Editorial
Curiosidade, santa e diabólica
José Manuel dos Santos e António Soares

No dia 26 de Novembro de 2011, às 15h02 (UTC), foi lançada da Estação do Cabo Canaveral, na Flórida, uma sonda espacial com destino a Marte, aonde chegou no dia 6 de Agosto de 2012, às 5h17, depois de uma viagem de 560 milhões de quilómetros. Com uma missão de exploração planetária e de investigação científica, em várias disciplinas, à sonda foi dado o nome de Curiosity.

laissement

Henri Adolphe Laissement, Kardinäle im Vorzimmer des Vatikans [Cardeais em sala do Vaticano], 1895
 

Entregou-se, assim, esta antiga palavra a um engenho moderno construído pela nossa curiosidade, que partiu da Terra para cumprir o curioso desejo humano de conhecer o desconhecido e responder a perguntas, ao mesmo tempo fascinantes e inquietantes, sobre o Universo e os muitos mundos dele, atravessando o eterno silêncio dos espaços infinitos que assustava Pascal.

Ao dar este nome a um astromóvel que enviou selfies para a Terra, acrescentou- -se e celebrou-se a longa vida da curiosidade (da palavra e do que ela foi sendo e significando), actualizando e universalizando uma história que se revela muito menos simples e muito menos estável do que parece à primeira vista. E é na contraditória complexidade dessa história instável e flutuante que está o seu significado mais poderoso e profundo. É a partir dela — das suas variações e mudanças ao longo das épocas — que podemos tentar compreender um fundamento essencial do nosso tempo.

A curiosidade aparece como um móbil de grande potência na mitologia, na literatura, na ciência, na filosofia, na política e na vida das mulheres e dos homens. É ela que faz procurar, indagar, descobrir, saber, imaginar, criar, bisbilhotar, transgredir, pecar, perigar, agir, progredir.

Da sabedoria oculta à geografia das viagens («Eis o aborrecimento, mas a curiosidade triunfa de tudo: é o primeiro dos deveres de um viajante…», Marquês de Custine), do voyeurismo sexual («A Filosofia na Alcova pretende a estima dos curiosos…», Sade; e a História da Minha Vida, de Casanova, é um relato da curiosidade e um relatório de curiosidades) à investigação científica, da bolsa com os ventos que Éolo deu a Ulisses ao Sherlock Holmes de Arthur Conan Doyle, da «Eureka!» de Arquimedes ao «Ser ou não ser, eis a questão», do Hamlet, de Shakespeare.

Das perguntas infantis às interrogações filosóficas, da árvore do conhecimento do Jardim do Éden, que tentou Adão e Eva, a Flaubert («O amor, afinal, não é senão uma curiosidade superior, um apetite do desconhecido que vos empurra para a tempestade, de peito aberto e cabeça levantada»), do Fausto de Goethe ao Fausto de Fernando Pessoa, de Lewis Carroll a Oscar Wilde («O público tem uma insaciável curiosidade de conhecer tudo, excepto o que vale a pena ser conhecido»);

Do questionário antropológico à heurística histórica, da Caixa de Pandora à Enciclopédia de D’Alembert e Diderot, do «Conhece-te a ti próprio», inscrito no templo de Delfos e que Sócrates fez seu, ao «Que sei eu?» de Montaigne, de Tales de Mileto a Nietzsche (curiosidade e coragem), de Kafka («Kafka interessava-se por todas as actualidades, pelas novidades de ordem técnica, pelos inícios do cinema, […] seguia a evolução moderna com uma incansável curiosidade», Max Brod) a Proust («A curiosidade amorosa é semelhante à que nos suscitam os nomes dos países, sempre decepcionada, ela renasce e permanece sempre insaciável»);

De Ícaro e do seu voo mortal a Terêncio («Sou humano. Nada do que é humano me é alheio»), de Plutarco a Séneca e a Espinosa e ao seu banimento, de Santo Agostinho a São Tomás de Aquino (oposição entre studiositas e curiositas), de Hobbes («Ao desejo de conhecer o porquê e o como chama-se curiosidade») a Heidegger, de Aristóteles a Júlio Verne, de Pascal («A curiosidade não é senão vaidade a maioria das vezes; somente se quer saber para falar do que se sabe») a Sartre.

