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O crítico cultural e artista Paul Werner, autor de um livro intitulado Museum, Inc.: Inside the Global Art World, uma reflexão e um testemunho críticos a partir da sua experiência no Museu Guggenheim de Nova Iorque, escreve sobre as instituições da arte em tempo de mudanças radicais e sobre a arte como uma mercadoria paradoxal.
No dia 23 de Maio de 2021, depois de mais de um ano de confinamento, a Cultura voltava ao normal — ou assim parecia. Os intermitentes das salas de espectáculos, músicos de rua e outros artistas levantaram a ocupação do Teatro do Odéon em Paris. Desde Maio de 1968 que o Odéon representa a convicção de que a arte pode refazer a vida rompendo de uma vez por todas com as instituições da arte. Conta a lenda que foi a partir do Odéon que um grupo de agitadores, conhecido como situacionistas, avançou para fazer da arte uma verdadeira componente da existência do dia-a-dia. Hoje, tal como em 68, é uma ironia do destino assistir-se a um grupo de artistas a tentar romper com as instituições da arte começando por ocupar uma dessas instituições; e uma ironia adicional quando, ao partir, uma das recentes fornadas de rebeldes leu um excerto do discurso de aceitação do Prémio Nobel de Albert Camus [Estocolmo, 10.12.1957] sobre as responsabilidades do artista, um discurso tão genérico, tão modesto nos seus objectivos, que poderia ter sido retirado de qualquer comunicado de imprensa de qualquer instituição artística consagrada:
Cada geração crê-se sem dúvida destinada a reformar o mundo. A minha, no entanto, sabe que não o fará. […] Tendo enunciado a nobreza do ofício da escrita, deveria também remeter o escritor para o seu verdadeiro lugar, não tendo ele outros créditos senão os que partilha com os seus companheiros de luta.
Numa altura em que, na área da Cultura, muitos reflectem acerca do se e do como poderão as instituições da arte (práticas museológicas, sistemas de assistência social, distribuição económica) mudar sob a pressão de um ano catastrófico de pandemia e do seu ainda enigmático rescaldo, estes trabalhadores pareceram aliviados por poder renunciar à responsabilidade de repensar as estruturas institucionais da Cultura e do envolvimento pessoal de artistas e profissionais. Os novos radicais estavam mais preocupados em preservar a promessa emancipatória do sector da Cultura — que constituiu uma parte integral da missão das instituições culturais ao longo dos últimos duzentos e cinquenta anos — do que em reinventar os instrumentos dessa emancipação e levar até ao fim o que quer que essa reinvenção implicasse, ao ponto de a tornar uma realidade. Ao mesmo tempo, e previsivelmente, os mais bem estabelecidos das indústrias culturais parecem hoje confiantes de que os efeitos da pandemia, sendo apenas de cariz económico, são passageiros. Como sempre, reclamam-se novas eficácias. Há que formar públicos, ou há que «re-formá-los». Tirando isso, as aspirações são as mesmas: longas e ordeiras filas em frente do museu. Tal como os seus amigos radicais e oponentes retóricos, mas de modo mais consistente, os homens de fato e gravata vêem a sua missão como uma mera adaptação a uma situação económica em mutação, sem sentirem a necessidade de equacionar a possibilidade de que outros aspectos da vida social e cultural tenham também sofrido uma reviravolta. E contudo, não havendo uma certeza, há uma nítida possibilidade de que as instituições da arte poderão muito bem, nos próximos meses e anos, também elas ser levadas a mudanças radicais, para as quais nem radicais nem circunspectos e bem vestidos administradores estarão preparados. Como sempre acontece com a vanguarda, para que tudo mude é preciso que tudo fique na mesma.
"Há que formar públicos, ou há que «re-formá-los». Tirando isso, as aspirações são as mesmas: longas e ordeiras filas em frente do museu."
Num artigo marcante, o sociólogo francês Pierre Bourdieu descreveu «o campo da produção cultural» como «o mundo económico do avesso»1. Aí, como noutros lugares, Bourdieu usa uma série de conceitos por si desenvolvidos, um dos quais campo: segundo ele, certas áreas de prática social (o mundo da arte, por exemplo) estão em parte isoladas do mundo exterior nas suas formas de pensar e de conceptualizar. Mas apenas em parte. Podem, por exemplo, utilizar aparentemente a mesma língua, mas as mesmas palavras podem abranger diferentes conceitos, no sentido de que certas actividades, procedimentos e posicionamentos, quando inseridos no mundo da arte, teriam uma função inversa à que cumprem no mundo exterior. O romancista francês Georges Duhamel regista o seguinte diálogo entre dois cubistas em formação nos anos iniciais do movimento, um diálogo que baseou na sua própria experiência:
— Atenção! Quando estiveres com o cavalheiro não largues expressões como «anarquista» ou «individualista».
— Palavras não são bombas.
— Claro que não, mas eles não iriam apreciar o significado específico que damos a essas palavras.2
Entre artistas, palavras como «revolução» ou «vanguarda» têm um significado completamente díspar do que poderão sugerir os mesmos vocábulos proferidos por um general ou um anarquista. As complexas competências indispensáveis para entender os conceitos operacionais da Cultura não são meramente úteis para se ser distinguido de outsiders; elas são exigidas a cada indivíduo ou instituição para se tornar ou permanecer participante de pleno direito no mundo da arte; as atitudes partilhadas por todo e qualquer membro dessas instituições são também as atitudes impostas pelas mesmas instituições que actuam como aquilo que, em teoria do Direito, se conhece por «agentes morais»: instituições que para todos os efeitos se considera terem os mesmos interesses e estímulos que os indivíduos.
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