Assunto
O fim de um mundo não é o fim de tudo
Andrea Cavalletti

Eduardo Viveiros de Castro, antropólogo, e Déborah Danowski, filósofa, conversaram com Andrea Cavalletti acerca do livro da autoria de ambos, Há Mundo por Vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Uma incursão no imaginário do fim, na época em que se disseminaram os medos da catástrofe ecológica.

O Brasil é a terra do futuro, escrevia Stefan Zweig em 1939. Menos optimistas, Déborah Danowski e Eduardo Viveiros de Castro sugerem que será antes o futuro da Terra, feito de contaminação, desastres ecológicos, migrações incontroláveis e pobreza generalizada, que se assemelha ao Brasil.

Autora de ensaios sobre Leibniz e Hume, Danowski lecciona Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Viveiros de Castro, teórico do «multinaturalismo» e do «perspectivismo ameríndio», é um dos antropólogos mais influentes do mundo: ensina na Universidade Federal do Rio de Janeiro e deu cursos nas universidades de Cambridge, Chicago e na ehess, em Paris. Ambos muito activos na frente ambientalista, carregaram essa sua causa com uma voltagem teórica que tem, também ela, raízes comuns num livro, escrito a duas mãos, intitulado Há Mundo por Vir? Ensaio sobre os medos e os fins (2014).

Este trabalho penetrante e inovador, muito admirado por Bruno Latour, enfrenta o tema mais urgente e difícil que existe, ou seja, aquilo a que chamamos, para usar o termo difundido pelo Prémio Nobel Paul Crutzen, «Antropoceno»: a era das assustadoras alterações ambientais produzidas pelo homem. É certo que Danowski e Viveiros de Castro não têm ilusões: o nosso tempo é o tempo do fim. Armados com um aparato teórico que consegue conjugar o «princípio desespero» de Günther Anders com a filosofia de Deleuze e Guattari (portanto, com a leitura deleuziana do sociomorfismo universal de Gabriel Tarde), as teses de Isabelle Stengers e as de Donna Haraway, lançam no entanto sobre este fim, e sobre a pilha de discursos em torno do fim, uma luz clarificadora. A sua brilhante análise detém-se nos dados inequívocos e alarmantes dos cientistas, mas volta-se também para o imaginário, examinando as nossas visões apocalípticas (quer publicadas em papel, como o romance A Estrada, de Cormac McCarthy, quer projectadas no ecrã, como Melancolia, de Lars von Trier ou O Cavalo de Turim, de Béla Tarr e Ágnes Hranitzky), e atribui por fim à teoria do perspectivismo uma função decisiva. O eco de algumas das mais belas páginas de Viveiros de Castro, de A Inconstância da Alma Selvagem (2002) ou de Métaphysiques cannibales (2009), ressoa aqui com uma tonalidade política perfeitamente explícita. Quando se trata dos índios, a coisa diz-nos mais respeito do que suspeitávamos.