Do Tratado da Natureza Humana de David Hume à Teoria da Relatividade de Einstein («Eu não tenho talento particular. Sou apenas apaixonadamente curioso»), dos gabinetes de curiosidade a André Breton e a Marcel Duchamp, de Cícero («Sem dúvida, ambicionar tudo saber, sem distinções e em todos os géneros, é próprio da curiosidade») a Anatole France («A curiosidade excita o desejo ainda mais do que a recordação do prazer»), do Rei Xariar de As Mil e Uma Noites à Carta de Pêro Vaz de Caminha (Nova do Achamento);

De tudo isto a tudo aquilo e ao mais que se achar, a curiosidade é o que leva e o que traz.

As palavras falam por si e as palavras falam de si. A palavra curiosidade, na sua origem etimológica (do latim curiositas), liga-se a curios e curia e transporta nela a ideia de cuidar e curar. Mas esta ideia inicial e positiva de filantropia activa tornou-se com o tempo uma ideia negativa de misantropia adversa.

Durante toda a Antiguidade clássica, a curiosidade foi agrestemente atacada por muitos autores e defendida por alguns. O curioso passou a ser o bisbilhoteiro que quer conhecer os segredos para prejudicar, aviltar ou propalar. Chegou mesmo a confundir-se com o espião. Essa má fama da curiosidade chegou até nós. Há um adágio francês que diz que a curiosidade é um defeito feio. E um provérbio inglês lembra: «A curiosidade matou o gato.» Ainda hoje se continua a falar da boa e da má curiosidade.

Afinal, a curiosidade faz-se de muitas curiosidades. É princípio, meio e fim: impulso do sujeito, caminho para o objecto e satisfação de si consigo mesma. Há curiosidade intelectual e física, das ideias e das percepções, mental e sensorial (cada sentido tem a sua curiosidade e há uma que os sincretiza), voluntária e involuntária, da contemplação e da acção, dos sentimentos e da imaginação. Há curiosidade do visível e do invisível, do consciente e do inconsciente, do bem e do mal, da vida e da morte, individual e colectiva, profunda e superficial, interior e exterior, discreta e indiscreta, laboriosa e ociosa. Há curiosidade apolínea e dionisíaca, mítica e mística, nómada e sedentária, teórica e prática, microscópica e macroscópica, temporal e espacial, do próximo e do distante, do passado e do futuro, agitada e serena, sistematizada e selvagem, norteada e errante.

Na sua muito pessoal Uma História da Curiosidade, em que usa Dante como guia, assim Dante usou Virgílio como guia na Divina Comédia, Alberto Manguel dá a todos os seus dezassete capítulos uma pergunta por título («O que é a curiosidade?»; «O que queremos saber?»; «O que é a linguagem?», etc.). Lembra Manguel:

A representação visível da curiosidade — o ponto de interrogação que se apõe a uma interrogação escrita na maioria das línguas ocidentais, curvado sobre si mesmo, contra o orgulho dogmático — chegou tarde à nossa História.

Com aquela astuta ironia que brincava com as coisas sérias para as tornar ainda mais sérias, afirmou Eça de Queiroz:

A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva, por um lado, a escutar às portas e por outro a descobrir a América — mas estes dois impulsos, tão diferentes em dignidade e resultados, brotam ambos de um fundo intrinsecamente precioso, a actividade do espírito.

Feitas as contas, avaliada a riqueza e dividida a herança, curiosidade quer dizer: amor à verdade (Hume), desejo de conhecer (Espinosa), pulsão de saber (Feuerbach), pulsão de pesquisa (Freud), santa curiosidade (Einstein), relação com o Outro (Sartre).

No seu livro Die Legitimität der Neuzeit [A legitimação da época moderna], Hans Blumenberg, sábio de vários saberes e de muitas sabedorias, pensa as origens da modernidade e investiga as condições de formação da racionalidade científica que está no seu centro. Trata ainda da impulsão teórica que a marca (João Constâncio, na secção «Passagens» desta edição, fala também disso).

Aliando a densidade erudita com a subtileza interpretativa, para Blumenberg, a longa herança do passado era como uma grande mala cheia de coisas valiosas que se leva para uma viagem de procura e descoberta.

