Assunto
A «fama» e a sociedade do espectáculo
Mario Pezzella

Formulando a lei que determina a fama das vedetas na sociedade do espectáculo, o filósofo italiano Mario Pezzella fala de uma encenação e do modo afirmativo de aparecer, próprios da vedeta, capazes de produzir um regime de desejo e uma forma sedutora de servidão voluntária, ao mesmo tempo que reactiva arquétipos míticos.

julia wachtel

Julia Wachtel, Stripe, 2014
Cortesia da artista e Super Dakota, Bruxelas

 

Já desde o início da modernidade que celebrar da fama de um homem ou de um deus parece ter-se tornado impossível: testemunham-no os últimos fragmentos hínicos de Hölderlin, onde o encómio ou o louvor se confundem e despedaçam em frases desconexas e paratáticas, como se uma falha íntima e profunda impedisse a plena expansão e celebração da memória. A mesma dificuldade é descrita, em tom desencantado, na opereta moral de Leopardi Parini, ou seja, Da Glória, sobre a fama de um literato, filósofo ou poeta cujas considerações, se substituirmos a palavra «leitores» pela palavra «espectadores», são ainda actuais: na modernidade, a multidão é atraída «mais pela audácia que pelo pudor… mais pelo medíocre que pelo óptimo», mas sobretudo — e isto remete para a prevalência do imaginário sobre o real — «mais pelo aparente que pelo substancial».1 A situação é pior nas grandes cidades, onde começa a dominar, já na época do poeta, aquele movimento vazio e nervoso, aquela inquietude que é um fim em si mesmo, e que será objecto das análises de Simmel. Tal inquietude impede a solidificação da opinião em torno do valor qualitativo de um homem ou de uma obra, isto é, transforma a fama numa questão de moda: Leopardi recorda «o tumulto destes lugares, o espectáculo da magnificência vã»2 e também «a ligeireza das mentes» e a sucessão vazia das crenças. Domina a distracção, como lhe chama, e uma tagarelice fútil. E tudo isso deriva do domínio do imaginário, do facto de deixarmos prevalecer a «nossa imaginação» sobre as «próprias qualidades das coisas agradáveis»3. Por isso, a fama é um fenómeno «semelhante a uma sombra… não se pode senti-la ou retê-la, pois logo se escapa».4

Na sociedade do espectáculo descrita por Debord, a fama é concedida a quem melhor conseguir transformar a vaidade substancial em aparência afirmativa. A glória atribuída às personagens famosas do espectáculo já não se refere tanto à sua actividade específica, mas a um modo de aparecer que as une a todas, transformando-as em vedetas. Ser-se escritor, político, bailarino, bandido ou médico já não tem, pois, grande importância, conquanto se exiba e se abrace a atitude uniforme exigida pelo espectáculo: «A condição da vedeta é a especialização da vivência aparente, o objecto da identificação com a vida aparente sem profundidade, que tem de compensar o esboroamento das especializações produtivas efectivamente vividas.»5 A vivência aparente substitui a vivência efectiva, e a vedeta é um especialista do aparecer. O seu virtuosismo consiste em manter-se constantemente na dimensão do possível, em permanente mutação, dando a ilusão utópica de que tudo é permitido a quem aceitar as regras do show (pouco importa se se trata de heróis, políticos, comediantes, bailarinas, papas ou futebolistas). O seu espaço é o de uma euforia movimentada e vazia, um estado de permanente embriaguez e permanente distracção: «A vedeta do consumo, enquanto representação exterior de diferentes tipos de personalidade, mostra cada tipo como tendo igual acesso à totalidade do consumo e encontrando nela a sua felicidade.»6

Acaso não vimos os cientistas, na situação de emergência criada pela recente pandemia, exibir-se nos talk shows com um narcisismo próprio de políticos espectáculoe actores de segunda categoria? A lei fundamental que determina, na sociedade do espectáculo, a fama das vedetas pode ser enunciada do seguinte modo: quanto mais a vocação intelectual e a actividade profissional perdem valor no plano real, tanto mais a sua encenação espectacular oferece um sucedâneo sedutor e potente. Por outro lado, trata-se de uma consequência da natureza mais profunda desta forma de vida: quanto mais um fenómeno perde em qualidade material, tanto mais a sua imagem-fantasma ganha esplendor e luminosidade; quanto mais artificial, mais deve parecer natural e indiscutível; quanto mais é fruto da necessidade económica, mais parece depender da livre escolha dos indivíduos.

Julia Wachtel

Julia Wachtel, WTF!, 2014
Cortesia da artista e Super Dakota, Bruxelas

 

Julia Wachtel

Julia Wachtel, The Deconstruction of Spectacle [A desconstrução do espectáculo], 2015
Cortesia da artista e Super Dakota, Bruxelas

 

"Na sociedade do espectáculo descrita por Debord, a fama é concedida a quem melhor conseguir transformar a vaidade substancial em aparência afirmativa."

Por outro lado, a vedeta não poderia tornar-se aquilo que é se não suscitasse profundos processos psíquicos de identificação e pseudo-reconhecimento. A sociedade do espectáculo não é uma estrutura puramente repressiva; ela produz um regime de desejo, uma fantasmagoria euforizante e, por fim, uma forma particularmente sedutora de servidão voluntária. A sociedade do espectáculo é uma «ordem simbólica», que articula todas as conformações possíveis da subjectividade.

