Editorial
A cidade e as serras
José Manuel dos Santos e António Soares

Há livros que nos convidam a trazermos até nós a sua actualidade feita de observação astuta e de imaginação audaz — uma actualidade erguida sobre a terra firme da lucidez e a pedra forte da previsão. E assim sabemos que essa actualidade, que tanto nos surpreende e até nos encanta, não é um acaso ou uma sorte ou um acidente. É uma forma aguda de inteligência criadora que se aproxima da verdade que cada tempo rouba aos tempos seguintes para ser mais ele no que ainda não é, mas começa já a ser.

luis palma

Luís Palma
Da série «Paisagens Periféricas»
Porto, 1997

 

Se há obra com uma antecipação que a passagem dos anos foi desvendando, é esta. Se há livro onde a cidade e o campo se dizem e se distinguem, se fitam e se aferem, se comparam e se confrontam, esse livro é o último romance de Eça de Queiroz, o grande escritor português do século XIX, que Harold Bloom comparou com Balzac e cujo génio enalteceu. Em A Cidade e as Serras, existe um catálogo de razões, um breviário de motivos e um compêndio de argumentos que o tempo foi depurando, decantando e depondo na balança em cujos pratos se pesa o que abona ou deprecia o campo e o que enaltece ou desmerece a cidade.

Nestas páginas, onde a ironia corre com o movimento sobressaltado e divertido das ideias irrequietas e sinuosas que a guiam, as paisagens (rurais e urbanas) e as doutrinas (antigas e modernas) cruzam-se, interrogam-se, interpelam-se e interpretam-se reciprocamente. No tabuleiro de xadrez verbal que as palavras aqui vão desenhando, a contemplação lírica da beleza da Natureza, a que o poeta romano Horácio concedeu uma música sem morte (fugere urbem e carpe diem), e a meditação metafísica do pessimismo da vida, a que o filósofo alemão Schopenhauer deu uma voz sem esperança («a vida nunca é bela; apenas as imagens da vida são belas» e «para não nos tornarmos demasiado infelizes, o meio mais seguro é não procurarmos ser demasiado felizes»), são peças que se jogam, com os seus avanços, recuos e ziguezagues, num jogo de soma-zero.

Depois de anos em que dedicou ao país onde nasceu livros de imperiosa e impiedosa ferocidade crítica e morigeradora, esta narrativa descritiva reconcilia Eça com um Portugal ideal — idealizado pela Natureza e pelo povo que a tem por perto. Numa dialéctica de teses e antíteses e num estilo ao mesmo tempo saliente e subtil, que concede a tudo o que toca e nomeia um brilho móvel de verdade, as raízes da vida interrogam as origens da felicidade. O conflito entre a arcaica e natural religiosidade panteísta, com a sua força sacralizadora, e a moderna secularização e artificialização da existência, com o seu automatismo utilitário, evidenciam os ganhos e as perdas da Natureza e da Técnica, da Conservação e do Progresso, da Permanência e da Mudança, da Cultura e da Civilização, do Tempo Cíclico e do Tempo Linear.

Sem ter lido A Cidade e as Serras, mas como se a tivesse adivinhado, dizia, anos depois, o narrador de Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust (de cujo centenário do nascimento se dá notícia e sinal neste número da nossa revista):

De resto, a natureza, por todos os sentimentos que despertava em mim, parecia-me ser o que havia de mais oposto às produções mecânicas dos homens. Quanto menos tinha a marca delas, mais espaço oferecia às expansões do meu coração.

Do Lado de Swann

Simbolizados geograficamente por Paris, em França, e Tormes, em Portugal, A Cidade e as Serras dá a cada um dos domínios enunciados, ligados por uma conjunção copulativa no seu título, uma feição que os torna mundos em contraste, visões em contraposição e conceitos em comparação. Nesta oposição entre o centro da Civilização (mas periferia da Natureza) e o centro da Natureza (mas periferia da Civilização), o escritor toma arcadicamente, nesta obra tão singular, o partido do campo contra a cidade e, ao fazê-lo tão claramente no momento da sua vida em que o faz, leva-nos a reconsiderar toda a sua obra a uma luz que corre do fim para o princípio, convidando a um juízo interpretativo sobre as suas anteriores afirmações, negações, obliquidades, enviesamentos, complexidades, metamorfoses. Depois dos folhetins juvenis, que viriam a ser reunidos mais tarde nas Prosas Bárbaras, até logo antes de A Cidade e as Serras, há um programa realista que os primeiros textos não anunciam e que os últimos denunciam.

