropologia estrutural, do marxismo, etc. A biografia de Foucault foi o meu terceiro livro. Foi um trabalho ao longo de três anos de investigação dos arquivos, de recolha de testemunhos. O livro foi imediatamente traduzido em vinte línguas e o meu nome ficou ligado ao de Michel Foucault. Passei muitas vezes a ser apresentado como «foucaultiano»…

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