Editorial
A regra do jogo
José Manuel dos Santos e António Soares

— Gooooooolo!

Este grito, que dentro de si mesmo ecoa e se prolonga até ser capaz de parecer inextinguível, não tem cessado de atravessar o mundo, desde que, em 22 de Janeiro de 1927, se ouviu no primeiro relato de futebol, transmitido pela BBC para levar o jogo a casa dos ingleses.

 

Pasolini

Pier Paolo Pasolini, 1965
© Fotografia: Scala, Florença / Austrian Archives

— Goooooooolo! Gooooooolo! Gooooooolo!

Eis o grito, já quase onomatopaico e em reiteração interminável, que, usando todas as possibilidades das tecnologias modernas, continua a fazer-se ouvir por todo o lado, aumentando a sua voz, o seu volume, o seu poder e o seu alcance. Esse brado é agora quase sempre acompanhado de imagens animadas e omnipresentes.

Estar num estádio de futebol não é apenas assistir a um acontecimento desportivo. É participar num facto social total, num processo económico, numa mitologia cultural, num registo histórico, numa sessão de psicoterapia, numa catarse individual e colectiva. E numa representação teatral, num culto místico, numa cerimónia litúrgica, numa celebração totémica, num cerimonial satânico, num ritual de feitiçaria, numa litania mágica.

Não é por acaso que muitas palavras da teologia e da religião são usadas para falar de futebol, dos seus modos, pessoas e lugares: catedral, milagre, fé, comunhão, consagração, sagrado, salvação, luz, iluminação, ressurreição, veneração, inferno, diabos, mão de Deus. E muitos gestos também vêm daí: persignações, benzeduras, preces, sinais, superstições, dedicações, devoções, olhares de beatitude e acenos dirigidos ao céu.

Quem gosta de futebol e não pode estar no estádio quer estar no estádio, mesmo sem lá estar, através de relatos, transmissões directas ou diferidas, reportagens, notícias, informações, testemunhos, comentários. Se há fenómeno que dá o dom da ubiquidade e da omnipresença aos que nele participam, é este. Pelo menos nos grandes jogos, os jogadores que correm atrás de uma bola que rola, reflectindo o seu movimento na cor verde da relva que pisam, estão ali e, como Deus, estão em toda a parte.

O que se passa nesses campos verdadeiramente magnéticos é uma linguagem universal que fala todas as línguas e tem um valor global. É um íman com uma força de atracção e de repulsão avassaladora. Faz mover e faz parar tudo. A emoção individual e colectiva que provoca é apenas semelhante à dos grandes acontecimentos humanos e dos colossais fenómenos naturais.

O futebol é o palco e os bastidores, o campo e o balneário, o plantel e o estágio, o treino e o jogo, os treinadores e os jogadores, os árbitros e os adeptos, os agentes e os mediadores, os especuladores e os aventureiros, os tifosi e os hooligans. É as taças e os prémios, as federações e os campeonatos, as bancadas e as secretarias, as administrações e as direcções, as «sades» e os clubes, os títulos e as acções da bolsa, o merchandising e a claque, o marketing e a comunicação, os jornalistas e os comentadores, a vitória e a derrota.

É o desporto e o espectáculo, a propaganda e a política, a burocracia e a plutocracia, o nacionalismo e o internacionalismo, o clubismo e o cosmopolitismo, o jogo e o resultado, os processos e as polémicas. É a brincadeira e a seriedade, o cepticismo e o fanatismo, o sentimentalismo e o mercantilismo, a identidade (geográfica, cultural, social, sexual) e a transferência, o passe da bola e o passe do jogador, a chicotada psicológica e a dança dos treinadores, a compra e a venda. É a memória e a expectativa, a concentração e a exaltação, a expansão e a repressão, a exactidão e o delírio, a catarse e a sublimação, a convivência e a violência.

Além do que é, hoje o futebol é também o que nele nasce e o que dele cresce. O futebol é as imagens imparáveis nos ecrãs e as palavras convulsas que gera nas bocas dos que dele falam ininterruptamente — em casa, no emprego, no café e no barbeiro; ao almoço e ao jantar; antes, durante e depois do trabalho ou do descanso; com os filhos e com os pais, com os tios e com os primos, com as colegas e com os colegas, com os amigos e com os inimigos.