Em A Cidade e as Serras há a recuperação de uma linhagem bucólica e pastoral, que percorre, desde as antigas idades, os mais altos sonhos humanos de felicidade pacificadora e se manifesta na filosofia, na arte, na literatura, na política, mas que se afasta drasticamente do programa enunciado, por Eça e os seus amigos, nas Conferências do Casino, com altivez patriótica, ardor doutrinário e fervor revolucionário. É como se aquela vontade urgente de salvar Portugal de si mesmo e da sua decadência (dos seus atavismos, vícios e taras), que configurou o período militantemente activo da Geração de 70, tivesse cedido o lugar, no Eça dos anos finais, a um sentimento poético de apaziguamento e contemplação, em que os «vencidos da vida» passaram a acreditar que descobriram nas terras e nas serras portuguesas um locus amoenus, concluindo que, afinal, Portugal tinha no mais profundo, no mais sólido e no mais ancestral de si a salvação, desde que esse tesouro fosse preservado, protegido e transmitido (a pintora Graça Morais, em cuja obra há a memória e a mnemónica de um mundo imemorial, fala também disto, visual e verbalmente, no «Livro de Horas» que publicamos nesta edição).

Em A Cidade e as Serras, a conversão existencial do protagonista Jacinto coincide, ou pelo menos converge, com a conversão filosófica do autor Eça de Queiroz. Só que a conversão queirosiana não renega nem recusa integralmente as ideias, os ideais e os propósitos de um passado febril e regenerador — sublima-os e relativiza-os, dando-lhes uma outra conformação e uma outra dimensão.

Já em A Morgadinha dos Canaviais, o escritor e médico Júlio Dinis trouxera, para a actualidade literária de então, o tema da passagem, saudável e salvadora, da cidade ao campo e da regeneração que gera no corpo e na alma. Em Camilo Castelo Branco (romancista cujo «provincialismo» alguns opõem ao «cosmopolitismo» de Eça), a dualidade campo–cidade, no que isso significa na mundividência do escritor, está presente, por exemplo, em A Queda de um Anjo e em Coração, Cabeça e Estômago. Na história da literatura portuguesa, esta polaridade campo–cidade vem de Gil Vicente e Sá de Miranda, passando, entre outros, por Camões, Bernardim Ribeiro e Rodrigues Lobo.

A Cidade e as Serras é um tratado de conversão e uma espécie de tardio «romance de aprendizagem». Nele, José Fernandes, o narrador-personagem, confronta, a dado passo, o protagonista Jacinto, seu hipercivilizado e urbano amigo habitante do número 202 dos Campos Elísios parisienses, que tivera e mantivera um acerado horror ao campo e à província, com a sua espectacular e imprevista conversão rural. Esse foi um milagre magicamente conseguido, numa viagem ao Portugal dos seus antepassados, pelo convívio com aquelas paisagens, aquelas gentes, aqueles ares, aqueles cheiros e aqueles sabores campestres, que o salvaram da neurastenia, da insatisfação e da inutilidade de uma vida urbana cheia do acessório e vazia do fundamental:

— E esta Tormes, Jacinto, esta tua reconciliação com a Natureza, e o renunciamento às mentiras da Civilização é uma linda história…

E, noutra passagem da narrativa, o bom do Zé Fernandes evidencia e reforça o acerto da transformação drástica de Jacinto ao reflectir sobre si mesmo e sobre o que vê, quando, depois de uma longa estada no campo português, regressa temporariamente à cidade de Paris:

Com o charuto aceso contemplei o Boulevard, àquela hora em toda a pressa e estridor da sua grossa sociabilidade. A densa torrente dos ónibus, calhambeques, carroças, parelhas de luxo, rolava vivamente, como toda uma escura humanidade formigando entre patas e rodas, numa pressa inquieta. Aquele movimento indescontinuado e rude depressa entonteceu este espírito, por cinco quietos anos afeito à quietação das serras imutáveis. Tentava então, puerilmente, repousar nalguma forma imóvel, ónibus que parara, fiacre que estacara num brusco escorregar da pileca; mas logo algum dorso apressado se encafuava pela portinhola da tipoia, ou um cacho de figuras escuras trepava sofregamente para o ónibus — e, rápido, recomeçava o rolar retumbante. Imóveis, decerto, eram os altos prédios hirtos, como as hirtas ribas de pedra e cal que continham, disciplinavam, a torrente ofegante. Mas da rua aos telhados, em cada varanda, por toda a fachada, eram tabuletas encimando tabuletas, que outras tabuletas apertavam — e mais me cansava o perceber a incessância do trabalho, a rija canseira do lucro, que arfava por trás das fachadas decorosas e mudas. E então enquanto fumava o meu charuto, estranhamente se apossaram de mim os sentimentos que Jacinto outrora experimentava no meio da Natureza, e que tanto me divertiam. Ali, à porta do café, entre a indiferença e a pressa da Cidade, também eu senti, como ele no Campo, a vaga tristeza da minha fragilidade e da minha solidão. Bem certamente estava ali como perdido num mundo que me não era fraternal.

