Editorial
E nos corredores ressoam as palavras
José Manuel dos Santos e António Soares

«Que poderemos dizer que seja certo?», pergunta Electra, no meio do tumulto e do perigo, do desvario e da desforra (Ésquilo, Coéforas). Ao chamarmos Electra a esta revista, fazemos nossa a pergunta dela. Ao escolhermos um nome que vem da Grécia Antiga, onde surgiu o pensamento em todas as suas apoteoses e todos os seus desastres, todas as suas harmonias e todos os seus conflitos, dizemos a nossa fidelidade ao encontro de todas as liberdades com todos os perigos. Foi aí que o melhor e o pior de nós nasceram.

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O tempo em que vivemos tem sido acusado de muitas coisas, mas não de pensar de mais, embora a pretexto de quase tudo soletre, com uma agilidade, uma precipitação e até uma prepotência que fazem pensar, a palavra «pensamento». Com Electra, não desejamos impor ou apressar essa acusação de excesso de pensamento — mas gostaríamos de contribuir para a tornar menos improvável, menos distante e menos impertinente.

Pensar é dar às palavras a possibilidade de nos dizerem e de dizerem o mundo, dizendo-se a si mesmas nesse dizer. Pensar é cercar o território sagrado dos lugares-comuns, das ideias-feitas e das verdades mortas. Pensar é conceder aos dogmatismos a dúvida diabólica que os afronta e ameaça. Pensar é trocar a opinião — e os seus atrevimentos exibicionistas, gratuitos e arrogantes — pela aventura arriscada, dolorida e dura do conhecimento, do saber e, quando se lá consegue chegar, da sabedoria.

Esta revista quer ser um espaço e um tempo de onde o pensar não se afaste. Feita de linguagem (de linguagens), sabe que, como escreveu Wittgenstein, «os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo» (Tratado Lógico-Filosófico). Por isso, deseja levar esses limites, duplos uns dos outros, ao encontro do seu movimento e da sua fuga.

Ao criar uma revista, a Fundação edp junta ao que tem e ao que faz, aquilo que ainda lhe falta fazer. Soma, por este modo, ao seu já longo trabalho nas artes visuais, no apoio às outras artes, na intervenção social, na memória patrimonial da ciência e da tecnologia, estas páginas feitas de palavras e de imagens que podem abrir o nosso gesto sobre o mundo. Se assim for, daremos ao mundo um contacto e uma sonda, um reconhecimento e uma retribuição.

Aqui, a Fundação edp encontra um espelho, feito de múltiplos espelhos, como nas ficções de Borges ou nas pinturas de Magritte, onde o seu rosto se reflecte e confere, se revigora e refaz. Acreditamos que os temas e os problemas que aqui se pensam possuem a incandescência que os torna sinais de uma luz que corre entre a densidade do metal e a transparência do vidro.

No nosso estatuto editorial afirma-se que esta é uma revista de crítica, pesquisa, ensaio e reflexão cultural, promovendo a criação de hipóteses de pensamento, com diálogos e oscilações de fronteiras entre saberes. Foi Barthes quem escreveu: «A crítica não é uma “homenagem” à verdade do passado, ou à verdade do “outro”, é construção do inteligível do nosso tempo» («O que é a crítica?», Ensaios Críticos).

Mais se afirma que é uma revista de actualidade, mas de uma actualidade que vai para além da imediatez mediática. Charles Péguy lembrava que, «esta manhã, Homero é novo e nada há talvez tão velho como o jornal de hoje».

Esta é uma revista que interroga o espírito do tempo, as tendências, as ideias, as imagens, as mitologias que configuram e fazem mover a nossa época. Esta interrogação-atitude analisa, interpreta, impõe e expõe complexidades, confere e confronta alternativas.

Electra é forma e conteúdo, procurando nisso uma coincidência móvel e movediça. É uma revista que se lê e que se vê. Do design que a figura, às imagens que a fazem, ao portfólio que a desvia para outros caminhos, que também são seus, é uma revista contemporânea.