Ouvir falar de futebol é ouvir palavras que falam de técnicas e de tácticas, de estéticas e de erotismos, de matemática e de estatística, de música e de bailado, de cálculo de probabilidades e de geometria descritiva, de sagrado e de profano, de poesia e de prosa. Ouvir falar de futebol é também ouvir dizer as palavras mais néscias e primárias, mais inúteis e dispensáveis, mais afásicas e indecorosas — e é, subitamente, ficarmos frente a frente com o Kitsch mais despudorado e agressivo.

O futebol deu origem à maior e mais vasta indústria verbal existente sobre a terra e sob o céu. Com o futebol como tema, motivo, inspiração ou pretexto, fala-se, perora-se, discursa-se, discute-se, divaga-se, especula-se, elucubra-se, debate-se, deduz-se, comenta-se, cogita-se, congemina-se, conjectura-se, concorda-se, conclui-se, presume-se, prognostica-se, infere-se, discorda-se, argumenta-se, recrimina-se, acusa-se, defende-se, insulta-se, teoriza-se.

Como no amor (A Metafísica do Amor, Schopenhauer), também há uma meta- física do futebol que faz perguntas sobre o que está para lá do que é físico e que procura o motor imóvel, o princípio fundador, a causa primeira, a finalidade última, a relação entre mente e matéria, substância e atributo, contingência e necessidade, absoluto e relativo, permanência e mudança, livre-arbítrio e possibilidade, realidade e imagem, ser e ente, imanência e transcendência, espaço e tempo.

Além de uma metafísica, o futebol tem também uma epistemologia. Assiste-lhe um copioso e prolixo discurso do método e uma disputa entre crença e verdade, hipótese e modelo, experiência e certeza, teoria e prova, acontecimento e linguagem, lei e excepção, dedução e indução, verificabilidade e falseabilidade, conjectura e refutação, lógica e sentido, racionalismo e empirismo. E, além de uma metafísica e de uma epistemologia, o futebol, grande objecto fenomenal, parece requerer uma fenomenologia que faça sua o que Husserl diz na Quinta Meditação Cartesiana sobre o corpo, o eu e o outro.

Falar de futebol é falar de um universo em expansão com um big bang privativo, um espaço-tempo privado e uma teoria da relatividade própria. É falar do mundo do nosso tempo e do tempo que faz esse mundo ser como ele é. É falar de um fenómeno planetário, cósmico, universal, que se aproxima de todos, mesmo daqueles que dele se querem afastados, distantes, alheados ou fugitivos.

É falar de multidão, de mobilização, de comoção, de efusão, de fusão. É falar de convivência, de conivência, de fair play, de confronto, de violência. É falar de ídolo, de fetiche, de mascote, de álibi, de totem, de tabu. É falar do mais local e do mais global, do mais individual e do mais grupal, do mais particular e do mais geral.

Norbert Elias foi o autor celebrado de O Processo Civilizacional e o seu discípulo Eric Dunning levou a teoria de Elias à observação do desenvolvimento e da metamorfose do desporto moderno e do aumento da violência nele. Em A Busca da Excitação, um livro fundamental para pensar estes temas e problemas, o mestre e o discípulo dão às práticas desportivas, e, nelas, ao futebol, uma análise certeira que as torna indiciadoras do que se passa na sociedade global, vendo na «busca da excitação» um dos fenómenos essenciais da nossa civilização actual.

Falar de futebol é falar do mais divisor e do mais agregador, do mais separador e do mais unificador, do mais diferenciador e do mais homogeneizador, do mais excludente e do mais representativo. É falar do mais racional e do mais irracional, do mais urbano e do mais tribal, do mais sofisticado e do mais primitivo. É falar de poder, de arte, de iconografia. É falar de técnica, de indústria e de comércio. É falar de interclassismo e de luta de classes. É falar de uma épica, de uma lírica, de uma dramaturgia, de uma cinematografia. É falar de conceito e de preconceito. É falar de lei e de lei da selva. É falar de moralismo e de corrupção. Falar de futebol é falar de ócio e de negócio.

