Entregou-se, assim, esta antiga palavra a um engenho moderno construído pela nossa curiosidade, que partiu da Terra para cumprir o curioso desejo humano de conhecer o desconhecido e responder a perguntas, ao mesmo tempo fascinantes e inquietantes, sobre o Universo e os muitos mundos dele, atravessando o eterno silêncio dos espaços infinitos que assustava Pascal.
Ao dar este nome a um astromóvel que enviou selfies para a Terra, acrescentou- -se e celebrou-se a longa vida da curiosidade (da palavra e do que ela foi sendo e significando), actualizando e universalizando uma história que se revela muito menos simples e muito menos estável do que parece à primeira vista. E é na contraditória complexidade dessa história instável e flutuante que está o seu significado mais poderoso e profundo. É a partir dela — das suas variações e mudanças ao longo das épocas — que podemos tentar compreender um fundamento essencial do nosso tempo.
A curiosidade aparece como um móbil de grande potência na mitologia, na literatura, na ciência, na filosofia, na política e na vida das mulheres e dos homens. É ela que faz procurar, indagar, descobrir, saber, imaginar, criar, bisbilhotar, transgredir, pecar, perigar, agir, progredir.
Da sabedoria oculta à geografia das viagens («Eis o aborrecimento, mas a curiosidade triunfa de tudo: é o primeiro dos deveres de um viajante…», Marquês de Custine), do voyeurismo sexual («A Filosofia na Alcova pretende a estima dos curiosos…», Sade; e a História da Minha Vida, de Casanova, é um relato da curiosidade e um relatório de curiosidades) à investigação científica, da bolsa com os ventos que Éolo deu a Ulisses ao Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle, da «Eureka!» de Arquimedes ao «Ser ou não ser, eis a questão», do Hamlet, de Shakespeare.
Das perguntas infantis às interrogações filosóficas, da árvore do conhecimento do Jardim do Éden, que tentou Adão e Eva, a Flaubert («O amor, afinal, não é senão uma curiosidade superior, um apetite do desconhecido que vos empurra para a tempestade, de peito aberto e cabeça levantada»), do Fausto de Goethe ao Fausto de Fernando Pessoa, de Lewis Carroll a Oscar Wilde («O público tem uma insaciável curiosidade de conhecer tudo, excepto o que vale a pena ser conhecido»);
Do questionário antropológico à heurística histórica, da Caixa de Pandora à Enciclopédia de D’Alembert e Diderot, do «Conhece-te a ti próprio», inscrito no templo de Delfos e que Sócrates fez seu, ao «Que sei eu?» de Montaigne, de Tales de Mileto a Nietzsche (curiosidade e coragem), de Kafka («Kafka interessava-se por todas as actualidades, pelas novidades de ordem técnica, pelos inícios do cinema, […] seguia a evolução moderna com uma incansável curiosidade», Max Brod) a Proust («A curiosidade amorosa é semelhante à que nos suscitam os nomes dos países, sempre decepcionada, ela renasce e permanece sempre insaciável»);
De Ícaro e do seu voo mortal a Terêncio («Sou humano. Nada do que é humano me é alheio»), de Plutarco a Séneca e a Espinosa e ao seu banimento, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino (oposição entre studiositas e curiositas), de Hobbes («Ao desejo de conhecer o porquê e o como chama-se curiosidade») a Heidegger, de Aristóteles a Júlio Verne, de Pascal («A curiosidade não é senão vaidade a maioria das vezes; somente se quer saber para falar do que se sabe») a Sartre.
Do Tratado da Natureza Humana de David Hume à Teoria da Relatividade de Einstein («Eu não tenho talento particular. Sou apenas apaixonadamente curioso»), dos gabinetes de curiosidade a André Breton e a Marcel Duchamp, de Cícero («Sem dúvida, ambicionar tudo saber, sem distinções e em todos os géneros, é próprio da curiosidade») a Anatole France («A curiosidade excita o desejo ainda mais do que a recordação do prazer»), do Rei Xariar de As Mil e Uma Noites à Carta de Pêro Vaz de Caminha (Nova do Achamento);
De tudo isto a tudo aquilo e ao mais que se achar, a curiosidade é o que leva e o que traz.
As palavras falam por si e as palavras falam de si. A palavra curiosidade, na sua origem etimológica (do latim curiositas), liga-se a curios e curia e transporta nela a ideia de cuidar e curar. Mas esta ideia inicial e positiva de filantropia activa tornou-se com o tempo uma ideia negativa de misantropia adversa.
Durante toda a Antiguidade clássica, a curiosidade foi agrestemente atacada por muitos autores e defendida por alguns. O curioso passou a ser o bisbilhoteiro que quer conhecer os segredos para prejudicar, aviltar ou propalar. Chegou mesmo a confundir-se com o espião. Essa má fama da curiosidade chegou até nós. Há um adágio francês que diz que a curiosidade é um defeito feio. E um provérbio inglês lembra: «A curiosidade matou o gato.» Ainda hoje se continua a falar da boa e da má curiosidade.
Afinal, a curiosidade faz-se de muitas curiosidades. É princípio, meio e fim: impulso do sujeito, caminho para o objecto e satisfação de si consigo mesma. Há curiosidade intelectual e física, das ideias e das percepções, mental e sensorial (cada sentido tem a sua curiosidade e há uma que os sincretiza), voluntária e involuntária, da contemplação e da acção, dos sentimentos e da imaginação. Há curiosidade do visível e do invisível, do consciente e do inconsciente, do bem e do mal, da vida e da morte, individual e colectiva, profunda e superficial, interior e exterior, discreta e indiscreta, laboriosa e ociosa. Há curiosidade apolínea e dionisíaca, mítica e mística, nómada e sedentária, teórica e prática, microscópica e macroscópica, temporal e espacial, do próximo e do distante, do passado e do futuro, agitada e serena, sistematizada e selvagem, norteada e errante.
Na sua muito pessoal Uma História da Curiosidade, em que usa Dante como guia, assim Dante usou Virgílio como guia na Divina Comédia, Alberto Manguel dá a todos os seus dezassete capítulos uma pergunta por título («O que é a curiosidade?»; «O que queremos saber?»; «O que é a linguagem?», etc.). Lembra Manguel:
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