Primeira Pessoa
Dipesh Chakrabarty: Provincializar a humanidade ou os desafios do Antropoceno
José Neves e Marcos Cardão

O historiador indiano Dipesh Chakrabarty, figura eminente dos estudos pós-coloniais e dos «Subaltern Studies», autor de um livro que teve uma forte repercussão internacional, Provincializing Europe, actualmente professor na Universidade de Chicago, é entrevistado pelos historiadores José Neves e Marcos Cardão.

Passam vinte anos sobre a publicação de Provincializing Europe, um livro que deu grande projecção académica à obra do historiador Dipesh Chakrabarty. Nascido em Calcutá em 1948, Chakrabarty formou-se na Índia e doutorou-se na Austrália, em cujas universidades ensinou, antes de se instalar em Chicago, nos anos 90.

Com a publicação de Provincializing Europe: Postcolonial Thought and Historical Difference, o historiador tornaria célebre a ideia de que os termos por que as ciências sociais descrevem o mundo são inadequados ao conhecimento desse mesmo mundo: ainda que presumam a capacidade de o objectivar, tais ciências e suas descrições da realidade inevitavelmente acusam um ponto de vista subjectivo cujos efeitos tendem a ignorar. Uma das formulações mais célebres de Chakrabarty, que se tornaria uma espécie de slogan da sua obra, menciona precisamente o facto de as ciências sociais serem simultaneamente «indispensáveis e inadequadas».

Para Chakrabarty, o facto de as ciências sociais ignorarem os efeitos do seu próprio ponto de vista subjectivo era também o resultado de um privilégio epistémico que a proveniência ocidental de tais ciências lhes conferia. O poder alcançado pelas principais potências europeias ao longo da época moderna e contemporânea permitiu que o conhecimento produzido pelas instituições de saber se escutasse como a voz da humanidade e da própria história — e não simplesmente enquanto uma de entre outras falas que compõem um mundo plural e diverso. O colonialismo fez o seu caminho a tiros de pólvora e à boleia do tráfico de escravos, mas também de dominação cultural e epistémica. Contra a Europa enquanto imagem do futuro a que o resto da humanidade estaria destinada, Chakrabarty deu-nos a ver o continente enquanto uma de outras províncias desse mesmo mundo.

Mais do que apontar o dedo às visões eurocêntricas do passado elaboradas pelos seus colegas ao longo do trajecto da disciplina, a crítica que Chakrabarty formulou em Provincializing Europe abriu caminho a um exercício de problematização. À luz da teorização de Dipesh Chakrabarty — e de outros estudiosos que gravitam na órbita dos estudos pós-coloniais —, o eurocentrismo, mais do que um pecado que as ciências sociais deverão evitar se quiserem produzir melhor conhecimento, é endémico a essas mesmas ciências sociais. Os próprios conceitos de «sociedade» e «social» — ou de «humanidade» e «humano» — desde logo veiculam formas particulares (e não universais) de identificação, codificação e interpretação do real. Longe de nascerem espontaneamente em qualquer lugar e a qualquer momento, são construções históricas que emergem com um determinado contexto, consubstanciando ideias e mentalidades que não eram de todo características de muitos daqueles que viviam fora da Europa. Em suma, por mais universal que seja a ambição do conhecimento das ciências sociais e humanas, ele é inevitavelmente particular à modernidade ocidental, ao tempo e espaço em que tais ciências se constituíram.

Afim à crítica derridiana da metafísica ocidental, e promovendo um encontro inusitado entre Marx e a filosofia de Heidegger, Provincializing Europe poderá ser antes de mais entendido como o resultado de um percurso astucioso que Chakrabarty foi trilhando. À semelhança de outros participantes pessoado colectivo dos «Subaltern Studies», foi no quadro das suas investigações empíricas em torno da Índia que Chakrabarty se confrontou teoricamente com os limites da disciplina — como se os passados não ocidentais resistissem a ser domesticados pelos códigos e conceitos fundamentais da história, e desta resistência emergisse um problema sem outra solução que não o seu constante aprofundamento.

A investigação em torno da história da classe operária em Bengala levou-o a um conjunto de impasses que procurou enfrentar em Rethinking Working-Class History: Bengal 1890–1940. Tal confronto sugeriu-lhe que a disciplina da história tinha, ela própria, origens específicas, tributárias do moderno pensamento ocidental, sendo que mesmo as correntes mais heterodoxas, como o marxismo, se mostravam limitadas na hora de interpretar tanto passados europeus pré-modernos, como passados não ocidentais.