Ao escrever, no fim da sua vida relativamente breve, A Cidade e as Serras, Eça de Queiroz, sem que verdadeiramente disso tivesse consciência exacta ou premonição adquirida, fez sua a inscrição representada numa melancólica pintura de Nicolas Poussin, que fala da morte e dos mortos, presentes mesmo num país ideal e edénico. Na obra memorável do pintor francês, aparece a inscrição «Et in Arcadia ego» [Eu também estive na Arcádia], que vem das Bucólicas, de Virgílio, atravessa o Renascimento e as ideias adoptadas pela corte de Lourenço de Médici, inspirando também uma conhecida pintura de Guercino.

Esta tradição filosófica, gnóstica, poética e artística prossegue o caminho, ora visível ora oculto, e passa o seu testemunho a Rousseau e aos românticos alemães. Com esta obra fatidicamente final e tão admiravelmente surpreendente, é como se Eça fosse um daqueles pastores que olham e tentam decifrar, espantados e curiosos, a mensagem «Et in Arcadia ego», ao mesmo tempo feliz e fúnebre, epicurista e estóica, sibilina e sábia, do quadro de Poussin.

Ligando a memória de um passado intemporal à consciência aguda do tempo de mudanças que foi o seu, Eça de Queiroz deu à Cidade e as Serras uma actualidade futura que a torna uma obra certa, inspiradora e indispensável para introduzir e apresentar, nesta edição 18 de Electra, o dossier sobre «Cidade, Campo». Nele, nas suas palavras e imagens, passam os temas e os motivos, as avaliações e as meditações com que, num romance escrito em português, no final do século XIX, o seu autor soube observar, pressentir e interrogar o mundo como lugar de Natureza e de Cultura, de Civilização e de Barbárie, onde a vida se faz e se desfaz, se afirma ou se nega.

Se há temas permanentes na cultura humana, este é um deles e dos mais insistentes. Desde as várias antiguidades, no Ocidente ou no Oriente, no Norte ou no Sul, que o tema da oposição do campo e da cidade assoma em diversas formas simbólicas, criações filosóficas e expressões artísticas. Na Europa, uma das mais duradoras demonstrações desse confronto é-nos revelada pela fábula de Jean de La Fontaine do rato da cidade e o rato do campo (1668), cuja primeira versão é de Esopo (século vii a.C.). Alguns séculos depois do fabulista grego a ter imaginado, em Roma, o poeta Horácio fez desta história uma glosa. Com diferenças narrativas e estilísticas, consoante o autor de cada versão, o motivo fundador e fundamental permanece inalterável: a disputa dialéctica sobre as vantagens e desvantagens da cidade face ao campo e os benefícios e malefícios do campo face à cidade.

Foi acerca desta relação entre comunidades humanas determinadas pela Natureza, pelo clima, pela geografia, pela geologia, pela ecologia, pela história, pela cultura, pela antropologia, pela economia, pela demografia, pela sociologia, pelo direito, pela política, pela religião, que o célebre ensaísta e crítico galês Raymond Williams escreveu uma obra que se tornou clássica: O Campo e a Cidade na História e na Literatura.

Considerando, com profundo e minucioso conhecimento, o «caso inglês», mas mostrando aquilo que nele existe de heuristicamente indiciador, hermenêuticamente significativo, semiologicamente sintomático, cientificamente representativo e epistemologicamente universal, Williams estuda os fenómenos económicos, sociais e culturais que aconteceram ao longo de séculos na Grã Bretanha, entre os quais a precoce e pioneira Revolução Industrial teve uma importância crucial (por exemplo: a mudança do campesinato tradicional em capitalismo agrário desenvolvido). Também a fase expansionista do Império Britânico, com as suas colónias, teve consequências fundamentais.

