Assunto
Curiosidade e ciência
Olga Pombo

Conhecida sobretudo pelos importantes livros e artigos sobre Leibniz e sobre a Enciclopédia, a professora na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Olga Pombo, escreve sobre o que a ciência e todo o conhecimento, desde Aristóteles, devem à curiosidade.

É curioso que tão pouco tenha sido escrito sobre a curiosidade. A Metafísica de Aristóteles começa com uma afirmação lapidar sobre a curiosidade — «Todos os homens por natureza desejam conhecer» — e David Hume acaba o Livro II do Tratado da Natureza Humana com uma secção intitulada «Da curiosidade, ou amor à verdade». Também Santo Agostinho dedica à «tentação» da curiosidade um capítulo inteiro (X-35) das Confissões, e a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert assume como seu objectivo «tratar de tudo o que diz respeito à curiosidade do homem em geral» (IV: 577-578). E também é verdade que um dos mais fulgurantes romances de Flaubert é inteiramente dedicado a retratar os excessos, as aventuras, as peripécias extravagantes que a curiosidade — aí elevada à categoria de paixão — desencadeia nessas deliciosas personagens que são Bouvard e Pécuchet.

Mas, para lá destes e de alguns outros momentos ilustres, para lá de referências, mais ou menos circunstanciais, espalhadas aqui e ali, em textos de autores tão diversos como Tertuliano ou Einstein, Séneca ou Montesquieu, Kepler ou Sigmund Freud, os escritos sobre curiosidade, os estudos que procuram tematizar esse universal desejo de conhecer, são surpreendentemente escassos.1

Como se não tivesse havido nunca curiosidade suficiente para pensar, de forma cuidadosa e perseverante, esse apetite que dá pelo nome de curiosidade. Ou, talvez, porque ela, a curiosidade, pertence àquela classe de conceitos demasiado vulgares, triviais, humilíssimos, de tal modo fugidios e disseminados que, justamente por isso, são rebeldes à teorização. Talvez mesmo impróprios.

Todos somos curiosos sem pensarmos nisso, portanto. Desde as crianças cuja curiosidade é supostamente incentivada nas escolas e proverbialmente reprimida nas famílias, até aos homens de ciência, vistos como aqueles em quem essa virtude alcança uma maior intensidade, passando pelos homens e mulheres de todas as idades e condições que, espontaneamente, estariam possuídos por esse desejo imprudente de conhecer a verdade dos factos, dos acontecimentos, das opiniões ou das teorias.

1.

Da curiosidade podemos dizer demasiadas coisas. Que ela é superficial ou profunda, ligeira ou vigorosa, focada ou dispersa, séria ou mundana, saltitante ou persistente, leviana ou obstinada, inofensiva, indiscreta ou mesmo inconveniente. Um desejo intenso de conhecer o desconhecido, ou um apetite frívolo que se satisfaz com o fácil, o fútil. Uma abertura activa e prospectiva para o novo, ou uma atenção pelo raro, pelo bizarro, pelo exótico, pelo extraordinário. Uma vontade cristalina de aprender ou um apetite voraz por todo o tipo de novidades, das intrigas palacianas dos poderosos aos escândalos das figuras públicas, dos desastres nas auto-estradas aos crimes de bairro. Movimento para o novo ou para o desconhecido, disponibilidade para se deixar surpreender e de, dessa surpresa, retirar a força da interrogação.

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"Se Aristóteles pôde consagrar a curiosidade como virtude cognitiva foi porque a cidade grega tinha acabado de inventar a própria possibilidade de todas as perguntas."

Uma coisa parece ser comum a todos os tipos de curiosidade. O cuidado (do étimo latino cura2) com a singularidade do que é, e a capacidade de ver o que não é mas poderia ser. Menos talvez a capacidade de ver do que de notar, reparar, interrogar. A atenção que permite reconhecer o estranho, o irregular, o que escapa às familiaridades estabelecidas. E o ímpeto para ver de outro modo, para abrir campos discordantes, para apontar caminhos divergentes.

Contudo — é esta a tese de Hans Blumenberg e Philip Ball3 —, a curiosidade tem uma história. Ela é co-extensiva de um determinado tipo de questões que só podem ser pensadas num determinado momento histórico. Se Aristóteles pôde consagrar a curiosidade como virtude cognitiva foi porque a cidade grega tinha acabado de inventar a própria possibilidade de todas as perguntas. Se, durante o longo período que se segue (desde o final do mundo antigo até aos alvores da modernidade), a curiosidade passa de virtude a vício e, depois, de vício a pecado, é porque a primazia da ordem teológica vai constituir a divindade como foco exclusivo de todas as atenções. A curiosidade será então denunciada como atrevimento pelo qual os homens, esquecidos da sua finitude, buscam violar a distância que os separa dos deuses (Epicuro), intemperança de quem quer conhecer mais do que é necessário e devido (Séneca), impiedade que afasta os homens da atenção que só o criador merece (Tertuliano). Santo Agostinho, no final do Império Romano, vai ser decisivo na condenação da curiosidade. Ela será um apetite vão, um encantamento ocioso por coisas insignificantes e desprezíveis, uma doença que distrai a alma daquilo que deveria ser o seu interesse primordial em Deus e na salvação, uma rendição ao mundo das aparências. Como escreve:

Por causa desta doença da curiosidade, exibem-se nos espectáculos as coisas mais prodigiosas. Daqui passa-se à indagação dos segredos da natureza, que estão fora do nosso alcance e que não há nenhum proveito em conhecer. (Confissões, X-35)

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Leopold e Rudolf Blaschka, Kophobelemnon stelliferum, modelo em vidro, c. 1880
© Fotografia: Gary Hodges / Cortesia de Cornell Collection of Blaschka Invertebrate Models

 

O eco dessa condenação estender-se-á por toda a Idade Média. A curiosidade — pretensão infinita de seres finitos — fará parte do catálogo dos vícios. Só a partir do século XIII (com Tomás de Aquino e o retorno do aristotelismo naturalista) e, posteriormente, com o Renascimento e a modernidade é que a curiosidade será reconquistada enquanto desejo legítimo de conhecer aquilo que passou a poder e a dever ser conhecido: a natureza que, entretanto, se constituiu como entidade que merece ser observada, inventariada, desvendada nos seus segredos e nas suas dobras. Não é o criador, mas a criação que passa agora a ser objecto de todas as perguntas.

O primeiro movimento foi a explosão de uma curiosidade desordenada, dispersa, incapaz de ultrapassar a recolha apenas acumulativa de objectos de todos os tipos, naturais e artificiais, raros, exóticos, prodigiosos, numa palavra, curiosos. Os Wunderkammern e os gabinetes de curiosidade são manifestação eloquente dessa obsessão pela variedade dos seres do mundo que inundou a Europa nos séculos XVI e XVII. Nas salas dos nobres e dos ricos mercadores amontoam-se agora, sem ordem, sem plano, sem método, uma multiplicidade de objectos, reunidos em nome de uma curiosidade que acabava de recuperar o seu direito à inocência.

O segundo movimento é o da constituição da ciência moderna. A multiplicidade dos seres e acontecimentos do mundo e a aparente arbitrariedade dos movimentos e forças que nele se jogam querem-se agora subsumidas pela unidade e simplicidade da lei e da teoria. Quer dizer, para lá da admiração diligente face à diversidade dos objectos e seres do mundo (marabilia), o que está agora em marcha é a investigação metódica da natureza. Ao investigador cabe a perseguição dos vestigia, um gesto de desafio, de questionamento agressivo, provocativo. Não basta olhar, é preciso saber ver, isto é, interrogar. Como dirá Galileu, não basta ler o grande livro do mundo, é necessário conhecer a língua em que está escrito ou, como mais tarde Kant reforçará, é necessário interrogar a natureza e obrigá-la a responder às perguntas que a razão pura lhe coloca.

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Hilma af Klint, Primordial Chaos No. 16, 1906
© Stiftelsen Hilma af Klints Verk. Fotografia: Albin Dahlström / Moderna Museet

"Santo Agostinho vai ser decisivo na condenação da curiosidade. Ela será um apetite vão, um encantamento ocioso por coisas insignificantes e desprezíveis, uma doença que distrai a alma daquilo que deveria ser o seu interesse primordial em Deus e na salvação."

Quer isto dizer que, para que a ciência moderna fosse possível, para que os homens tivessem podido conhecer a razão das manchas solares, o segredo das forças que sustentam as estrelas e explicam a queda dos corpos terrestres, teve a curiosidade de ser revalorizada, melhor dito, reabilitada enquanto força dinâmica do conhecimento do novo. Este novo tipo de curiosidade, que Blumenberg propõe designar como «curiosidade teorética», adquire então o estatuto de um operador legítimo e vital do processo investigativo, um elemento determinante do esforço cognitivo que subjaz à produção da conjectura e da teoria.

A luneta de Galileu e o microscópio de Leeuwenhoek são objectivações dessa compulsão industriosa para conhecer o que ainda não foi conhecido. E a Instauratio Magna de Francis Bacon, o Discurso do Método de Descartes, o optimismo radical da Monadologia de Leibniz, a Humani Corporis Fabrica de Vesalius são formas estridentes de curiosidade em estado puro, marcas escritas, conscientes, reflectidas, de uma vontade determinada de afastar todos os idola e fazer avançar a luz da razão. Elas desenham os contornos do programa da nova Filosofia Natural. O Iluminismo tem aí a sua raiz.

É certo que, mais de dois mil anos antes, Aristóteles, na primeira frase da sua Metafísica, havia já identificado e definido esse tipo de curiosidade. Mas foi necessário que o tempo percorresse pacientemente o tortuoso caminho da história das crenças e das mentalidades e, sobretudo, que o pensamento se derramasse no conflito das suas diferenças, para que a curiosidade pudesse afirmar de novo os seus direitos como motor da ciência a construir.

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