Primeira Pessoa
Catherine Malabou: Anarquia e prazer, cenas de uma vida plástica
Afonso Dias Ramos

Uma das filósofas mais destacadas deste século e possivelmente aquela que mais se debruça sobre o problema da mudança no mundo de hoje, Catherine Malabou percorre os temas mais variados do pensamento crítico contemporâneo, da neurociência ao feminismo, da Inteligência Artificial às criptomoedas, do trauma epigenético ao prazer sexual. Em conversa com Afonso Dias Ramos, Catherine Malabou revisita o percurso que culminou no seu novo livro sobre a ideia política de anarquismo, a mais recente variação em torno do conceito que une todo o seu trabalho: a plasticidade.

magali bragard

© Magali Bragard

 

Catherine Malabou é uma figura de destaque na filosofia europeia contemporânea, geralmente considerada um dos nomes mais cativantes da chamada «Nova Filosofia Francesa». Uma especialista em filosofia contemporânea francesa e alemã, Malabou é conhecida por algumas das leituras mais originais de pensadores canonizados como Hegel, Heidegger e Kant, e cada vez mais aclamada por liderar um diálogo pioneiro entre as ciências sociais tradicionais e as ciências exactas, explorando as relações entre a neurociência, filosofia e psicanálise. O caso raro de um filósofo que interage com as ciências naturais, Malabou tem levado a cabo uma leitura radical das obras de Freud, Kafka ou Espinoza do ponto de vista da neurologia contemporânea, e afirma que ainda não assimilámos as descobertas revolucionárias feitas pela biologia na última metade do século passado. Uma autora prolífica desde o final dos anos 90, a obra de Malabou continua a tomar direcções inesperadas, da exploração dos conceitos de essência e diferença no feminismo à interrogação do lugar do feminino na filosofia, da criação de uma nova teoria do trauma ao apelo a uma redefinição total do sujeito, da Inteligência Artificial às criptomoedas, da epigenética ao anarquismo. Todo este percurso se podia resumir a uma tentativa longa e consistente de reconsiderar ideias de mutação, metamorfose e transformação, consagrando Malabou como uma das mais eminentes pensadoras da mudança no nosso tempo. O conceito central ao longo da sua obra é o da «plasticidade», um termo que levantou inicialmente da filosofia continental e que tem desenvolvido nas últimas duas décadas numa aproximação a estudos neurocientíficos sobre o cérebro. A plasticidade refere-se ao poder simultâneo de dar, receber, explodir ou regenerar uma forma, à capacidade desta ser transformada mas também de se transformar a si própria. Um conceito que tem proliferado no discurso social, económico e político contemporâneo, usado repetidamente para repensar a política, literatura, arte, direito e justiça. A um tempo em que empresas e governos insistem no refrão da flexibilidade, esta filósofa convida-nos a encontrar novas formas de sociabilidade e modos de ser, reinvestindo na plasticidade constitutiva do ser humano como «princípio de desobediência interna».

Catherine Malabou é professora de filosofia europeia moderna na Universidade de Kingston (Reino Unido) e na Escola de Graduação Europeia (Suíça), e de literatura comparada na Universidade da Califórnia Irvine (EUA), ocupando a posição anteriormente detida por Jacques Derrida, o antigo orientador e interlocutor, com quem escreveu a obra La Contre-allée (1999). Entre os seus livros mais importantes, destacam-se La Plasticité au soir de l’écriture (2004), Que faire de notre cerveau? (2004), Les Nouveaux blessés (2007), Changer de différence (2009), Ontologie de l’accident (2009), com Judith Butler, Sois mon corps (2012), com Adrian Johnston, Self and Emotional Life (2013), Avant demain (2014) e Métamorphoses de l’intelligence (2017). No seu penúltimo e controverso livro, Plaisir effacé (2019), Malabou focou-se no clitóris enquanto ilha de prazer sistematicamente obliterada pelas sociedades patriarcais, não apenas da sexualidade do corpo, mas também na psicanálise e filosofia. Era apenas o prelúdio para o livro que acaba de sair, Au voleur! Anarchisme et philosophie (2022), que apela a uma elaboração filosófica da ideia de anarquia inteiramente nova, como algo mais politicamente urgente do que nunca. Catherine Malabou falou à Electra sobre alguns dos novos desafios e direcções do seu pensamento.

carol rama

Carol Rama, Opera No. 47, 1949 © Fotografia: Pino DellAquila / Cortesia Archivio Carol Rama, Turim

 

AFONSO DIAS RAMOS  O que a levou a estudar filosofia?

CATHERINE MALABOU  Em França, a filosofia é uma disciplina obrigatória no último ano do ensino secundário. Assim que fui iniciada na filosofia, decidi que era isso que queria fazer, rendi-me. Fui imediatamente atraída. Não havia mais nada. Nunca me perguntei que outra coisa poderia fazer ou que outra disciplina poderia estudar.

ADR  E como é que acabou a escrever uma tese de doutoramento sobre Hegel, isto numa altura em que havia tanto consenso anti-hegeliano?