Passados como os da Índia convocavam deuses, espíritos e elementos naturais que desafiavam as interpretações secularizadas, preconizadas pelo conhecimento ocidental. Pressupondo uma divisão entre, de um lado, aquilo que seria da esfera do «social», do «humano» e do «real», e, do outro, aquilo que seria do âmbito da «natureza», da «religiosidade» e do «mito», tal conhecimento revelava-se, aos olhos de um historiador como Chakrabarty, uma forma situada de saber — uma forma culturalmente específica de conceber, compreender e habitar o mundo, mais do que uma forma correcta de o conhecer e interpretar.

Sem abandonar por completo estes debates, nos últimos tempos a atenção de Dipesh Chakrabarty virou-se para a temática das alterações climáticas e a questão do Antropoceno. A publicação de «The Climate of History: Four Theses», na revista Critical Inquiry em 2009, ao qual se seguiram outros artigos1, deu início a um novo capítulo da sua obra, mote para a entrevista que em seguida aqui se publica.

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Pieter Bruegel, Primavera, 1565
© Fotografia: Scala, Florença / 
Albertina, Viena

 

JOSÉ NEVES E MARCOS CARDÃO  Em 2009 escreveu um artigo que foi bastante debatido: «O clima da história: Quatro teses», publicado na Critical Inquiry. Porque é que você, um historiador, se começou a interessar por este assunto? Terá sido pela sua actividade passada como físico? Ou será por ter vivido na Austrália durante algum tempo, lugar onde as alterações climáticas se sentem de forma dramática?

DIPESH CHAKRABARTY  Uma das disciplinas que estudei durante a licenciatura foi geologia. Era uma das minhas cadeiras opcionais, logo foi só uma breve introdução. Sempre achei a geologia fascinante. Ainda me lembro que quando me mudei para Camberra, para aí fazer o doutoramento, me deparei com a materialização de algumas ideias geológicas. Na sala de aula em Calcutá, os meus professores geólogos falavam de rochas e de como as rochas podem ter dobras e falhas. Mas limitavam-se a desenhar esquemas no quadro para explicar o que era uma dobra ou uma falha. Em Camberra, quando passas de carro por uma certa zona da cidade, indo de norte para sul, há um momento em que dos dois lados as rochas estão expostas, dum lado vês uma dobra e do outro uma falha. E quando percebi que era a isto que os meus professores de Calcutá se referiam, disse para mim mesmo: uau!

Nos primeiros tempos, costumava dizer aos meus amigos na Austrália que gostava de ser geólogo, já que assim não teria tantas saudades da minha terra. Todo o planeta se tornaria um livro que podia ser estudado. Mas acabei por fazer o doutoramento em história moderna da Ásia Meridional. O meu trabalho incidiu sobre Bengala e Calcutá, por isso tudo o que lia me lembrava o meu país. E por causa das saudades quase desejei ter estudado outra coisa que não a Índia, porque quando se tem saudades de casa, mas está-se sempre a ver, ler e reflectir sobre o lugar que se deixou, as saudades duplicam. Era por isso que dizia aos meus amigos, em tom de brincadeira, que gostava de ser um geólogo a tirar o doutoramento, porque então todos os países seriam igualmente interessantes. Qualquer país seria parte da história da Terra. Assim, quando descobri as alterações climáticas e a ciência do sistema terrestre, o meu interesse inicial pela geologia reacendeu.

JN e MC  Como é que os historiadores podem repensar a história em termos adequados à situação presente? A «história profunda» é uma hipótese, por exemplo. Exigiria formação em métodos científicos e criaria novos desafios para a historiografia, nomeadamente através da possibilidade de fazer história sem registos escritos do passado, certo?