Falar de futebol é falar de desporto, de entretenimento, de identidade, de cultura, de medicina, de arquitectura, de antropologia, de sociologia, de direito, de psicologia, de economia, de política, de comunicação.

No sua obra, já clássica, Homo Ludens: Ensaio sobre o elemento lúdico da cultura, Johan Huizinga defende que o jogo é um instinto primordial, representando uma das forças mais originárias e com raízes mais fundas na história pré-humana e humana. Para este historiador da cultura, o homo ludens é o vértice de um triângulo cujos outros dois vértices são o homo sapiens e o homo faber. Huizinga defende que é do jogo que nasce a cultura, sob a forma de rito e de sagrado, de linguagem e de poesia.

O jogo é logos (com a sua racionalidade e lógica), ethos (com a sua regra e a autoridade dela) e pathos (com a sua emoção e a empatia que suscita). No subsolo das várias actividades humanas — do direito à ciência, do desporto à arte, da literatura à política — está o instinto de jogo. É no jogo que estão fundadas as artes de expressão e de competição, as artes do pensamento e do discurso, da retórica e da dialéctica, com as suas expressões de acusação e defesa, tanto na tribuna política como no tribunal judicial. É no jogo primordial que os jogos de linguagem e os jogos do amor encontram o seu primeiro modelo. E é também sob esse impulso paradigmático que se realizam os voluntários jogos de combate e os forçados jogos de guerra.

O jogo, com o seu instinto e a sua sedução, é, segundo Huizinga, mais inicial, primordial e primitivo do que a cultura, pois faz parte daquelas coisas em comum que o homem partilha com os animais. Afirma ele no seu livro: «O jogo é um facto mais antigo do que a cultura, pois esta, mesmo nas suas definições mais rigorosas, pressupõe sempre a sociedade humana; mas os animais não esperaram que os homens os iniciassem na actividade lúdica.»

É por isso que zoólogos, etologistas e antropólogos se têm ocupado deste desporto e foram buscar aos comportamentos animais e às condutas das tribos primitivas as fontes remotas do futebol.

Tudo o que ao futebol diz respeito provoca um jogo de adesões e de rejeições, de atracções e repulsas. O seu primitivismo tem um efeito paradoxal. Muitas vezes a recusa do futebol e do seu tribalismo primário é usada, por aqueles que querem mostrar sofisticação intelectual, como uma prova da sua distinção. Outras vezes, o gosto do futebol é exibido pelos intelectuais para mostrar a sua pertença à espécie humana, ao povo e às suas manifestações mais comuns.

Para alguns, o futebol é um novo e ainda mais insidioso ópio do povo, anestesiante e alienante. Jorge Luis Borges sentenciou que «o futebol é popular porque a estupidez é popular». E acrescentou: «O xadrez é hoje substituído pelo futebol, que é um jogo insensato e não intelectual.» Shakespeare, no Rei Lear, faz exclamar: «Tu, vil futebolista.» Com o eco de Clausewitz e também de Lenine, para George Orwell, o futebol é a continuação da guerra por outros meios. Mas há quem defenda que o futebol é um grande Ersatz dos confrontos e das batalhas.

Para muitos, o futebol é uma arte tão criativa como as outras e um modo de cultura popular com um poder solidário de sedução que mais nenhuma tem. Pierre de Ronsard e Henry de Montherlant fizeram poemas à bola e ao jogo. E Mário Cesariny, no poema «Pastelaria», tem estes versos: «Não é verdade, rapaz? E amanhã há bola / antes de haver cinema madame blanche e parola.»

A escritora Clarice Lispector escreveu uma saborosa crónica sobre a sua «ignorância apaixonada por futebol» e o desejo de um dia, nem que seja quando já «for velhinha e andando devagar», aprender o que não sabe, pois o futebol faz parte e «representa a vida». Nessa crónica com o título «Armando Nogueira, Futebol e eu, coitada», contou que apenas uma única vez tinha assistido, «de corpo presente», a um jogo num estádio. Como não entendia o que se passava no campo, fazia perguntas a alguém que a acompanhava e obtinha respostas rápidas e irritadas por estar a distrair quem somente queria ter os olhos e todos os órgãos dos sentidos no campo. Clarice revelou que também interrogava um filho, quando, às vezes, viam juntos futebol em casa, na televisão, e que a resposta dele era igualmente breve e brusca, seguida do comentário: «Ah, mamãe, você não entende mesmo disso, não adianta.»