CM  A minha atracção pela filosofia acontecia de forma muito geral. Na verdade, sentia-me atraída por algo que não compreendia. Só três anos mais tarde é que comecei a ler textos importantes, e Hegel destacou-se como o mais importante. O primeiro livro dele que li foi Princípios da filosofia do direito, no qual desenvolve uma crítica do modelo de sociedade à Rousseau com as pessoas no estado natural que se juntam e formam a sociedade civil. Hegel disse: «Não. A origem da política nunca é uma colecção de indivíduos, porque a política é sempre aquilo que é: a comunidade.» Esta ideia fascinou-me! Quando era nova, estava convencida do dogma do contrato social, a ideia de que existia um estado natural, que nos juntávamos, e por aí fora. Mas quando vi Hegel desafiar esta ideia, achei extremamente audacioso. A ideia era brilhante, claro, mas o que me impressionou foi o facto de ele poder desafiar uma tese muito bem recebida. Eram ambas as coisas. Depois comecei verdadeiramente a lê-lo e tornou-se para mim, e ainda o é, a figura mais importante. Mais inspiradora.

"O cérebro não surge, para os investigadores, como uma série de locais fixos, mas, pelo contrário, como uma capacidade de responder a influências externas, de integrá-las e, por sua vez, de transformá-las."

carol rama

Carol Rama, Nonna Carolina, 1936 © Fotografia: Gonella / Cortesia Archivio Carol Rama, Turim

 

ADR Isso por sua vez também implicou pôr em causa o seu orientador, Jacques Derrida? Foi assim que se deparou com a ideia de «plasticidade»?

CM Quando decidi mostrar que Hegel não era um pensador do passado, mas tinha, de facto, um futuro, sabia que ia criar uma situação estranha ao escrever o meu doutoramento com Derrida. Não fora Derrida quem tinha escrito Glas, no qual equiparava Hegel com a morte? Houve bastantes discussões entre nós. Ao mesmo tempo, Derrida era tão aberto e generoso que foi muito fácil convencê-lo da plasticidade dos conceitos hegelianos. Mas para demonstrar este potencial, tive de encontrar um ângulo novo, uma escapatória a todas as interpretações estabelecidas. Foi assim que descobri a plasticidade, num canto esquecido deste sistema. A plasticidade, para Hegel, designa uma capacidade de se ser afectado por algo externo e de ser-se transformado por isso. Mas a plasticidade também implica uma resistência a uma transformação demasiado profunda. É um estado intermédio entre a solidez ou fixidade total e a liquidez ou fluidez total, entre permeabilidade e resistência. Interessei-me cada vez mais por este conceito. Um dia, numa estação de comboio, por acaso, comprei uma revista científica cujo título era sobre a plasticidade do cérebro e da memória. Descobri que a plasticidade é um conceito central da neurologia hoje em dia. O cérebro não surge, para os investigadores, como uma série de locais fixos, mas, pelo contrário, como uma capacidade de responder a influências externas, de integrá-las e, por sua vez, de transformá-las. Vamos encontrar o mesmo movimento e o mesmo estado intermédio entre a capacidade de receber e a de responder dando uma forma nova àquilo que é recebido. Foi assim que descobri que havia vários pontos de contacto entre Hegel e o cérebro, e que a plasticidade talvez se tratasse de uma propriedade de todos os sistemas em geral.

ADR Afirma que «o ser humano é plástico, não flexível».

CM Não é flexível na medida em que a resistência a uma quantidade excessiva de transformação é essencial. A flexibilidade significa que uma pessoa pode ser moldada de diversas formas, pode-se fazer o que se quiser com ela, e forçá-la a seguir qualquer direcção. Na flexibilidade, não existe uma ideia de resistência. A plasticidade implica a capacidade de ouvir, de se ser influenciado, de se ser aberto. Mas, ao mesmo tempo, há um limiar de resistência que não pode ser transgredido. Se for transgredido, então terá como custo a sua própria destruição. Acho que isto é muito importante porque a principal palavra no capitalismo de hoje em dia é justamente a «flexibilidade».

ADR Como é que o sistema universitário acolheu essa viragem de estudar Hegel com Derrida para passar a explorar o cérebro e a biologia?

CM Muito mal. O livro sobre Hegel [L’Avenir de Hegel: plasticité, temporalité, dialectique (1996)] foi bem recebido, e como se tratava da minha tese de doutoramento, consegui um lugar na Universidade de Paris-Nanterre. Mas quando me virei para o cérebro e deixei de querer saber de um autor apenas, tornou-se óbvio que nunca seria uma especialista em coisa alguma, como eles dizem. Isto é muito mal recebido, pelo menos no sistema académico francês. Tem de se escolher um objecto de estudo e dedicar-lhe a vida. Como não era o meu caso, a certa altura tive de me ir embora. Comecei a ir aos EUA, onde dei aulas como professora convidada, obtive vários trabalhos como professora, e depois encontrei este lugar no Reino Unido.

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