Primeira Pessoa
James Wood: habitar o texto
Afonso Dias Ramos

Considerado por muitos como o crítico literário mais aclamado, dominante e temido das últimas décadas, James Wood discorre sobre as diversas estações de um percurso intelectual que o levou de uma educação religiosa em Inglaterra até aos lugares mais prestigiados do mundo literário nos Estados Unidos, como crítico na revista The New Yorker, professor na Universidade de Harvard, e autor de premiados romances e ensaios. Em conversa com Afonso Dias Ramos, James Wood reflecte sobre a sua vida e obra enquanto leitor, crítico, professor e escritor.

james wood

James Wood é frequentemente apontado como o principal crítico literário do mundo anglo-americano. Nasceu em 1965, em Durham, no Reino Unido. Estudou em Eton com uma bolsa de música, e em Cambridge. É professor de Prática da Crítica Literária na Universidade de Harvard, e redactor e crítico literário na revista The New Yorker. Foi o principal crítico literário do jornal The Guardian e chefe de redacção no The New Republic. Os seus ensaios e recensões aparecem regularmente no New York Times, New York Review of Books, The Guardian e na London Review of Books. James Wood continua a inspirar mais temor no mundo literário anglófono do que qualquer outro crítico. Apelidado de «elegante assassino» pelo Boston Globe ou de «estripador cortês» pela n+1, tem sido considerado a figura mais temida entre as letras americanas por causa das recensões brutalmente frontais pelas quais ficou conhecido desde o início de carreira. A reputação ficou a dever-se a acutilantes ensaios que tanto desmontavam a prosápia hipermasculina de Paul Auster como acusavam John Updike de desleixo intelectual, desde demolidoras críticas a escritores consagrados como Toni Morrison, Julian Barnes ou Jonathan Franzen, até a análises incisivas dos romances enciclopédicos de Don DeLillo, Thomas Pynchon ou David Foster Wallace como uma forma de «realismo histérico», isto é, uma obsessão com o ruído da actualidade e com digressões inacabáveis enquanto mecanismos para evitar o silêncio, as personagens ou a reflexão.

A um tempo em que a crítica literária parece reduzida a recensões escritas por obrigação académica ou por putativos autores a adular amigos e alfinetar inimigos, James Wood constitui um caso raro: é um crítico literário a tempo inteiro. Mas esta não é a única razão pela qual parece sair de outro tempo. Privilegiando uma abordagem estetizante à literatura sobre as análises ideológicas da crítica literária académica, não toma como modelos Jacques Derrida e Paul de Man, mas antes Edmund Wilson, Ernest Renan ou Matthew Arnold, e considera que o romance é uma forma secular da escritura sagrada que surgiu quando as distinções entre crença religiosa e literária se começaram a turvar. À medida que os escritores e os teólogos iam olhando para os Evangelhos como contos ficcionais — valorizados não pela sua verdade literal, mas pela imaginação poética ou pela edificação moral —, os romancistas elevaram a literatura a uma quase-religião. É por esse motivo que Wood defende que os romancistas «deveriam agradecer a Flaubert como os poetas agradecem à Primavera». São estas leituras ambiciosas que têm levado a ensaios sobre escritores já canonizados (Melville, Tchékhov, Cervantes) ou fenómenos recentes (W. G. Sebald, Marilynne Robinson, Teju Cole), amplamente celebrados como modelo de crítica incisiva e informada, fomentando um tipo de abordagem em câmara lenta a que se alia um estilo literário muito distintivo. Recentemente, Wood tem-se destacado mais como divulgador, responsável por trazer à atenção do público Elena Ferrante, Karl Ove Knausgård ou Ben Lerner — e, com eles, esse género ensaístico híbrido a que se tem chamado «auto-ficção». Mas decorridas três décadas de crítica literária, não faltam detractores a James Wood, e as facas tinham sido afiadas à espera do lançamento dos seus próprios romances. E, no entanto, também estes alcançaram uma fortuna crítica notável. Ao mesmo tempo, são inúmeros os autores que têm vindo a público reconhecer o profundo apreço pelas suas recensões e pelo modo como detectou nos seus livros ecos ou correntes profundas que os próprios ignoravam. Em certos casos, como no de Zadie Smith, isso levou-os mesmo a mudarem de abordagem literária. Martin Amis, por exemplo, descreveu-o como um «crítico maravilhoso, um dos poucos que resta». Cynthia Ozick declarou que «James Wood tem sido chamado o nosso melhor crítico jovem. Não é verdade. É o nosso melhor crítico; pensa com uma ferocidade sublime». Anunciado há muito por Harold Bloom, Susan Sontag e Christopher Hitchens como uma espécie de sucessor, nenhum crítico vivo alcançou este nível de destaque e influência, de escrutínio e resistência. Os seus ensaios críticos encontram-se reunidos nos livros A Herança Perdida (2012), The Irresponsible Self (2004), The Fun Stuff (2012) e, mais recentemente, Serious Noticing (2019). Em 2000, recebeu o Prémio de Literatura da Academia Americana de Artes e Letras e, em 2009, o National Magazine Award na categoria de Crítica. Publicou dois romances aclamados, The Book Against God (2003) e Upstate (2018), e um estudo sobre técnica novelística, A Mecânica da Ficção (2008). James Wood conversou com a Electra sobre a sua vida e o seu trabalho, numa série de reflexões sobre trinta anos a criticar, pensar, leccionar e escrever livros.