No Brasil, país-estádio onde o futebol está em todo o lado e empolga toda a gente, muitos escritores escreveram sobre jogos, jogadores e campeonatos. O dramaturgo, jornalista e cronista Nelson Rodrigues é o mais conhecido e reconhecido. Assim como Cecília Meireles (poema «O Jogo de Bola»: «A bela bola / rola…») ou Manuel Bandeira («Também eu participei do delírio colectivo e desde o começo do campeonato fiquei chumbado ao meu rádio a escutar as partidas dos brasileiros…»), também o poeta Carlos Drummond de Andrade tem textos de prosa e de poesia sobre o desporto que se joga com os pés.

O filósofo e romancista Albert Camus, que tinha sido guarda-redes na sua equipa académica, adorava futebol e dizia que não há lugar do mundo onde se possa ser mais feliz do que num estádio de futebol. E confessava ter aprendido no futebol aquilo que sabia de mais seguro sobre a moral humana e os deveres e obrigações das pessoas umas para com as outras. Jean-Paul Sartre, que foi primeiro amigo e depois inimigo de Camus, falava dos «onze em fusão» no campo relvado e dizia que, no futebol, tudo é complicado apenas pela presença da equipa adversária. Num arroubo raro e lírico-épico, Vladimir Nabokov falou do guarda-redes como da «águia solitária, o homem do mistério, a última muralha».

Embora o barão Pierre de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna, tenha dito que «a emulação é a essência do futebol», o antropólogo Claude Lévi-Strauss contou, em La Pensée sauvage, a história dos Gahaku-Gama, da Nova Guiné, que aprenderam o futebol ensinado pelos missionários, mas, jogado por eles e de acordo com os valores morais e sociais da sua comunidade, o jogo tinha tantas partes quantas fossem necessárias para que houvesse equilíbrio entre os que ganhavam e os que perdiam. Para os Gahaku-Gama, um jogo de futebol não era uma competição com vencedores e vencidos — era um rito de equilíbrio, empate, solidariedade e igualdade.

O conhecido historiador britânico Eric Hobsbawm, que olhou o século XX com um olhar agudo e analítico, disse que o futebol é o desporto que «o mundo tornou seu» por ser «simples e elegante, não perturbado por regras e/ou equipamentos complexos e por poder ser praticado em qualquer espaço aberto, mais ou menos plano e do tamanho exigido… tornou-se genuinamente universal» (A Era dos Extremos: História Breve do Século XX, 1914–1991).

Na longa história do futebol, ao mesmo tempo estável e variada, a sua idade actual é a época do futebol espectáculo e negócio: financista, mediático e tecnocrático. É um futebol de bilionários e déspotas, estrelas e vedetas (ver o nosso dossier sobre a «Fama», na Electra 11).

Por isso, não há hoje pai ou mãe que não queira pôr o filho numa «escolinha» de futebol, na esperança de que ele um dia se torne um Messi, um Ronaldo, um Mourinho, um Guardiola, um Klopp, ou pelo menos um Beckham. Isto é, alguém que seja, narcisicamente, belo, rico, famoso e poderoso.

O cronista Victor Cunha Rego, que viveu em muitos países, entre os quais o Brasil, tendo-lhe isso dado uma decantada e às vezes desencantada experiência do mundo e dos que o habitam, escreveu, quando o século XX caminhava para o fim, numa crónica intitulada «O futebol virtual»:

bella

Gabriel Bella, Gioco del calcio a Sant’Alvise [Jogo de futebol em Sant'Alvise], século XVIII
© Fotografia: Scala, Florença / Fondazione Querini Stampalia, Veneza

Deixei de ir a campos de futebol 30 anos atrás, depois de verificar, num São Paulo – Santos, no Pecaembu, que as 40 mil pessoas presentes só se levantavam na ocasião dos golos depois de terem escutado no rádio de pilhas a confirmação daquilo que os seus olhos tinham visto. […]

Mais uma razão para entender, nesse instante, que o futebol já não era só aquilo que se passava no campo. Mas era outro «futebol»: o dos meios de comunicação social. […]

E é o jogo que o senhor Blatter, presidente da FIFA, anuncia como «o futebol dos ricos e o futebol dos pobres», prevendo uma divisão inevitável, mas que devia ser revoltante.