Nessa obra, tornada um clássico dos debates filosóficos, na Parte III é feita uma original história da curiosidade (Neil Kenny, professor da Universidade de Oxford, fala criticamente disso no «Assunto» desta edição) pelos segredos da natureza, mostrando como um vício estigmatizado e condenado pelos teólogos e os moralistas, e até catalogado como heresia, se tornou uma virtude moderna ou mesmo um atributo da dignidade humana.

Em capítulos sucessivos, dedicados à «curiosidade teórica em processo», Blumenberg trata da viragem da filosofia pré-socrática (conhecimento da natureza e do Universo) para a filosofia de Sócrates e Platão (conhecimento humano de si-mesmo) e a revogação disso, de Epicuro e a indiferença dos deuses, da curiosidade nos três sistemas helenísticos (estóicos, epicuristas e cépticos), da confiança cósmica, do neoplatonismo, da concepção agostiniana de curiosidade e do julgamento cristão dela, das heresias, do saber no sistema escolástico, de Leonardo, Copérnico e Galileu, da justificação da curiosidade como preparação do Iluminismo, da pretensão à felicidade e a sua relação com a curiosidade de Voltaire a Kant e da sua integração antropológica com Feuerbach e Freud.

Nesta história, uma grande mudança se dá quando o pecado medieval passa a ser uma virtude moderna. Para os teólogos, da patrística a São Tomás, que nunca esquecem a curiosidade original pelo fruto da Árvore do Conhecimento (ou da Vida) que provocou o pecado original e a expulsão do Paraíso, só tinha valor e valia a curiosidade que leva ao conhecimento de Deus ou ao conhecimento que conduz a Deus. Todo o outro conhecimento e a curiosidade que o gerava eram pecados e obras do diabo. São Jerónimo fala da curiositate non licita e Tertuliano declara: «Não temos mais necessidade de curiosidade depois de Jesus Cristo, nem de procura depois do Evangelho.»

Quando a curiosidade do mundo e da natureza passou a ser uma virtude e uma condição do conhecimento e da ciência, a episteme mudou e a isso chamamos os tempos modernos. Olhar esse momento — e o antes e depois dele — é compreendermos melhor o que temos sido e o que somos.

Dedicar o «Assunto» deste número à curiosidade é avançarmos mais alguns passos na empresa que Electra fez sua — a de ir dando nomes ao nome que o nosso tempo se chama a si próprio. Neste dossier, participam autores com pontos de vista diversos, formando-se um polígono com esses pontos como vértices. Assim, olhamos a curiosidade como um dos fundamentos de uma modernidade que se prolonga e projecta na nossa contemporaneidade.

Sobre a curiosidade, disse Michel Foucault numa entrevista quase no fim da sua vida breve («Le philosophe masqué», Le Monde, 06.04.1980):

A curiosidade é um vício que foi estigmatizado alternadamente pelo Cristianismo, pela filosofia e mesmo por uma certa concepção da ciência. Curiosidade, futilidade. A palavra, contudo, agrada-me: sugere-me toda outra coisa: evoca a «preocupação», o cuidado que tomamos pelo que existe ou pode existir; um sentido aguçado do real, mas que nunca se imobiliza perante ele; uma prontidão a achar estranho e original o que nos rodeia; uma certa obstinação a nos desfazermos das nossas familiaridades e a olhar de diferente maneira as mesmas coisas; um ardor a agarrar o que se passa e o que passa; uma desenvoltura face às hierarquias tradicionais entre o importante e o essencial.

Eu sonho com uma idade nova da curiosidade.

E no segundo tomo da História da Sexualidade dá a entender como seria essa nova curiosidade:

Quanto ao motivo que me impeliu, esse é muito simples. Espero que para alguns seja suficiente por si mesmo. É a curiosidade — em todo o caso a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que é conveniente conhecer, mas a que nos permite desprendermo-nos de nós próprios. De que valeria a obstinação do saber se ela assegurasse apenas a aquisição de conhecimentos e não, de um certo modo, e tanto quanto for possível, o descaminho daquele que conhece? Momentos há na vida em que a questão de saber se é possível pensar de modo diferente daquele que se pensa e perceber de modo diferente daquele que se vê é indispensável para continuar a observar e a reflectir. […] Mas o que é afinal a filosofia actualmente — refiro-me à actividade filosófica — senão o trabalho crítico do pensamento sobre si próprio? E se, em vez de legitimar aquilo que já se sabe, não consiste em procurar saber como e até onde é possível pensar de modo diferente?