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Carl Spitzweg, O rato de biblioteca, c. 1850
© Fotografia: Scala, Florença / bpk, Bildagentur fuer Kunst, Kultur und Geschichte, Berlim

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Giuseppe Arcimboldo, O bibliotecário, 1566
© Fotografia: Scala, Florença / Album

AFONSO DIAS RAMOS  Começou por publicar recensões de livros muito novo, tornando-se o principal crítico literário do The Guardian ainda com vinte anos. Como chegou à crítica literária?

JAMES WOOD  Comecei a ler ensaios e recensões quando era adolescente — os ensaios de George Orwell e Virginia Woolf deixaram-me uma forte impressão. E nesses tempos (no final da década de 80 e princípio da de 90), Londres estava repleta de jornais, todos com amplas secções sobre livros. Também havia muita crítica de música rock genuinamente boa e entusiástica. Eu sabia que queria escrever sobre literatura. A questão com que deparava aos vinte e um anos era: faço isto dentro da academia (iniciar um doutoramento, ambicionar um lugar como professor) ou fora dela? Houve sempre algo de muito apelativo na ideia de escrever para ganhar a vida, ou de escrever para um público não-académico.

ADR  Sempre ambicionou ser romancista? O que o levou finalmente a dar esse salto?

JW  Quando era adolescente e, mais tarde, quando estava na casa dos vinte, tentei várias vezes escrever um romance, mas falhei sempre. Finalmente, quando cheguei aos trintas, abriu-se uma pequena janela: o nosso primeiro filho estava a caminho, e a chegada do bebé era o prazo final óbvio.

ADR  Já afirmou que a literatura lhe deu liberdade para pensar durante a sua educação religiosa. A ideia de transcendência atravessa, com efeito, todo o seu trabalho. Houve algum momento em que tenha tido noção da escrita como um substituto da religião? Ou de que a missão do crítico como a concebe se deveria aproximar da do evangelista?

JW  Eu acho que T. S. Eliot tem razão quando afirma que nada deve ser o substituto de outra coisa qualquer. A literatura não precisa nem deve ser um substituto para a religião. A literatura é a literatura. A literatura nunca preencheu um buraco religioso na minha vida, porque na verdade nunca fui nenhuma espécie de crente religioso. Pelo contrário, a literatura permitiu-me escapar à estreiteza da religião. Mas, claro, tendo tido uma educação cristã, sou em larga medida a criação e o herdeiro de impulsos religiosos. Julgo que, neste ponto, Jesus é uma figura contraditória. Por um lado, o Jesus que afirma que qualquer homem que olhe para a mulher do outro com desejo no coração é um adúltero é o inimigo do livre-pensamento, uma espécie de controlador totalitário da mente, e um anti-romancista; por outro lado, o Jesus que diz aos homens que apanharam uma mulher em adultério e estão prestes a apedrejá-la até à morte, «aquele que não tiver pecado atire a primeira pedra», é um grande romancista instintivo porque percebe que toda a gente é imperfeita e vulnerável, e tem empatia pelas suas fraquezas. Isto lembra-me uma piada óptima do Slavoj Žižek sobre este episódio do Novo Testamento. Jesus diz à multidão: «Aquele que não tiver pecado atire a primeira pedra», e sente um calhau a atingir-lhe a cara. Volta-se para ver quem atirou a pedra: «Ó mãe, o que estás aqui a fazer?»

ADR  Enquanto jovem crítico, adquiriu a reputação de ser demasiado exigente e de descompor os escritores. Olhando para trás, guarda ainda algum arrependimento a esse respeito?

JW  Sim, gostava de ter sido muito mais gentil e compreensivo. Quem quer saber de um romance em particular, ou de uma recensão em particular desse romance? Mas provocar tristeza na vida de alguém é algo que nem sempre pode ser apagado.

ADR  Isso mudou com a experiência de se tornar romancista e ser objecto de recensões?

JW  Sim, sem dúvida. Na verdade, diria que nem é tanto a experiência de ter sido alvo de recensões eu próprio, mas o facto de viver com uma romancista [Claire Messud], e de ser doloroso ver como ela fica triste quando é alvo de uma recensão estúpida ou hostil. Quem deseja trazer dor para dentro de casa dessa forma? Por isso sou mais gentil do que costumava ser. Antigamente, bloqueava deliberadamente qualquer pensamento relativamente à pessoa sobre a qual estava a escrever; agora não consigo deixar de pensar nessa pessoa, nesse ser humano, a ler as minhas palavras.

ADR  Ao nível dos processos da escrita, a recensão e o romance estão nos antípodas um do outro? Não interferem entre si, de certo modo?

JW  Talvez interfiram, mas seguramente que o romancista, enquanto está a escrever um romance, é sempre autocrítico, está sempre a rever e a editar, a pesar e a julgar o seu trabalho. Por isso, o escritor criativo está sempre a funcionar como crítico, pelo menos do seu próprio trabalho — e assim tem de ser. Neste sentido, a oposição tácita entre o romancista sublimemente inconsciente e o crítico excessivamente autoconsciente talvez seja mítica. Estes actos de escrita estão muito mais próximos do que possa parecer.

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eileen agar

Eileen Agar, The Caged Bird Sings, 1952
© Fotografia: Tate, Londres