Do ponto de vista de uma história das ideias, a curiosidade tem as suas estações filosóficas obrigatórias em Santo Agostinho, em São Tomás de Aquino, em Montaigne, em Hobbes. E para a cultura do Iluminismo a curiosidade foi uma noção central. Uma síntese dessa história, nas suas etapas principais, é o que faz Neil Kenny, um especialista nesta matéria, no artigo que escreveu para este número da Electra. Mas, como é evidente, não convocámos a curiosidade com objectivos de erudição histórica. Não podíamos, no entanto, deixar de lado a sua relação com a ciência (em dois artigos: um de Olga Pombo, com vasta obra publicada sobre a Enciclopédia e a filosofia da ciência; e outro do astrónomo Pedro Russo). O nosso ponto de partida poderia talvez ser formulado através desta interrogação: de que modo podemos hoje falar de curiosidade, num tempo em que raramente a evocamos e quase a podemos considerar como desaparecida do nosso horizonte? Foi cancelada, perdeu a força que fez dela o motor da razão e projectava o homem em direcção ao futuro, ou diluiu-se noutras pulsões intelectuais mais adequadas às formas actuais de circulação e procura do saber?
Uma resposta a estas perguntas, que tenha valor de explicação, deve fazer referência a esta realidade em que vivemos: estamos mergulhados num ambiente e num regime de oferta pletórica (da informação, da comunicação, dos bens culturais), há sempre alguém ou alguma coisa a preencher o espaço e o tempo livres que a curiosidade exige. Neste regime da profusão e da abundância, é preciso conquistar espaço e tempo próprios — abrir um parêntesis no quotidiano — para que a curiosidade seja reactivada. Homem curioso era Tales de Mileto, que se pôs a contemplar os astros enquanto caminhava e, distraído, caiu para dentro de um poço, provocando assim, com a sua distracção de cientista desatento ao útil, ao pragmático e ao imediato, o riso trocista da sua escrava da Trácia. Blumenberg, que na verdade concebeu a curiosidade como desinteressada contemplação do mundo, viu em Tales de Mileto a figura do protofilósofo.
A curiosidade exige um espaço vazio para preencher. Por isso, está ligada à ideia de imaginação. Hoje, com as novas tecnologias digitais, a oferta cresceu de tal modo que uma nova espécie de crise se tornou bem visível e ganhou um importante estatuto nos diagnósticos da época: a crise da atenção. A atenção não é o mesmo que a curiosidade, mas uma implica a outra: não há atenção sem curiosidade e toda a curiosidade mobiliza a atenção. Aquela característica da sociedade actual que foi designada como «crise da atenção» é o resultado da falta de tempo disponível para consumir o que nos é oferecido e vem ter connosco sem precisarmos de procurar e de exercer a curiosidade. Temos sempre muito mais coisas para ver, para ler e para ouvir do que o tempo de que dispomos para o fazer. Por isso, a nossa atenção dispersa-se e as nossas capacidades mentais colapsam perante os excessos da oferta e a profusão mediática. Tendo entrado em défice, a atenção tornou-se um capital precioso que é preciso captar. Os meios de captação da nossa atenção, neste tempo em que ela ficou sujeita a uma enorme dispersão, são incomparavelmente mais sofisticados e intrusivos do que eram quando os nossos recursos atencionais não tinham chegado ao estado actual de exasperação. Nasceu assim uma nova economia — a economia da atenção. E esta economia da atenção tenta fazer a gestão das nossas pulsões da curiosidade.
Baudelaire, o poeta moderno por excelência que percebeu o que era a «vida moderna» na grande metrópole que é Paris do século XIX, foi talvez o primeiro a compreender estes fenómenos que começavam então a despertar. O dandy, que foi uma das figuras baudelairianas, constrói a pose do indivíduo impermeável que não se sente solicitado pela curiosidade; pelo contrário, é ele a atrair os olhares curiosos. Baudelaire foi também o poeta que tornou explícita na sua poesia a consciência de que a sua condição já não era a do antigo poeta com aura, e de que já não havia leitores para a sua poesia. É verdade que não se tinha chegado à situação do nosso tempo, em que por vezes o número de autores suplanta o número de leitores. Mas Baudelaire, autor das «curiosidades estéticas», crítico de arte no tempo dos salons, é um poeta de «curiosidades literárias». É exactamente sob o signo de Baudelaire que se coloca Lionel Ruffel, no artigo incluído neste dossier, para fazer a apologia de uma literatura que não se conforma aos cânones dos géneros, que transgride regras e modelos, que cultiva a estranheza como característica. Somos assim solicitados para um outro significado de «curiosidade»: já não se trata da curiosidade teorética, que a modernidade reabilitou e fez dela uma pulsão epistemológica, uma paixão pela ciência e o saber, mas da curiosidade como uma espécie de qualidade quase indefinível de tudo o que causa admiração. Curioso é, neste caso, o que é estranho ou até exótico.
E somos assim remetidos para os gabinetes de curiosidades, para as colecções pessoais de objectos ou de peças artísticas que são os antepassados dos museus. Disso, fala-nos Federico Ferrari, para nos mostrar que o museu moderno é uma instituição da curiosidade. Quando o grande motor do turismo se tornou o prazer do reconhecimento e não a curiosidade de conhecer, o museu é talvez, ainda, o lugar por excelência onde se presta culto à curiosidade, numa época em que o espírito da curiosidade enfraqueceu, como se tornam preguiçosos ou raquíticos os órgãos e membros que deixam de ter uma função ou a sua actividade diminui.
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