Fotografar uma fotografia: a olhar para O Problema da Habitação
«O projecto de Daniel Malhão que ostenta o portentoso título O Problema da Habitação é um conjunto de imagens que resultam de um processo permanente de deambulação pela cidade. Em rigor, por duas cidades: Lisboa e Viena […]. Sem nenhum programa senão poder deter-se tempo suficiente para olhar para o que não tem história, ou para o que tendo não foi por ela que foi captado.» Quem assim apresenta a colecção de fotografias que constitui este «Metropolitano» é o crítico de arte e curador Delfim Sardo, num ensaio que é ele próprio uma deambulação pela História da Fotografia, que conduz à história destas fotografias. Representado em importantes colecções e com uma obra mostrada em várias exposições nacionais e internacionais, Daniel Malhão é um reconhecido fotógrafo português contemporâneo, cuja obra tem sido marcada por uma estreita ligação da fotografia com a arquitectura.
1.
Em 1951, John Brinckerhoff Jackson começou a editar a revista Landscape, porventura uma das primeiras reflexões sistemáticas sobre a paisagem entendida como uma realização humana na qual a dicotomia com a Natureza não possui qualquer sentido. O interesse pelo vernacular, pela forma como o olhar atravessa campos de visão que permanentemente restruturam a nossa relação com o lugar, foi o motor da sua investigação e a força motriz de Landscape até 1968, período durante o qual a dirigiu.
Jackson introduziu a noção de Landscape Studies, um cruzamento entre geografia, antropologia cultural, crítica arquitectónica, urbanística e estudos culturais, assente no interesse pelo vernacular. A noção de que a fotografia aérea, na sua construção de uma visão sistemática, distanciada e exaustiva, tinha alterado a percepção da paisagem subsumida na racionalidade do território — inevitavelmente também da paisagem urbana — parecia requerer um campo visual definido do ponto de vista da rua ou da estrada, da deambulação urbana ou rural, pelo baldio ou pelo indiferenciado, como uma capacidade de captar o contínuo do vernacular e poder despertar para as microorganizações do espaço, as continuidades e disfuncionalidades que correspondem a formas aleatórias de estruturação do campo. O destino da revista Landscape e a posterior presença académica de Brinckerhoff Jackson foram importantes, mas fizeram esquecer o relevo que teria no estreito universo dos seus assinantes, entre os quais se contam alguns dos artistas e fotógrafos que viriam a definir o universo da arte americana a partir da década de 60.
A possibilidade de construção de um discurso simultaneamente diletante e profundamente informado sobre o campo visual indiferenciado encontra-se intimamente ligada à deslocação, à viagem, que o próprio Brinckerhoff Jackson praticou como um «turista profissional» — como ele mesmo se definiu —, fotografando e realizando esquiços nas suas viagens pelos Estados Unidos na sua moto BMW, como também por África, França, Reino Unido e Áustria. O propósito de converter a paisagem na hierarquia do campo visual que se apresenta perante um espectador estático é claramente preterido por uma ideia de criação de um campo visual narrativo, percebido a partir da deslocação — que, por sua vez, necessita de encontrar uma temporalidade da visão e uma capacidade para detectar a direcção do exercício do olhar.
O projecto pessoal e híbrido de Jackson (na forma como reconfigura a possibilidade de uma visão não especializada para uma abordagem no campo lato da geografia) deve ser relacionado com a cultura nómada que, em 1957, viria a afirmar-se com uma enorme potência com a publicação de On the Road, de Jack Kerouac. No entanto, numa curiosa coincidência em relação ao projecto geográfico de Jackson, as primeiras versões do livro (que relatam as viagens do autor e de Neal Cassady pelos Estados Unidos a partir de 1947) datam de 1951 (o célebre rolo tipografado em contínuo e sem parágrafos), posteriormente completadas e editadas, embora excertos do manuscrito original tenham originado um livro prévio, Visions of Cody, que circularia pela comunidade Beat em fragmentos. A sua influência foi tão marcante que o grande fresco fotográfico que é The Americans (1959), de Robert Frank, primeiramente publicado em Paris em 1958, conta com uma introdução de Kerouac, que Frank conhecera no ano anterior. A visão de Frank, ácida e trémula, emocional e sem distância, pode ser compreendida como uma outra declinação do mesmo interesse humanista pela geografia humana da América captada ao longo de uma viagem por quarenta e oito estados, um périplo que, na sua poética visual, converte o campo visual numa série de snapshots dos encontros em trânsito.
"Embora situado num eixo completamente distinto em relação ao humanismo de Frank, aquilo que Ruscha produz é um cenário, à maneira dos panoramas pintados do século XIX, que compõe uma teatralidade do lugar e que iria ter continuidade nas suas imagens das piscinas de Beverly Hills, ou dos parques de estacionamento vazios que realizou mais tarde, ainda na década de 1960."
2.
Em 1963, Ed Ruscha iniciou uma série de dezasseis pequenos livros de artista que continuaria a produzir até 1978 com uma publicação que reunia imagens de postos de gasolina captadas na Route 66, entre Los Angeles (onde estudava) e Oklahoma City (de onde era natural), intitulada Twentysix Gasoline Stations. As imagens das estações de serviço compõem uma paisagem sem figurantes, uma possibilidade de compreensão do lugar também tomada a partir do trânsito e da deslocação. A estrada, esse campo metafórico de transporte (e, duplamente, pelo próprio significado grego da palavra), transforma-se, na visão de Ruscha, numa narrativa serial de momentos repetidos, o banal destacado, não pelo seu relevo antropológico (que é uma consequência), mas pela permanente retoma dos mesmos modelos. Esta tipologia de abordagem, curiosamente, é tributária de uma poderosa influência de Ruscha: Walker Evans, com as imagens das bombas de gasolina, mas sobretudo o mapeamento dos Sign Posts que este havia realizado sistematicamente desde o início do seu percurso fotográfico, na década de 1920, até às polaroids que realizou com uma SX-70 no final da sua vida, em 1973.
Este interesse pelo vernacular estaria também presente na edição que Ed Ruscha realizou em 1965, Some Los Angeles Apartments, no qual surgem imagens de edifícios indiferenciados, que, no entanto, na ausência de qualquer presença humana, constroem uma ambiência para a qual concorre a repetição de elementos arquitectónicos, a luz e as palmeiras, além de uma total ausência de expressão na construção repetitiva da imagem. No ano seguinte, produziria um outro livro de artista, de facto um enorme leporello, intitulado Every Building on Sunset Strip, no qual a deslocação é tornada completamente literal: com uma máquina de 35 mm instalada no tejadilho de um automóvel, fotografou, em movimento, ambos os lados de uma extensão de 2,5 quilómetros, entre Beverly Hills e Laurel Canyon, na icónica via de Los Angeles, numa documentação que não produz qualquer julgamento sobre os edifícios e os apresenta num enorme panorama.
Embora situado num eixo completamente distinto em relação ao humanismo de Frank, aquilo que Ruscha produz é um cenário, à maneira dos panoramas pintados do século xix, que compõe uma teatralidade do lugar e que iria ter continuidade nas suas imagens das piscinas de Beverly Hills, ou dos parques de estacionamento vazios que realizou mais tarde, ainda na década de 1960.
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