O fim do nosso mundo, ou seja, do mundo ocidental e capitalista, não é o fim de tudo, advertem Danowski e Viveiros de Castro. E testemunho disso são precisamente os povos amazónicos a quem todas as coisas foram violentamente subtraídas e que, exterminados e reduzidos pelos conquistadores ao estado de «homens sem mundo» (numa expressão de Anders), souberam resistir — e continuam a resistir — inventando estilos e técnicas refinadas de sobrevivência, bem como mitos nos quais, ao contrário das nossos, o fim do mundo não coincide de todo com o fim da vida. Como conseguiram fazê-lo? Em primeiro lugar, porque sempre estiveram livres do nosso antropocentrismo dogmático e vivem sob o alerta do seu antropomorfismo universal. Cada ser (quer apareça aos nossos olhos como homem ou como animal) tem de facto, para os índios, uma alma humana; mais precisamente: cada ser vê-se a si próprio como um homem e vê como homem os da mesma espécie (nós mesmos podemos então ser animais, e animais devemos parecer certamente, por exemplo, do ponto de vista dos jaguares, que são, ao invés, homens uns para os outros), ao passo que vê os de outra espécie como um animal predador. Por outras palavras, quando olham para os outros seres vivos, os ameríndios sabem que os animais que têm diante de si se vêem a si próprios como homens, como índios, e devolvem o olhar vendo (no caso do grande felino) presas ou então (no caso de uma espécie mais fraca) poderosos espíritos canibais. De acordo com esta visão intersubjectiva, simultaneamente complexa e límpida, a outra espécie não é humana e, ao mesmo tempo, é (no «seu próprio departamento»). Portanto, cada interacção entre espécies torna-se uma «intriga internacional, uma negociação diplomática ou uma operação de guerra que deve ser conduzida com a máxima circunspecção». Por isso, os ameríndios jamais poderiam acreditar na política como acção unilateral sobre aquilo que os rodeia, nem conceber a natureza como um mero recurso. Eles, que não têm um Estado e não se reconhecem sequer como um povo, pensam, pelo contrário, que tudo é negociação, tudo é social, que a vida de cada indivíduo é uma autêntica associação de seres, e que a política e a sociedade não tratam do ambiente, antes coincidem, em certo sentido, com o próprio ambiente: «pensam que há muito mais sociedades (…) entre o céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias. O que chamamos de “ambiente” é para eles uma sociedade de sociedades, uma arena internacional, uma cosmopoliteia. Não há portanto diferença absoluta de estatuto entre sociedade e ambiente, como se a primeira fosse o “sujeito”, o segundo o “objeto”. Todo objeto é sempre um outro sujeito, e é sempre mais de um. Aquela expressão comum na boca dos militantes iniciantes da esquerda, “tudo é político”, adquire no caso ameríndio uma literalidade radical (…) que nem o manifestante mais entusiasmado das ruas de Copenhague, Rio ou Madri talvez esteja preparado para admitir.»

Os índios — sugerem ainda Danowski e Viveiros de Castro — podem servir- nos de exemplo inspirador. Viver na nossa situação tão complicada, cheia de nuances, difícil de definir, significa também para nós sobreviver, abandonar hábitos prejudiciais e atitudes suicidas em prol de uma forma de vida resistente, e significa sobretudo levar a cabo uma tomada de consciência: conhecer os fenómenos, receá-los, ou melhor, começar finalmente a ter todo o medo que é preciso para deles ter verdadeira consciência. E significa reconhecer as forças em jogo, considerando até os relatos ou os sermões espectaculares, e os seus efeitos e ressonâncias; ter em conta, entre outras coisas, a entrada «espectacular do Vaticano na discussão» ou a aparição contemporânea do Manifesto Eco Modernista (An Ecomodernist Manifesto), «documento encabeçado pelo Breakthrough Institute e subscrito por muitas celebridades pró-capitalistas» mas, na verdade, nada distante das visões igualmente apologéticas de certos leninistas actuais. Também à esquerda, alguns — por exemplo, Nick Srnicek e Alex Williams, com o seu Manifesto Aceleracionista (Accelerate Manifesto for an Accelerationist Politics) — defendem, com efeito, que para sobreviver ao Antropoceno seria preciso «aproveitar [sic] cada avanço tecnológico e científico» do capitalismo tardio. Pensam que, contra a «fetichização da abertura, horizontalidade, e inclusão de boa parte da actual esquerda “radical”», se deveria recorrer a «sigilo, verticalidade e exclusão» para acelerar «o processo de evolução tecnológica », para «libertar as forças produtivas latentes»: como se estes avanços não consistissem na redução da técnica a um mero aparato de exploração (do homem e também da natureza), como se «evolução» fosse um valor indiscutível, como se «produção» não significasse destruição do mundo e, enfim, como se certos argumentos não tivessem já sido ridicularizados há cinquenta anos, precisamente por marxistas mais avisados (desde logo por Jean Fallot).

Para nos salvar das nossas mitologias nefastas, enquanto o globo reage ao nosso domínio com a violência de um gigante enlouquecido, os índios virão do futuro próximo ao nosso encontro. Há Mundo por Vir? é o seu mensageiro. E acerca deste livro, e do mundo perdido e possível, tivemos a oportunidade de conversar com Danowski e Viveiros de Castro.