Mas é uma revista que não esquece a resposta que o filósofo Giorgio Agamben dá à pergunta «O que é o contemporâneo?»: «Aquele que pertence deveras ao seu tempo, que é deveras contemporâneo é alguém que não coincide perfeitamente com ele nem se adapta às suas exigências e é por isso, nesse sentido, inactual; mas precisamente por isso, precisamente através do seu distanciamento e do seu anacronismo, é capaz de perceber e captar o seu tempo melhor do que outros […] A contemporaneidade é, assim, uma relação singular com o nosso próprio tempo, que a ele adere e dele se distancia em simultâneo; mais precisamente, é essa relação com o tempo que a ele adere através de um desfasamento e de um anacronismo. Os que coincidem demasiado plenamente com a época, que condizem em todos os pontos perfeitamente com ela, não são contemporâneos, porque, precisamente por isso, não conseguem vê-la, não podem fixar o olhar sobre ela» (Nudez).

Electra é uma revista que faz seu o propósito de olhar o mundo — olhando-o com intenção, atenção e tensão. Olhá-lo, usando vários instrumentos. Com eles, foca, fixa, move, perscruta, amplia, pesa, mede, distancia-se. E evidencia, mostra, oculta, generaliza, particulariza, especula, ensaia, demonstra, argumenta. Talvez possamos dizer ainda, citando o que Boris Groys na entrevista que dele publicamos diz da arte, que é uma revista que, ao fazer-se, diz o modo como quer que o mundo a olhe.

Michel Foucault escreveu: «Momentos há na vida em que a questão de saber se é possível pensar de outro modo daquele que se pensa e perceber de outro modo daquele que se vê é indispensável para continuarmos a observar ou a reflectir. […] Mas o que é afinal a filosofia actualmente — refiro-me à actividade filosófica — senão o trabalho crítico do pensamento sobre si próprio? E se, em vez de legitimar aquilo que já se sabe, não consiste em procurar saber como e até onde é possível pensar de outro modo?» (História da Sexualidade. II: O uso dos prazeres). Estas perguntas são já o início de uma resposta. É com elas que também a nossa revista se quer fazer. Pensar é também dar às palavras a possibilidade de se negarem a dizer o que não as diz a elas mesmas.

Electra conta com a colaboração mais diversa e plural que for possível e útil. Procura não ter fronteiras nos convites que faz. A regra é uma e é esta: convidar quem se ache melhor, esteja onde estiver, para pensar e escrever o que é preciso ser pensado e escrito num momento, sobre um assunto. Ao fazer apelo a colaboradores de tão várias sabedorias, experiências, geografias, filiações, instituições, hierarquias, anarquias, horizontes, isso é sinal da nossa vontade de saber, de pensar, de dizer.

O editor de Electra é o jornalista, crítico e ensaísta António Guerreiro. Pela sua sólida experiência e pela sua atitude intelectual, isso significa que recebe dele conhecimento, profundidade e exigência.

O designer de Electra é João M. Machado. O seu projecto foi eleito entre quinze propostas de muita qualidade. Foi escolhida uma «ideia gráfica» que alia a clareza à eficácia e a elegância à exactidão.

O coordenador editorial é João Brito, que junta o seu conhecimento aos seus conhecimentos, fazendo de um e dos outros uma seta apontada ao alvo.

Agradecemos, com um reconhecimento que não se esgota, a todos os que já aceitaram colaborar, dando-nos a sua confiança — e nós a recebendo como a melhor prova de que Electra pode ser uma voz que passa a palavra.

Ao ser publicada em duas edições e duas línguas — português e inglês — Electra procura fazer a viagem de ida e volta, de volta e ida, até onde nada nos impeça de lá estar.

Neste primeiro número, apresentamos as secções fundamentais da revista: a sua matriz e o seu código, os seus temas e os seus motivos, a sua forma e a sua fórmula, a sua fisionomia e o seu ritmo, a sua anatomia e a sua fisiologia, a sua álgebra e a sua gramática.