Em ligação com estes fenómenos históricos, o autor analisa as mudanças que ocorreram no campo e na cidade, examinando, com uma inteligência editorialmetódica, as transformações, lentas ou rápidas, superficiais ou profundas, ligeiras ou radicais, efémeras ou permanentes, previsíveis ou imprevistas, que se foram verificando na relação entre estes dois mundos — o rural e o urbano —, configurando a Natureza e a cultura, a vida e a sociedade, as classes e os géneros, o trabalho e o lazer, os corpos e os ecossistemas, a sensibilidade e o pensamento, a informação e a visão do mundo e dos seres humanos. Esses dois mundos e a relação entre eles definiram, determinaram e diferenciaram as oportunidades e as escolhas, as fixações e o êxodos, os enraizamentos e as mobilidades, as inclusões e as exclusões, as assimilações e as transgressões.

Ao empreender este estudo, de um acertado âmbito e de um ambicioso alcance, Raymond Williams analisa as respostas que as criações literárias, as concepções filosóficas e o pensamento crítico e social foram dando às alterações e rupturas, mediações e metamorfoses, reformas e revoluções que se sucederam no espaço e no tempo. O ensaio do autor galês dá-nos ainda contribuições importantes para a história do próprio conceito de «desenvolvimento».

Investigando, com intencional incidência, o que foi acontecendo na história e na cultura a partir dos séculos XVI e XVII (época de ouro do género pastoral nas literaturas europeias, numa atitude que procura um refúgio no mundo natural, idealizado, como alívio, contraponto e protecção contra conflitos e agressões da sociedade urbana ou da corte, e que colhe inspiração em Hesíodo, Virgílio e Ovídio), este crítico e sociólogo da cultura detém-se nas obras maiores do romantismo inglês, como as de William Blake e Wordsworth. Considerando depois a nova literatura urbana dos séculos XIX e XX, prossegue a análise da passagem, na época vitoriana, para a modernidade social, com Dickens, e para a revolução literária de Joyce, chegando até à interpretação da ficção científica.

Do século XIX para cá, citámos Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Eça de Queiroz, Charles Dickens, Stendhal, Balzac, Victor Hugo, Flaubert, Zola, Proust, Joyce. Mas podíamos juntar, entre outros, os escritores americanos e os russos. Assim, Tolstoi começa o seu romance Ressurreição, escrevendo com um totalizador panteísmo cósmico e uma aguda e pioneira consciência ecológica:

Por mais que as várias centenas de milhares de pessoas concentradas num território pequeno se esforçassem por desfigurar a terra em que se apertavam, por mais que a cravassem de pedras para que nada crescesse nela, por mais que exterminassem a mínima erva que brotasse, por mais que a enchessem de fumo do carvão e do petróleo, por mais que cortassem as árvores e escorraçassem todos os animais e pássaros — a Primavera era a Primavera mesmo na cidade.

Embora em tempos e em modos diversos, nas obras destes escritores que referimos, e aos quais seria possível juntar muitos mais, pode-se ler este tema maior da cidade–campo, nas suas declinações, derivas, desvios e deslocações. Mas um dos que mais levou a energia e o ímpeto deste tópico a um ponto de lucidez alucinada ainda não o citámos. Foi ele Charles Baudelaire. Em O Pintor da Vida Moderna, As Flores do Mal ou O Spleen de Paris, o poeta criou uma galeria de figuras e arquétipos, entre os quais avulta e pontifica o flâneur. Mas também o estrangeiro, o artista, o doido, a viúva, o saltimbanco, o jogador. Entre a solidão e a multidão, o espanto e o tédio, o ideal e o spleen, «o horror da vida e o êxtase da vida», Baudelaire fez dos seus poemas, em verso ou em prosa, fábulas da vida moderna e manifestos contra o tão celebrado «progresso», firmando uma desafiadora e inquietante mitologia urbana da modernidade.

Como dizem os que acertam o que dizem com o que vêem acontecer, «na vida é preciso sorte para tudo». Baudelaire (e Proust também) teve a sorte de encontrar em Walter Benjamin o filósofo-crítico que, com a luz lúcida e intensa que sobre ela fez incidir, soube dar à sua obra uma sombra que agigantou o seu corpo, projectando-o na larga e longa parede lívida do tempo. Como mostra Benjamin, no seu magistral ensaio Charles Baudelaire, Um Poeta na Época do Capitalismo Avançado, este foi um momento ímpar e visionário de mudança e experiência, descoberta e choque, perda e contradição.