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Andy Warhol, Russel Means, 1977
© Fotografia: Scala, Florença / Artists Rights Society / Tate, Londres

 

ANDREA CAVALETTI  Há já bastante tempo que os cientistas nos avisam que se ultrapassou o limite. A Terra já não se sujeita à nossa dominação, revolta-se com a violência de um gigante enlouquecido. Que fazer? Quais as escolhas a que nos obriga o Antropoceno?

EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO / DÉBORAH DANOWSKI  A Terra sempre «anotou» ou registou os efeitos das acções dos seres humanos, mas nunca se dobrou à dominação do Homem, ao contrário do que pensam os Modernos com a sua ideologia do Progresso. Nós (ou melhor, as civilizações que deram origem à modernidade capitalista ocidental e vice-versa) vivemos há já alguns séculos como se o mundo, de que somos apenas uma parte, fosse feito de matéria inerte e de seres vivos inferiores, o que nos daria todo o tipo de direitos sobre eles, que não passariam de recursos infinitos levados «grátis» ou escravos mudos ao nosso serviço. Mas qualquer acção causa uma reacção (uma reacção que é também uma acção, do ponto de vista do sujeito sobre o qual agimos), como toda a gente sabe. Portanto, não se trata propriamente de uma novidade; o que é novo é antes a escala destas «reacções », cuja soma nos fez passar do Holoceno para o Antropoceno.

Entrámos num mundo verdadeiramente desconhecido; desconhecido não só para a nossa civilização, mas, em alguns aspectos, para a espécie Homo sapiens como um todo. O que é impressionante; podíamos mesmo dizer que estamos face a um estado de coisas verdadeiramente sobrenatural, num sentido novo do termo, claro, ainda que possa ter relação com a antiga «sobrenatureza». Por isso, sim, passámos ou estamos prestes a passar quase todos os limites definidos pelas organizações científicas internacionais, como o do aumento máximo da temperatura global de 1,5º C a que o Acordo de Paris faz referência. Já passámos os 350 ppm de CO2 atmosférico que os cientistas consideravam o limite de concentração acima do qual entraríamos em território muito perigoso e fora de controlo (há alguns dias atingimos os 410 ppm). O gelo árctico está condenado, como estão muito provavelmente a Antártida e a Gronelândia. Estamos em plena sexta extinção em massa da história da Terra. Que podemos fazer? É preciso admitir que ninguém sabe exactamente, mas, de qualquer maneira, é preciso ainda e sempre agir, abrandar e mesmo travar a nossa fuga para a frente; fazer um exercício de pensamento e de imaginação, começando talvez por inverter a direcção da flecha do tempo dito «histórico», que, de qualquer forma, nunca foi um tempo único para toda a humanidade e cuja «flecha» nunca voou em linha recta para o Reino dos Fins do Homem. No que se refere ao tempo «físico», ou seja, o da lei da entropia, sabe-se que o fenómeno da vida conseguiu até hoje «enganá-la», exportando a entropia de forma a constituir-se como força neguentrópica, organizadora. Mas parece que «nós» nos tornámos agentes bastante eficazes de entropização, logo, forças antivida: sabemos hoje que o nosso «modo de vida» é mortífero. Ainda falamos como se o mundo existisse para a satisfação da vontade soberana do sujeito humano e também, paradoxalmente, como se não houvesse outras maneiras de viver, como se sair do nosso modo de vida «moderna » nos fizesse cair no caos absoluto. Ora, ambas as pressuposições são falsas. Em primeiro lugar, não podemos fazer tudo; há limites de todo o tipo e por todo o lado, não podemos escolher tudo o que queremos conservar nem tudo o que concordamos abandonar à sua sorte — o que não nos impede de agir e viver de múltiplas maneiras e em conjunção com outros seres vivos. Ora, se tentarmos imaginar como será a vida (humana e extra-humana) na Terra daqui a uns 50 anos, digamos, veremos que, quer queiramos quer não, será muito diferente da nossa vida presente. Haverá ainda viaturas individuais e estradas a cobrirem uma parte enorme da superfície da Terra? Haverá as mesmas grandes empresas que dominam hoje o mercado? Será a floresta amazónica ainda uma floresta, ou uma savana semi-árida? Será que as calotas de gelo ainda existirão? Haverá peixes nos oceanos, e terão as regiões desérticas aumentado brutalmente? Qual será a nova geopolítica dos vários países do mundo? Haverá ainda países, no sentido de Estados-nação? Quantos serão os refugiados ambientais e políticos, e onde estarão? Seremos — todos nós — também refugiados? O que será dos índios e dos outros colectivos extra-modernos? Como se fará a distribuição dos últimos recursos? E guerras? Que novas comunidades e agenciamentos «sobrenaturais» serão criados? Enfim, talvez só a ficção científica possa propor-nos possibilidades de mundos tão diversos e ricos; mas, para concluir, o que queria dizer é que, em suma, embora seja verdade que o Antropoceno nos obrigará a enfrentar inúmeros limites, tanto antigos como novos, também o é que, quando certos mundos desaparecem ou se fecham, outros mundos se abrem, e é nesses mundos que devemos aprender «a viver com» — to stay with the trouble, como propôs Donna Haraway.