O sucedâneo espectacular mostra uma imagem invertida do mundo real — e esta deve ser tanto mais intensa, cintilante e assertiva quanto mais radical for o vazio ontológico ou a existência desolada que é preciso compensar. A potência afirmativa de uma vedeta é directamente proporcional à erosão da vida orgânica que tem de substituir: «Não se pode opor abstractamente o espectáculo à actividade social efectiva… O espectáculo que inverte o real é efectivamente produzido. Ao mesmo tempo, a realidade vivida é materialmente invadida pela contemplação do espectáculo e reproduz em si mesma a ordem espectacular, conferindo-lhe uma adesão positiva.»7

Os fantasmas da mercadoria — e as vedetas e as stars são eminentemente mercadorias produzidas pela indústria cultural — escondem o vazio emergente, a crise da presença face à eliminação das relações corpóreas, sexuadas e emotivas, e tornam-na sustentável. Nas palavras de Lacan, a ordem simbólica do capital — uma jaula de aço, na sua estrutura mais profunda — sobrevive produzindo continuamente um domínio desenfreado e inelutável de fascinações imaginárias, um «estádio especular» que se estende à dimensão do inconsciente colectivo: a dimensão em que o indivíduo carente, endividado e desolado do capital projecta ilusoriamente no exterior a própria totalidade inatingível, identificando-se com um Eu ideal encarnado pela vedeta e compensando assim a sua real miséria psíquica.

Desenha-se deste modo uma forma de imaginário que não procura transcender o existente, mas antes derrubá-lo de modo especular: «Onde o mundo real se transforma em simples imagens, as simples imagens tornam-se seres reais, e as motivações eficientes de um comportamento hipnótico.»8 Ainda assim, não seria exacto dizer que elas confirmam aquilo que existe, como as velhas «ideologias»: na verdade, substituem-no, acelerando o seu desaparecimento. O espectáculo não é uma «superestrutura» — na linguagem marxista tradicional — e tão-pouco uma «simulação»9. O espectáculo é ao mesmo tempo um estado de espírito do inconsciente colectivo, um modo de produção e um agente da circulação do capital.

"Quanto mais um fenómeno perde em qualidade material, tanto mais a sua imagem-fantasma ganha esplendor e luminosidade; quanto mais artificial, mais deve parecer natural e indiscutível."

julia wachtel pinocchio

Julia Wachtel, Sem título (Foco), 1985
Cortesia da artista e Super Dakota, Bruxelas

 

Nas suas séries dedicadas a vedetas do espectáculo ou da política (de Marilyn Monroe a Elizabeth Taylor, de Mao Tsé Tung a Jackie Kennedy), Warhol analisou, decompôs e pôs a descoberto a produção artificial e fantasmática das stars. As séries reproduzem «personagens famosas: artistas, coleccionadores, divas do cinema, políticos e delinquentes. Numa sociedade dominada pelos mass media, a fama é um indicador quase natural do sucesso social. Al Capone foi, em vida, uma das personagens mais amadas de Chicago».10 A vedeta oferece-se a si mesma ao desejo enquanto fetiche. O desejo — dentro do domínio do capital — é orientado fetichisticamente para imagens oníricas, que prefiguram um sucesso e uma satisfação totais. A vedeta propõe um modelo de realização do Eu assuntodestinado a permanecer frustrado, mas que atrai um sujeito disposto a acreditar na felicidade utópica prometida pelo capital. Na linguagem de Freud, a alienação capitalista nega o mal-estar da civilização, o negativo que ela produz, a limitação e a servidão do sujeito, ao mesmo tempo que os aumenta até ao infinito: ela produz e mascara estes efeitos, numa contradição prolongada e cada vez mais dilacerante.

A imagem de uma vedeta vale enquanto fantasma que modula o desejo: e, como tal, aparece ficticiamente dotada de uma irrepetibilidade e de uma aura que a pessoa real não possui. No espectáculo, a própria trama da vida, a sua mistura de desejos e medos, é directamente utilizada como forma de valorização da mercadoria. Sem esta constante distracção e destruição do tecido orgânico da vida, o processo espectacular não existiria. Para os espectadores, o seu próprio movimento social assume a forma de um movimento de imagens, que os controla em vez de ser governado por eles. O desejo e o consumo das imagens espectaculares, cuja fama é celebrada, são acompanhados pela negação e pela abstracção próprias de um corpo vivo. O biopoder contemporâneo não é apenas o governo dos seres vivos: ele chega a abarcar a erosão do orgânico provocada pelos fantasmas do espectáculo.

[...]

*Tradução de Bernardo Ferro

1. Giacomo Leopardi, Opere, Milão: Mursia, 1966, p. 328.
2. Ibid., p. 332.
3. Ibid., p. 335.
4. Ibid., p. 346.
5. Guy Debord, La société du spectacle, Gallimard, Paris, 1992, p. 55 (n.º 60). O número indica o parágrafo correspondente.
6. Ibid., p. 56 (n.º 61).
7. Ibid., p. 18 (n.º 8).
8. Ibid., p. 23 (n.º 18).
9. Tal como a entende Baudrillard: happening de máscaras vazias de um sujeito inconsistente.
10. Klaus Honnef, Andy Warhol, Colónia: Taschen, 2015, p. 66.