Passagens
«Todo o homem moderno sofre de um excesso de teoria.»*
João Constâncio

João Constâncio, professor no Departamento de Filosofia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, comenta e prolonga num registo muito pessoal uma frase de Henry de Montherlant, mostrando como ela pode hoje ser interpretada à luz da «desrazão» que alastra no nosso tempo.

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Ilustrações de Henri Matisse para Pasiphaé: Chant de Minos (Les Crétois) [Pasífae: Canção de Minos (Os Cretenses)], Henry de Montherlant, Paris: Martin Fabiani, 1944
© Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

Guardo a imagem de um homem alto, muito magro e de pele muito morena. Ensinava-nos Economia no 9.º ano. Declarava-se frequentemente comunista, e achava tudo errado na Economia — ou, pelo menos, assim me lembro dele e da vaga excitação intelectual que me causavam as suas aulas. Havia muitas outras excitações naquela idade. Um dia disse--nos: «Não sabemos se todos os homens são mortais. Isso é só uma teoria, que nunca foi demonstrada.» Por que motivo nos disse isso, não sei. Mas sei que não acreditei nele. Também sei que, sempre que ouço ou leio «todos os homens são mortais», «a morte é certa», ou algo semelhante, me lembro dele e de ter pensado que ele tinha uma «teoria», e que esta era francamente pateta.

Três anos mais tarde, quando estava prestes a entrar na universidade, deu-se um milagre. Tínhamos de fazer uma prova — a «PGA», Prova Geral de Acesso —, mas a criação desta prova gerou, nos media e no Parlamento, uma enorme confusão. Qual foi a confusão, já não sei dizer, mas sei que dela resultou que quem entrou para a universidade naquele ano acabou por ficar de férias desde Junho até Janeiro. Aproveitei o milagre para fazer muitas coisas, entre elas tornar-me noctívago e ler durante a noite. Já em Outubro ou Novembro, não sei dizer ao certo, o meu pai preocupou-se. Interrogou-se se eu não estaria a sofrer de «vácuo existencial». Deu-me, para ler, o livro do Frankl, Man’s Search for Meaning: An Introduction to Logotherapy, fourth edition. Em nossa casa, sempre que havia um problema, lia-se um livro de instruções. Tenho memórias muito vivas de ler livros que ensinavam a nadar ou a jogar ténis ou a tornar-se um ás no snooker. O Dr. Viktor Frankl, eminente discípulo de Freud e Adler, ensinava a lidar com o vácuo existencial. Logo no início do livro, contava que, uma vez, um senhor de idade se dirigiu ao seu consultório e lhe falou da avassaladora depressão que sentia por ter falecido a sua esposa. O Dr. Viktor Frankl perguntou-lhe então o que teria acontecido se ele tivesse falecido e a esposa sobrevivido. «Oh, para ela teria sido terrível; como teria sofrido!», respondeu. «Mas, nesse caso», retorquiu o Dr. Viktor Frankl, «o sofrimento que ela teria sentido foi-lhe poupado, e foi o senhor quem lho poupou, mesmo tendo de pagar o preço de lhe sobreviver e fazer o luto da sua morte». Assim o homem se salvou da depressão, pois o sofrimento deixa de ser insuportável quando adquire um sentido — como, por exemplo, o de ser um sacrifício que se faz por outrem.

[...]

* Henry de Montherlant, assim citado por Claude Lévi-Strauss no discurso de entrada na Academia Francesa no qual, tomando a cadeira n.º 29, fez o elogio do seu predecessor. Paris, 27.06.1974.