Não apenas de modo diferente, mas de muitos modos diferentes e de muitos diferentes modos, pensava Fernando Pessoa. A curiosidade na sua obra é a curiosidade do tudo e a curiosidade do nada que é o chão do tudo. Em Pessoa, há sempre o milagre ontológico da dupla potência de se ser o que não se é e de não se ser o que se é.

E assim, nele, a curiosidade se torna uma contra-curiosidade — e é aí que a curiosidade se realiza, como no acto falhado da psicanálise. Em Pessoa, a curiosidade é curiosidade de si mesma e é um rio que corre da foz para a nascente, do nada para o que o prepara, a ele leva ou nele nasce.

Por isso, Bernardo Soares afirma no Livro do Desassossego:

Curiosos da vida espreitemos a todos os muros, antecansados de saber que não vamos ver nada de novo ou belo.

E, no Fausto, diz Pessoa:

É abismadamente curioso
E transcendentemente negro e fundo
Ver os seres, os entes a mover-se
A rir a (…), a falar, a (…)
Na luz e no calor; e neles todos
Um mistério que torna tudo negro
E faz a vida horror incompreendido.
Uma noite de Tudo que é um Nada
Um abismo de Nada que é um Tudo.

A Fernando Pessoa e à sua obra suspensa sobre o abismo, claridade que sobrevoa a pista do mistério para nela aterrar, vem Richard Zenith dedicando a sua vida estudiosa e abundante de trabalhos. Ele tem sido, de facto, um encantador dessas serpentes de sombra que são os escritos do genial criador dos heterónimos.

Depois de anos e anos de labor múltiplo e multiplicado, que vai desde a decifração de manuscritos à sua fixação, organização, edição e interpretação, Zenith parece saber tudo sobre Pessoa e a sua obra inesgotável.

É com tudo o que sabe que Richard Zenith ocupou longamente os seus últimos anos a escrever uma monumental biografia de Fernando Pessoa, cuja edição em inglês será publicada no Verão deste ano, saindo a edição portuguesa no Outono. Esta biografia é esperada com enorme expectativa por todos aqueles que já conhecem ou, não a conhecendo ainda, estão curiosos de conhecer a obra de Pessoa, seja qual for o lugar do mundo onde se encontrem.

Graças à generosidade de Zenith, foi concedido a Electra a prerrogativa da pré-publicação de um capítulo desta biografia, servindo essa revelação como anúncio de uma obra doravante fundamental para os estudiosos e leitores de Pessoa.

Ao agradecer ao seu autor o privilégio que nos dá, queremos felicitá-lo e desejar que a sua biografia tenha a irradiação e o reconhecimento que merece. Quem ler, na Electra 12, este interessante capítulo fica certamente com grande curiosidade de ler a biografia toda. Santa curiosidade, diria Einstein, que Pessoa, curioso de tudo, leu e citou em escritos.

A entrevista feita por António Guerreiro a Pedro Costa, que nesta edição se publica, fala de cinema e do cinema com uma ágil profundidade que é rara. E assim se vê que, sendo o grande realizador que é, Pedro Costa dá ao que faz um pensamento tão pessoal como a sua obra que hoje tem um amplo reconhecimento internacional. Lembrando Gilles Deleuze: «Aquilo a que chamo Ideias são imagens que dão a pensar.»

Na secção «Figura», também se fala de cinema. Esboçando o rosto sempre móvel de Joaquim Pinto, fala-se de alguém que fez do cinema uma verdade que diz a verdade da vida e a crueza dela.

Por tudo o que propõe aos leitores, este número da nossa revista transporta consigo um convite à mais alta das curiosidades — aquela que nos leva a olhar tudo, mas a saber escolher, de tudo o que olhamos, aquilo que vale mais do que as imagens vãs e as vozes vazias que, por todo o lado, acossam, ocupam e subjugam os nossos dias.

Foi essa curiosidade que nos fez chegar a Marte.