Na sua obra La Otra Voz. Poesia y fin de siglo, escreveu Octavio Paz:

O herói romântico era o aventureiro, o pirata, o poeta convertido em guerreiro da liberdade o solitário que se passeia na margem de um largo deserto, perdido numa meditação sublime. O herói de Baudelaire era o anjo caído na cidade; vestido de negro e no seu traje elegante e coçado havia manchas de vinho, óleo e lama. […] Embora a aventura humana — as suas paixões, loucuras, iluminações — prossiga na nova poesia, os interlocutores mudaram. A antiga natureza desaparece e com ela as suas selvas, vales, oceanos e montes povoados de monstros, deuses, demónios e outras maravilhas; em seu lugar, a cidade abstracta e, entre os velhos monumentos e as praças veneráveis, a terrível novidade das máquinas. Mudança de realidade: mudança de mitologias. Antes, o homem falava com o Universo, ou acreditava que falava: se não era seu interlocutor, era seu espelho. No século XX, o interlocutor mítico e as suas vozes misteriosas evaporam-se. O homem ficou só na cidade imensa e a sua solidão é a de milhões como ele. O herói da nova poesia é um solitário na multidão, ou melhor dito, uma multidão de solitários. É o H. C. E. (Here Comes Everybody) de Joyce. Descobrimos que estamos sós no Universo. Sós com as nossas máquinas. Os industriosos diabos de Milton devem ter esfregado as mãos. Foi o começo do grande solipsismo.

Nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX, as cidades e os campos foram campos de guerra e cidadelas de combate. Com tudo o que então acabou e começou (impérios e revoluções), com as transformações políticas, científicas, tecnológicas, arquitectónicas, artísticas, a cidade e o campo tornaram-se geografias simbólicas e reais de sobredeterminação e de sobrexcitação. Entre a pólis e o cosmos, a cultura e a Natureza, o poeta Antero de Quental viveu o seu drama interior (psicológico, mas também filosófico e político) como tragédia universal. De Cesário Verde, em cuja poesia o campo e a cidade se afrontam, disse Fernando Pessoa / Alberto Caeiro:

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Luis Palma
Da série «Territorialidade»
N 630, Spain Map Road, 2004

Ao entardecer, debruçado pela janela, E sabendo de soslaio que há campos em frente.

Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.

Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos…

Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros…

Na constelação de poetas-heterónimos que Pessoa criou para dar rostos e vozes a todos os seus mundos interiores e exteriores, está o mais rural (Alberto Caeiro) e o mais urbano (Álvaro de Campos). E, no Livro do Desassossego, Bernardo Soares olha Lisboa como um lugar físico e metafísico: «Mas, enfim, também há universo na Rua dos Douradores. Também aqui Deus concede que não falte o enigma de viver.»

Nesse tempo, mas como se o tempo que vivia fosse outro, o «velho da montanha», como lhe chamou o poeta e pintor Mário Cesariny, olhava a Serra do Marão e via o Universo e os seus infinitos. Teixeira de Pascoaes fez da sua poesia (contando nela a sua prosa) um relâmpago e um trovão de afirmação da Natureza primordial e universal, dando ao homem um rosto cósmico solar e lunar. Nos Contos da Montanha, nos Novos Contos da Montanha e nos Bichos, Miguel Torga trouxe para os livros aquelas pessoas-personagens que nem sequer os podiam ler. E o brasileiro Guimarães Rosa abre, com o Grande Sertão: Veredas, uma nova língua na língua que todos falam.

Nessas décadas febris e bélicas, em que todos os solos tremeram e todos os céus cederam, o campo e a cidade serviam para dividir e classificar, para louvar e anatemizar. As geografias filosóficas, políticas, religiosas, morais e sociais organizavam-se sob as coordenadas desses domínios. Conhecendo as suas posições culturais e políticas, basta-nos ler Heidegger e Jünger, lembrando também os seus cultos e hábitos florestais, para saber isso.