Ao concentramos o nosso olhar «Nesta Grande Época» e ao escolhemo-la como primeiro «Assunto» da Electra, dizemos o que somos, o que vamos ser, situando-nos onde estamos e apontando o longe do nosso perto. Este número fundador é uma epígrafe dos outros, um tabuleiro de xadrez para que o jogo comece, uma onda deitada ao mar do tempo.

Mas é também o contrário de uma auto-suficiência e a confirmação de uma insatisfação. Esperemos que, não deixando de ser o que são, todos os números sejam os primeiros dos seguintes e os últimos dos anteriores.

Electra não é uma revista académica, nem uma revista especializada, nem uma revista técnica. Não é também uma revista-magazine ou de informação geral. Não é uma revista messiânica, salvífica ou redentora. Não é uma revista que corre atrás do que acontece. É uma revista que se situa entre o pensamento desse acontecer e o acontecer desse pensamento. Convidamos os leitores a terem esta revista na mão com que, ao acordar, esfregam os olhos para com eles verem melhor, mais claro e mais nítido.

Gostaríamos que aqui as palavras não caíssem umas sobre as outras, como às vezes acontece às ruínas que essas palavras nomeiam. Gostaríamos que esta revista nunca fosse a música que cessa, nem o ar que falta, nem a voz que falha. Gostaríamos que esta revista fosse a corrente que circula, o fio-de-prumo que desce, a lança que se ergue. Gostaríamos que os leitores tomassem posse dela como quem toma posse de uma coisa que lhes faz falta e que o seu desejo reconhece e atrai. Gostaríamos que os leitores fossem os melhores mensageiros da revista, os seus interlocutores, os seus críticos, aqueles de quem ouvimos a palavra que responde à nossa palavra e de quem recebemos o olhar que cruza e prolonga o nosso olhar.

Electra é o nome daquela que, em todos os seus números, ergue a voz para perguntar: «Que poderemos dizer que seja certo?» Um nome com um som que se aproxima do som de uma palavra parónima que anuncia movimento e corrente, condução e energia. Electra é também aquela que, simétrica de Édipo, deu nome ao que no interior da alma humana nos constrói como crença nisso.

De Ésquilo, a Eurípides e Sófocles, passando por Hugo von Hofmannsthal, Richard Stauss, Eugene O’Neill, Jean Giradoux, e chegando a Yourcenar, J. P. Sartre, T.S. Eliot, Theodorakis, Electra é um eixo em volta do qual giram muitos mundos móveis e mutáveis.

No final de um dos dois poemas em que evoca Electra, a poeta Sophia de Mello Breyner Andresen diz:

Porque o grito de Electra é a insónia das coisas
A lamentação arrancada ao interior dos sonhos dos remorsos e dos crimes

E a invocação exposta
Na claridade frontal do exterior
No duro sol dos pátios

Para que a justiça dos deuses seja convocada

(«Electra», Geografia).

E num outro poema seu, há este verso:

E nos corredores ressoam as palavras

(«Electra», Mar Novo).

Queremos que, nos corredores desta revista, também ressoem as palavras que se digam e nos digam. Queremos conseguir arrancar ao interior dos sonhos a lucidez com que olhamos a claridade frontal do exterior.

Esta é uma revista de pensamento. Isso não quer dizer senão que é uma revista em que as palavras se dizem para dizerem o que as faz não serem desnecessárias ou inúteis, estúpidas ou neutras, inofensivas ou presumidas.

Tudo o que aqui se lê quer fazer, ou desfazer, a pergunta de Electra: «Que poderemos dizer que seja certo?» Mesmo que a resposta corra o risco de, às vezes, usar o erro como se fosse a sua verdadeira máscara.

Electra é um nome que nos diz, em cada uma das edições da revista, em cada estação do ano, que o tempo é a forma do nosso encontro com as palavras que o dizem, dizendo-se nele.