Mas a realidade é que a lógica do mercado tomou conta de tudo — das religiões ao sexo — e que a «libertadora» Lei Bosman deu um empurrão permitindo a concentração multinacional de jogadores fora do alcance dos clubes menos poderosos. […]

Mas, é claro, os maiores culpados são todos quantos, manipulados, ingenuamente alimentam esse estado de coisas, dos 8 aos 80.

O poeta Alexandre O’Neill, que escreveu magnificamente, divertidamente, sobre «Eusébio, seu genial tragalhadanças», perguntava:

Este preconceito contra o futebol, que enraíza na verificação (justa) de que os estados autoritários protegem as artes do chuto até elas se atrofiarem em espectáculo-canalizador-de-energias, em política-da-bola, etc., não relevará, igualmente, de um preconceito aristocratizante contra as actividades braçais, neste caso pernais? Um pouquinho, acho que sim.

Noutro texto, porém, O’Neill protestava:

O que perde o futebol não é o jogo propriamente dito, mas todo o barulho que se faz à volta dele. É impossível a gente alhear-se do futebol, falado, comentado, transmitido, relatado, visto, ouvido, apostado, gritado, uivado, ladrado, festejado, bebido. O futebol passa deste modo a ser uma chateação permanente. É que não há tasca, pastelaria, salão de jogos, barbearia, recanto de jardim público, quiosque, bomba de gasolina, restaurante, Assembleia da República, supermercado, hipermercado, livraria, loja, montra, escritório, colégio, oficina, fábrica, habitação, diria até, onde, de algum modo, não se ouça falar do jogo que decorre, decorreu ou decorrerá. Quando há transmissão via TV ou Rádio, então a infernização é total. […] Enfim, o País fica futebol.

Seja como for o que for, sem olhar para o futebol e tudo o que nele hoje acontece, a apreensão, a compreensão e a repreensão do nosso tempo ficariam incompletas e mesmo distorcidas ou mutiladas. Este fenómeno e tudo o que significa e representa diz mais sobre nós do que nós dizemos sobre ele.

Ao dedicarmos o dossier deste número da Electra ao futebol, temos consciência de que vamos ao encontro de um fenómeno com muitas e variadas dimensões e implicações, visíveis e ocultas, faladas e caladas, simples e complexas, compreensíveis e incompreensíveis. Para o tentar decifrar, é aconselhável usar um método que se aproxima do método usado pelos psicanalistas. Nesse método, é indispensável pôr a falar livremente os que amam e os que odeiam o futebol, os que o conhecem e os que o desconhecem, os que o pensam e os que o praticam.

Escutando-os, vamos talvez conseguir compreender os impulsos, as pulsões, os complexos, os recalcamentos, os não ditos, os sonhos, os devaneios, as feridas, os alçapões, as depressões, os êxtases, as saúdes e as doenças que este gigantesco organismo-aparelho-sistema-mecanismo-estrutura potencia, acolhe, gera, estimula, desenvolve, comunica, contagia e contamina.

Este dossier, menos metodicamente analítico e sistematizador do que outros, para assim poder ser mais verbalmente sintomático e mais involuntariamente descodificador, talvez consiga funcionar como um divã onde, no repouso agitado das suas pulsações anímicas e corporais, aqueles para quem o futebol suscita um discurso nos põem à escuta do que dizem e calam. Nesse dizer e nesse calar revelam aquilo que nos pode levar a perceber melhor, embora nunca completamente, um fenómeno ao mesmo tempo tão banal e tão fundamental, tão comum e tão exaltante, tão plebeu (proletário mesmo) e tão multibilionário, tão egoísta e tão altruísta, tão ligeiro e tão dramático, tão superficial e tão profundo, tão animal e tão humano. O escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini era um adepto e um jogador entusiasta de futebol. Muito crítico das monstruosidades e das indignidades do tempo em que viveu, via no futebol um ritual de fraternidade próximo daqueles que ele canonizou na sua «Trilogia da Vida». Ficou célebre o jogo que decorreu em Parma entre a equipa formada pelos que trabalhavam no seu filme Salò ou Os 120 Dias de Sodoma e a que se constituiu com os que participavam no filme de Bernardo Bertolucci Novecento. Bertolucci era também um adepto fervoroso do futebol.