AC  Parece-vos que o «desenvolvimento sustentável» (ou «durável») é um voto piedoso, ou melhor, um verdadeiro oxímoro…

EVC / DD  Sim, é uma contradição nos termos, a não ser que se redefina «desenvolvimento » como uma mudança radical de modo de vida ou, melhor ainda, como um «desdobramento» das virtualidades humanas, até como um recolhimento, capaz de proporcionar um buen vivir a todos, incluindo aos seres não-humanos. Sobretudo, a ideia de um «capitalismo durável» é pior do que um voto piedoso, é uma hipocrisia conceptual.

AC  Enquanto antropólogos, vivem há muito tempo com os ameríndios. E, como sublinham, 80 anos depois de Lévi-Strauss, os ameríndios são bem mais numerosos. Nós devemos seguir o seu exemplo. Porquê? Que nos podem eles ensinar?

EVC / DD  Antes de mais, um esclarecimento: a Déborah é filósofa, o Eduardo é antropólogo, e foi ele que viveu alguns anos junto dos ameríndios. Parece-nos que os índios nos ensinam pelo menos duas coisas: 1) Como sobreviver num mundo (no caso deles, as Américas) que foi devastado por uma civilização inimiga que se julgava acima do mundo inteiro (a Terra), por isso, como tendo direitos de soberania sobre tudo o que existe — civilização que, ironicamente, se encontra hoje perto de se ver na posição de Inimiga de si mesma; 2) Como darmo-nos conta de que a terra (e a Terra) não nos pertence, somos nós que a ela pertencemos.

As civilizações ameríndias — e muitas outras que ainda se encontram em estado de insubmissão espiritual face ao capitalismo (mesmo se a chamada «subsunção real» se revela como «facto universal») — não devem ser usadas como modelo do que quer que seja; elas não têm receitas para o futuro. São antes um exemplo, algo bem diferente de um modelo. O modelo é como uma ideia platónica: uma ordem normativa que impomos a outrem e que este só pode copiar de forma imperfeita, sempre imperfeita. Os modelos são coisa do fmi ou do Banco Mundial para os países «em vias de desenvolvimento». O exemplo, pelo contrário, é algo que nos inspira a fazer «diferente de forma parecida», ou «parecido de forma diferente». O modelo é vertical e hierárquico; o exemplo, horizontal e rizomático. Então, qual seria o exemplo que os índios e outros povos tradicionais têm para nos oferecer? Este, muito simplesmente: como viver, insistir em existir (devíamos poder escrever «rexistir») num mundo que lhes foi roubado, invadido e devastado por uma civilização estrangeira e incompreensível. O paradoxo da presente situação planetária encontra-se no facto de essa civilização estrangeira e incompreensível ser a «nossa» própria, a pretensa «civilização global» — ou, para falar francamente, o capitalismo mundial integrado, como dizia Félix Guattari.

