Já desde o início da modernidade que celebrar da fama de um homem ou de um deus parece ter-se tornado impossível: testemunham-no os últimos fragmentos hínicos de Hölderlin, onde o encómio ou o louvor se confundem e despedaçam em frases desconexas e paratáticas, como se uma falha íntima e profunda impedisse a plena expansão e celebração da memória. A mesma dificuldade é descrita, em tom desencantado, na opereta moral de Leopardi Parini, ou seja, Da Glória, sobre a fama de um literato, filósofo ou poeta cujas considerações, se substituirmos a palavra «leitores» pela palavra «espectadores», são ainda actuais: na modernidade, a multidão é atraída «mais pela audácia que pelo pudor… mais pelo medíocre que pelo óptimo», mas sobretudo — e isto remete para a prevalência do imaginário sobre o real — «mais pelo aparente que pelo substancial».1 A situação é pior nas grandes cidades, onde começa a dominar, já na época do poeta, aquele movimento vazio e nervoso, aquela inquietude que é um fim em si mesmo, e que será objecto das análises de Simmel. Tal inquietude impede a solidificação da opinião em torno do valor qualitativo de um homem ou de uma obra, isto é, transforma a fama numa questão de moda: Leopardi recorda «o tumulto destes lugares, o espectáculo da magnificência vã»2 e também «a ligeireza das mentes» e a sucessão vazia das crenças. Domina a distracção, como lhe chama, e uma tagarelice fútil. E tudo isso deriva do domínio do imaginário, do facto de deixarmos prevalecer a «nossa imaginação» sobre as «próprias qualidades das coisas agradáveis»3. Por isso, a fama é um fenómeno «semelhante a uma sombra… não se pode senti-la ou retê-la, pois logo se escapa».4
Na sociedade do espectáculo descrita por Debord, a fama é concedida a quem melhor conseguir transformar a vaidade substancial em aparência afirmativa. A glória atribuída às personagens famosas do espectáculo já não se refere tanto à sua actividade específica, mas a um modo de aparecer que as une a todas, transformando-as em vedetas. Ser-se escritor, político, bailarino, bandido ou médico já não tem, pois, grande importância, conquanto se exiba e se abrace a atitude uniforme exigida pelo espectáculo: «A condição da vedeta é a especialização da vivência aparente, o objecto da identificação com a vida aparente sem profundidade, que tem de compensar o esboroamento das especializações produtivas efectivamente vividas.»5 A vivência aparente substitui a vivência efectiva, e a vedeta é um especialista do aparecer. O seu virtuosismo consiste em manter-se constantemente na dimensão do possível, em permanente mutação, dando a ilusão utópica de que tudo é permitido a quem aceitar as regras do show (pouco importa se se trata de heróis, políticos, comediantes, bailarinas, papas ou futebolistas). O seu espaço é o de uma euforia movimentada e vazia, um estado de permanente embriaguez e permanente distracção: «A vedeta do consumo, enquanto representação exterior de diferentes tipos de personalidade, mostra cada tipo como tendo igual acesso à totalidade do consumo e encontrando nela a sua felicidade.»6
Acaso não vimos os cientistas, na situação de emergência criada pela recente pandemia, exibir-se nos talk shows com um narcisismo próprio de políticos espectáculoe actores de segunda categoria? A lei fundamental que determina, na sociedade do espectáculo, a fama das vedetas pode ser enunciada do seguinte modo: quanto mais a vocação intelectual e a actividade profissional perdem valor no plano real, tanto mais a sua encenação espectacular oferece um sucedâneo sedutor e potente. Por outro lado, trata-se de uma consequência da natureza mais profunda desta forma de vida: quanto mais um fenómeno perde em qualidade material, tanto mais a sua imagem-fantasma ganha esplendor e luminosidade; quanto mais artificial, mais deve parecer natural e indiscutível; quanto mais é fruto da necessidade económica, mais parece depender da livre escolha dos indivíduos.
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