Pasolini confessava que, depois da literatura e do amor, o futebol era aquilo que lhe concedia maior gosto na vida. Sobre este desporto, escreveu páginas de uma grande originalidade, divertimento e cultura, entre as quais se contam um artigo intitulado «O Golo Fatal», publicado a seguir à final do Campeonato do Mundo de 1970, em que o Brasil venceu a Itália por 4 a 1.

Nesse texto, que se tornou imprescindível, procede a uma semiologia do futebol, analisando o jogo como linguagem, como estilo e como estética. Aí, define aquilo a que chamou, nesse tempo que já não é o nosso, o futebol de prosa (o europeu) e o futebol de poesia (o latino-americano), embora no futebol de prosa houvesse poetas e o futebol de poesia tivesse prosadores.

No artigo, cheio de inteligência observadora e de erudição lúdica, diz Pasolini:

Há no futebol momentos que são exclusivamente poéticos: trata-se dos momentos de golo. Cada golo é sempre uma invenção, uma subversão do código: cada golo é fatalidade, fulguração, espanto, irreversibilidade. Precisamente como a palavra poética. O marcador de golos de um campeonato é sempre o melhor poeta do ano. […] O futebol que marca mais golos é o mais poético.

Nascido em Bolonha, em 1922, Pasolini morreu tragicamente assassinado em 1975, na praia de Ostia, nos arredores de Roma, sem que o móbil e a urdidura do crime tenham sido inteiramente desvendados e esclarecidos. Nos últimos anos da sua vida, foi um crítico impiedoso — herético mesmo — da política italiana, das tendências e taras «desta grande época» e das apocalípticas ameaças da sociedade de consumo. Ele opunha à tirania do presente (o presentismo, como lhe chamou François Hartog) a força revolucionária do passado: «Io sono una forza del passato, / Solo nella tradizione è il mio amore» [Eu sou uma força do passado, / Só na tradição está o meu amor].

Pasolini pôs-se sempre em jogo, foi sempre a jogo e fez da sua vida um jogo corajoso, violento e perigoso com a morte. Para ele, a liberdade era uma vitória alcançada ou perdida diariamente num jogo de todo o seu corpo e de toda a sua alma. Os seus actos e palavras e imagens são disso mesmo a prova proibida e o tenaz testemunho.

No centenário do seu nascimento, entregamos o nosso «Registo» à memória viva de Pier Paolo Pasolini e assim lançamos, nesta edição da Electra, um fio que liga a sua figura intelectual e poética, que cada vez mais avulta em reconhecimento moral e ressonância profética, ao futebol que o nosso «Assunto» trata com um espírito que tem procurado inspiração e exemplo naqueles que, como o autor de Una vita violenta, Poesia in forma di rosa e Il vangelo secondo Matteo, fazem com o que pensam e criam uma forma reiterada de revelia, de resistência e de resgate.

Na Electra 17, não há páginas que dispensem a nossa atenção ou não fixem o nosso olhar para ler e para ver o que nelas está. Entre outros motivos de interesse, aqui estão a entrevista com James Wood, concedida a Afonso Dias Ramos; a entrevista com Alex Katz, feita por Juan Manuel Bonet, seguida de um portfólio; ou, na secção «Planisfério», a continuação da série-campanha de André Príncipe e José Pedro Cortes, iniciada em Tânger, com Hisham Mayet, e agora prosseguida no Cairo, com Youssef Rakha. Por estas palavras e por estas imagens corre, intensa, uma corrente que passa para nós e que passa por nós. Do futebol a tudo o mais que há neste número, existe uma excitação que não precisa de ser buscada, pois não se procura — encontra-se!

julia wachtel

Julia Wachtel, Balls [Bolas], 2014
Cortesia da artista; Super Dakota, Bruxelas; Von Ammon Co, Washington D.C.; Helena Anrather, Nova Iorque