AC  Poder-se-ia contrapor que nós não somos ameríndios. Nós somos os culpados…

EVC / DD  Podemos começar por nos perguntar quem é este «nós» que diz não serem ameríndios e que, como tal, são culpados. Serão todos os americanos, brasileiros, chineses, etc., culpados, e caso o sejam, sê-lo-ão culpados na mesma medida que os europeus? E o que dizer das etnias minoritárias da Europa? São os Sami da Finlândia tão culpados como os franceses? Será o camponês da Auvergne tão culpado como os accionistas da Total ou da Sygenta? E os milhões de marginalizados do mundo «desenvolvido»? Será o pequeno agricultor forçado a semear ogm e a utilizar pesticidas tóxicos nas suas plantações um culpado do mesmo «género» que a Monsanto ou a Bayer, ou que o seu Governo que cede aos ditames dessas corporações sinistras? Os trabalhadores-escravos que se matam nas fábricas chinesas de iPhones são tão culpados como os seus patrões, ou como a Apple? Seja como for, se cada classe tem os seus traidores, como dizia Hegel, podemos dizer que cada civilização terá — tem de ter — os seus. Se virmos bem, os índios e outros povos extra-modernos (e/ou que se encontram encurralados entre Estados-nação que os querem «assimilar») começam a encontrar aliados no interior dos países «centrais». Basta pensar na extensão e na força do apoio recebido pelo Movimento Zapatista, ou pelos curdos, para nos apercebermos de que as coisas estão a mudar. Começa a haver cada vez mais «culpados» que estão determinados a aliar-se aos ameríndios e aos seus congéneres.

AC  No vosso livro, analisam as mais recentes mitologias do fim: do género disaster movies até Melancolia ou o romance A Estrada. O que diria Davi Kopenawa dos nossos sonhos de angústia?

EVC / DD  Os ameríndios, como de resto os pequenos agricultores do Nordeste brasileiro, os Inuit e os povos das ilhas da Oceânia prestes a serem submersas, sabem bem o que se passa, mesmo se não usam expressões como «alterações climáticas», «aquecimento global», etc. Aliás, citamos, no nosso capítulo «O Fim do Mundo dos Índios», esta frase do xamã yanomami Davi Kopenawa: «Os Brancos não temem, como nós, ser esmagados pela queda do céu. Mas um dia eles terão medo, talvez tanto quanto nós!» Portanto, sim, eles estão bem a par do que se passa e têm muito medo disso. O desregramento ou a dessincronização dos ritmos e ciclos ecológicos tornaram-se «regra», transtornando gravemente as práticas de subsistência de todos os povos tradicionais: já não se sabe o tempo de fazer este ou aquele cultivo, dado que o regime biossemiótico do ambiente se tornou imprevisível. Ou, para citar o pensador e activista Russell Means (Oglala Sioux), cujo papel na revolta de Wounded Knee em 1973 é bem conhecido:

Os índios americanos andam há séculos a tentar explicar isto aos europeus. Mas, como disse antes, os europeus têm-se mostrado incapazes de ter medo. A ordem natural acabará por vencer, e os infractores morrerão, como morrem os veados quando perturbam a harmonia ao sobrepovoarem uma região. É só uma questão de tempo até ocorrer o que os europeus chamam uma «enorme catástrofe de proporções globais». Aos povos índios americanos pede-se que sobrevivam, assim como a todos os seres naturais. Parte da nossa sobrevivência consiste em resistir. Resistimos não para derrubar um governo ou tomar o poder político, mas porque é natural resistir à exterminação, sobreviver. Não queremos poder sobre as instituições brancas; queremos que as instituições brancas desapareçam. É essa a revolução.

Muito se tem dito nos últimos tempos sobre o medo e outros afectos respeitantes às alterações climáticas. Há quem diga, simplesmente, que os que têm medo da crise ecológica exageram, que são pessimistas, «catastrofistas» até. Outros, como Naomi Klein (The Shock Doctrine) explicam-nos de maneira bastante interessante como se transformou o medo em política de Estado, como a shock and awe doctrine paralisa as populações e permite aos Governos neoliberais implantarem políticas económicas particularmente nocivas para os mais pobres e para as classes médias. Ainda há outros que crêem que a situação é grave, mas que não se deve «meter medo». A nossa própria posição é mais próxima da de um Günther Anders ou de um Hans Jonas, filósofos que acreditavam no potencial profiláctico do medo. Porque o medo (tal como a morte, aliás) não deve ser apropriado pela direita e pelas suas políticas fascistas. O importante é reapropriarmo- -nos dos afectos, não os deixar nas mãos daqueles que estão a destruir a floresta e os ecossistemas.

