Assunto
A Grande Arte nas suas Zonas Estéticas Protegidas
Yves Michaud

Yves Michaud, destacado autor de livros de estética, crítica de arte e filosofia política, tem tido uma importante intervenção em França nas polémicas e discussões públicas sobre a arte contemporânea. Neste artigo, aborda o problema e os desafios com que a arte está confrontada nesta época de estetização generalizada e propõe a noção de «Zonas Estéticas Protegidas» como um conceito crítico fundamental na sua análise.

Desde o final da década de 80, após um período de flutuação a que se chamou, justificadamente, «pós-modernismo», a evolução rumo a uma arte que utiliza todos os media possíveis para todas as propostas possíveis sofreu uma aceleração.

No mesmo período, os dispositivos estético-técnicos invadiram as ruas, as lojas, os centros comerciais, as estações de comboio e os aeroportos, os espaços públicos, os átrios das empresas e os escritórios, os estúdios de televisão, as salas de espectáculos e as discotecas. Em todos os domínios, o mundo que nos rodeia estetizou-se: estéticas corporais, design de objectos e de ambientes, estetização do consumo, do turismo — e até estetização moral, sob a forma do politicamente correcto e do bem-pensar.

O público habituou-se a este duplo regime estético: na vida quotidiana, tira partido da beleza ambiente; no mundo da arte, aceita praticamente tudo. Na verdade, as produções artísticas funcionam exactamente como os ambientes onde todos nos achamos diariamente mergulhados.

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Kenneth Noland, Slow Rise, 1968 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres

 

1.

A questão que se põe é esta: o que é que diferencia esta Arte, eternamente «contemporânea » apesar das suas metamorfoses, do mundo «normal» onde ela existe e onde nós vivemos?

A resposta é: nada de mais, a não ser a existência de Zonas Estéticas Protegidas (ZEP) que a resguarda do exterior, tal como a ampola de Air de Paris (1919) de Marcel Duchamp, que contém alguns centímetros cúbicos do que é suposto ser o ar de Paris, ou a caixa de Merde d’artiste (1961) de Piero Manzoni, que alberga, alegadamente, excrementos, quer sejam de Piero Manzoni ou não — ou mesmo que não contenha, na verdade, quaisquer excrementos.

Por ZEP deve entender-se — seguindo o modelo das ZAD, Zonas a Defender, promovidas pelas minorias anarquistas, ou das TAZ, as Zonas Autónomas Temporárias de Hakim Bey — as zonas estéticas, não exclusivamente físicas, que são os museus de arte contemporânea, as galerias, os centros de arte, as escolas de arte, manifestações artísticas como as bienais, trienais ou quadrienais, ou os departamentos das universidades que ensinam arte, mas também a imprensa especializada, as rubricas «arte contemporânea» dos jornais, revistas e outras publicações, os sites sobre arte, as leiloeiras, as fundações e colecções, as associações e sindicatos de gestores e de críticos, e todos os lugares, espaços e comunidades onde se cultive a Arte.

"O que é que diferencia esta Arte, eternamente contemporânea apesar das suas metamorfoses, do mundo normal onde ela existe e onde nós vivemos? A resposta é: nada de mais, a não ser a existência de Zonas Estéticas Protegidas."

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Kenneth Noland, New Day, 1967 © Fotografia: Scala, Florença / Christie’s Images, Londres

 

Uma ZEP anuncia: «Atenção, Arte!»

Quer seja de betão, como um museu, ou virtual, como uma página online informativa com a cotação dos artistas, ou até mesmo um colectivo, como um sindicato de críticos de arte ou um colóquio, a ZEP alberga dispositivos artísticos e rodeia-os de uma protecção que lhes permite existir e também operar com uma imunidade especial.

Mais um passo e a ampola de Duchamp ou a caixa de Manzoni incham até tomarem a forma de um edifício de Frank Gehry (o museu Guggenheim de Bilbao ou a Fundação LVMH, em Paris), de Hans Hollein (o Museu de Arte Moderna de Frankfurt), dos Coop Himmelb(l)au (Lyon, Museu das Confluências) ou de Álvaro Siza Vieira (Porto, Museu de Arte Contemporânea de Serralves).

A própria ZEP, isto é, a embalagem, a ampola ou a caixa, torna-se Arte. Com a sua arquitectura espectacular, ela anuncia, de longe, no espaço geográfico — e de mais longe ainda no espaço da comunicação —, uma promessa de Arte.

2.

Acabo de descrever o que se passa nas ZEP, bem como as suas funções de sinalização, de identificação e de protecção da Arte.

Mas o que acontece às próprias ZEP no seio da sociedade estetizada, onde protegem uma forma de estetização considerada superior?

Na verdade, as mudanças culturais e económicas transformaram a própria Arte, que passou a estar integrada nas actividades económicas, turísticas, culturais e mundanas às quais comunica o seu valor, e que lhe transfundem, por seu turno, os seus valores — os do dinheiro, do entretenimento e, por surpreendente que possa parecer, da moral.

A pluralidade das práticas e dos procedimentos, a mistura dos géneros e, sobretudo, o seu desaparecimento, a globalização e a emergência de novas áreas geográficas têm efeitos evidentes. Tudo se relaciona nas feiras e bienais, nas programações de museus e centros de arte. Vemos sucederem-se artistas consagrados, designers, directores artísticos de casas de moda, artistas do Sul e militantes LGBTQ.

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