Nas artes plásticas e no cinema, na fotografia e na música, na literatura e na arquitectura, na dança e no design, no teatro e na banda desenhada, correntes e movimentos, escolas e obras, épocas e autores foram atraídos pela cidade e pelo campo. Assim, procuraram nessa escolha aquilo que melhor os define e que mais os distingue. Falar de romantismo ou de realismo, de naturalismo ou de impressionismo, de futurismo ou de surrealismo, é falar destas aproximações e destas distâncias. Na Sinfonia Pastoral de Beethoven, no Elixir do Amor de Gaetano Donizetti, em A Sesta de Van Gogh, em A Sagração da Primavera de Igor Stravinsky, no Aurora de Murnau, na Paris de Eugène Atget e Henri Cartier-Bresson, em Le Métro de Maria Helena Vieira da Silva, em Viagem a Tóquio de Yasujiro Ozu, em Acto da Primavera de Manoel de Oliveira, em As Cidades Invisíveis de Italo Calvino, em Levantado do Chão de José Saramago, em As Cidades Obscuras de François Schuiten e Benoît Peeters, em «City Sickness» dos Tindersticks, em Garrowby Hill de David Hockney, na capela Bruder Klaus de Peter Zumthor, em Delirious New York e em Countryside, The Future de Rem Koolhaas, estão visões, representações e evocações variadas das cidades e dos campos, numa lista que, para ser completa, seria interminável.

Nos nossos dias tecnológicos e ecologistas, narcisistas e massificados, lúdicos e amnésicos, o tema da cidade e do campo move-se nos ecrãs de todos os sistemas, dispositivos e equipamentos que povoam o nosso quotidiano, enche páginas e páginas de jornais, revistas e livros que folheamos sem vagar, dá som a vozes e silêncios. É um tema que induz mudanças radicais de vida, gera esperanças e equívocos, cria ilusões e desilusões, acende imaginações e urgências. É um tema concreto e abstracto, real e fictício, individual e colectivo, material e imaterial, económico e social, antropológico e cultural, existencial e metafísico. Tal como outros de que a Electra já se ocupou, é, para a compreensão do nosso tempo e do que nele acontece, verdadeiramente indispensável.

O campo e a cidade como oposição, contrapoder, complemento, alternativa, alternância, mudança, ruptura. Muitos querem ter o campo na cidade e outros a cidade no campo. Procuram o campo sem campo e a cidade sem cidade. Exigem todas as distâncias tornadas proximidades e fazem das contiguidades lonjuras. Desejam as férias sem fim e o trabalho sem princípio. Alguns consideram que hoje tudo é urbano e outros lembram que o campo se estende por quase toda a superfície do planeta. Alguns acentuam e dramatizam a oposição entre o campo e a cidade e outros consideram essa dicotomia simplista e enganosa.

Da filosofia à ecologia, do urbanismo à arquitectura, da geografia à história, da literatura à arte, da economia à sociologia, da medicina à política, este é um tema que pode ser tratado de muitas maneiras e olhado com vários olhos. Neste «Assunto» de Electra, estão alguns desses modos de o tentar alcançar e entender.

Naqueles anos em que o presente de todas as guerras se tornava ao mesmo tempo passado e futuro dele próprio, um homem nascido no gueto de Praga — e que viveu uma vida breve, olhando o mundo com uns olhos portadores de uma lucidez bela e aterradora — conseguiu dizer nas suas parábolas o sentido do não-sentido.

Um dos seus contos tem por título «Crianças na Estrada Rural» e acaba assim:

Já estava na hora. Beijei aquele que estava ao meu lado, estendi só a mão a outros três que estavam mais por perto e comecei a percorrer o caminho de volta, ninguém me chamou. No primeiro cruzamento em que deixaram de me ver, virei e corri por carreiros outra vez para dentro da floresta. Fui na direcção da cidade que fica a sul, aquela de que se falava na minha aldeia dizendo:

«Vivem lá umas pessoas! Imaginem, não dormem!»
«E porque não?»
«Porque não se cansam.»
«E porque não?»
«Porque são malucos.»
«Os malucos não se cansam?»
«Como é que os malucos se podiam cansar!»

Com este final do conto de Franz Kafka, ao mesmo tempo tão inocente e tão perverso, podemos começar a perceber algumas coisas. Dessas coisas, a Electra tem falado e continuará a falar. O seu propósito é, afinal, o de nunca esquecer esta outra verdade que Kafka também nos disse:

A vida é uma perpétua distracção que não vos deixa mesmo tomar consciência daquilo de que ela se distrai.

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Luís Palma
Da série «Paisagens Periféricas»
Lisboa, 2018

 

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Luís Palma
Da série «Factos e Ficções»
A propósito de apropriação, #1, 2016