AC  Há dois anos, o Papa fez uma intervenção com a encíclica Laudato si’; pouco antes tinha aparecido o Manifesto Eco Modernista. Tratam-se de documentos muito diferentes…

EVC / DD  De facto, muito diferentes, opostos até, e em todos os aspectos. O Manifesto Eco Modernista prega um «capitalismo pós-industrial e vibrante», com soluções tecnológicas centralizadas e um pesado investimento material e energético (fracturação hidráulica, centrais nucleares, grandes projectos hidroeléctricos, monoculturas de vegetais transgénicos, geoengenharia ambiental, etc.). Enquanto a Laudato si’ propõe um «regresso à simplicidade», «um crescimento na sobriedade e uma capacidade de se alegrar com pouco», em oposição ao consumismo e à alucinação de um «crescimento infinito ou ilimitado», em suma, a «convicção de que small is beautiful», os autores do Manifesto afirmam que big is beautiful: em vez de diminuir, de abrandar, devemos produzir ainda mais, ir mais depressa, inovar, crescer sempre e prosperar; sem hesitações, sem vergonha, sem arrependimentos. Enquanto a encíclica nos alerta para o perigo de tomar o desenvolvimento tecnológico e o crescimento económico como um «paradigma homogéneo e unidimensional» e, fazendo eco dos protestos dos climatologistas e de outros cientistas, insiste na importância do princípio de precaução; enquanto fala de limites planetários e relembra a urgência de uma travagem radical das práticas ecologicamente irresponsáveis (as quais permitem lucros enormes destruindo culturas e modos de vida pelo mundo inteiro, devastando ecossistemas e contaminando «a nossa casa comum»), os autores do Manifesto, bem pelo contrário, acreditam que, desde que prossigamos a nossa fuga para a frente, «modernizando a modernização» (para falar como Ulrich Beck), não teremos nada a temer: a mesma tecnologia que hoje nos envenena acabará por corrigir — nunca se chega a perceber como — esses «danos colaterais », essas «externalidades», e servirá para alimentar luxuosamente os 10 mil milhões de pessoas (humanas, claro; nem se fala dos outros milhares de milhões de seres vivos) que povoarão o mundo em meados deste século. Desta forma, crêem eles, poderemos garantir a «todos» (talvez aos 1%) um «Bom», talvez mesmo um «Grande Antropoceno», no qual poderíamos continuar a viver não apenas como hoje se vive nos países desenvolvidos, mas espalhando essa abundância por todos os povos do mundo. Enquanto a encíclica tem em consideração a imensa diversidade de culturas e formas de vida, os ecomodernistas só vêem uma via para todos. E, no entanto, como se pode ler na Laudato si’: «nem mesmo a noção da qualidade de vida se pode impor, mas deve ser entendida dentro do mundo de símbolos e hábitos próprios de cada grupo humano». Por fim, ao passo que a encíclica repete várias vezes que tudo na natureza tem um valor intrínseco e, mais do que isso, que tudo está ligado, os autores do Manifesto saíram-se com este conceito bizarro de «desacoplamento» (decoupling), segundo o qual a tecnologia (para eles, só existe uma Tecnologia, a «de ponta», ou seja, a que se funda na Big Science e no grande capital internacional) atingirá daqui a alguns anos um estado óptimo, reduzindo praticamente a zero os seus custos materiais e os seus impactos ambientais.

Assim, não é por acaso que os autores desse documento acusaram Francisco de ser «um papa contra o progresso», ao mesmo tempo que denunciam a «tendência religiosa» dos discursos dos ecologistas, tais como o «pecado », a «redenção» e o catastrofismo apocalíptico face às alterações climáticas. Ora, não se percebe bem como é que o autor de uma encíclica que acolhe o consenso científico acerca do mais grave desafio jamais enfrentado pela espécie humana, o Antropoceno, pode ser acusado de ser «contra o progresso». A não ser, claro, que por «progresso» se entenda o wishful thinking tecnófilo dos autores do Manifesto. Feitas as contas, parece-nos que são eles que, como bons cristãos, acreditam que depois do Apocalipse virá o Reino de Deus.

*Tradução de Ana Macedo e André Dias