DC  Bem, por um lado, não devemos esquecer que já existem historiadores chamados arqueólogos ou pré-historiadores. E mesmo nós, historiadores de passados relativamente recentes, nem sempre nos baseamos exclusivamente em documentos. Se olharmos para os historiadores da Antiguidade Clássica, eles usam tanto textos como vestígios arqueológicos. Mas há muitas sociedades sem cultura escrita, onde só tens a arqueologia e a pré-história ao teu dispor. E para além da arqueologia, há a história evolutiva. As histórias arqueológicas cobrem milhares de anos. Mas depois tens historiadores evolutivos que falam do Homo sapiens ou dos hominídeos. São tudo formas diferentes de fazer história, as quais permitem diferentes tipos de questões. Acho que quanto mais perto estiveres da história escrita, mais importante se torna a experiência humana. Segundo Gadamer, um dos pressupostos da história escrita é a continuidade da experiência humana. Se alguém do passado disse «os camponeses estavam furiosos porque os preços tinham subido», presumes saber o que é a fúria e porque é que a fúria é plausível nesse contexto. Assim, quando te pões a escrever a história, há uma presunção de continuidade da experiência. Mas quando recuas às histórias evolutivas já não podes presumir isso. Estás basicamente a olhar para a história da vida e, por vezes, um desenvolvimento genético é mais importante do que outra coisa qualquer. Logo, que perguntas devem ser feitas? O historiador israelita Yuval Noah Harari dá um exemplo interessante de como as histórias de grande escala podem ajudar a elucidar preocupações actuais. Este autor mostra que os instrumentos de pedra pertencentes aos nossos antepassados — «nossos» no sentido de Homo sapiens, ou género Homo — sugerem que eles eram sobretudo utilizados para partir ossos. Porquê? Porque os hominídeos ocupavam uma posição consolidada a meio da cadeia alimentar, por isso tinham de esperar que animais mais poderosos como leões e hienas se saciassem. Só depois é que partiam os ossos das carcaças limpas, de forma a comer o tutano. O seu argumento é que a ascensão humana à posição de principal predador do planeta não acompanhou a velocidade da evolução. A velocidade da mudança evolutiva é lenta e dura milhões de anos. No espaço de tempo em que os leões se tornaram sublimes caçadores, os veados aprenderam a correr muito depressa, logo, estabeleceu-se um equilíbrio entre predador e presa. Mas os seres humanos devem a sua posição a desenvolvimentos culturais como a linguagem, laços sociais cada vez mais alargados e tecnologia. Tudo isto se deu muito mais depressa do que as mudanças evolutivas. As outras espécies não tiveram tempo de se adaptar. Não tiveram tempo de aprender, daí podermos levar muitas espécies de peixe à extinção por causa da sobrepesca. Este é o tipo de descoberta que a história profunda pode proporcionar. Assim que tomas consciência desta expansão de ponto de vista, percebes que os historiadores profundos também dão conta do passado, mas fazem-no com métodos e questões muito diferentes. Antes de ter desenvolvido interesse pelas alterações climáticas, pensava «sim, estão a fazer história profunda no departamento de Biologia Evolutiva ou de Geologia, mas isso não me interessa». Mas a questão climática une todos estes aspectos, sem resolver as diferenças metodológicas.

"Convertemos o mundo e toda a vida nele em simples recursos da prosperidade humana. Mas, como é óbvio, a vida não se desenvolveu neste planeta só para que os humanos pudessem prosperar."

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Henri Matisse, A dança, 1909
© Fotografia: Scala, Florença / The Museum of Modern Art, Nova Iorque

 

JN e MC Como disse, as alterações climáticas ameaçam as nossas formas de ser e pensar, questionam as distinções entre história natural e humana e, de acordo com o seu trabalho, introduzem uma diferença entre global e planetário. Em que medida é que as alterações climáticas nos convidam a considerar as figuras contraditórias do humano, para assim pensar o humano simultaneamente como força geofísica e agente político? Como habitar estes dois presentes ao mesmo tempo?

DC  Basta pensar na trágica pandemia do coronavírus que estamos a atravessar. Ela une o global e planetário, mas também expõe a diferença entre ambos. A propagação desta doença pelo movimento humano faz parte da história global; a crescente interacção entre humanos e animais — incluindo os selvagens — também é uma questão do capitalismo extractivista e das pressões crescentes do habitat e consumo humanos. Tudo isso é global. Mas aquilo que os vírus fazem e a forma como se reproduzem pertence à história da vida biológica deste planeta. Os micróbios são a forma maioritária de vida, tanto em número como em peso. Os vírus desempenham papéis muito importantes na história da vida deste planeta. Participam até na produção do oxigénio atmosférico. São uma forma de (semi-)vida bastante mais antiga do que os humanos. Se queremos compreender esta crise, devemos pensar na história global e planetária. Ora, não estamos habituados a pensar a história planetária, por isso resistimos e tentamos incorporar tudo no território mais familiar do global.

Creio que chegámos a um período histórico no qual as nossas capacidades fenomenológicas estão a ser desafiadas. Pensar como uma montanha, pensar como se existíssemos há 150 mil anos, não nos é natural. Aqui remeto para Kant: somos animais equipados com ideias particulares de tempo e espaço. E estamos a lidar com um mundo que questiona esses conceitos inatos. É isso que pretendo afirmar quando digo que precisamos de reeducar a nossa imaginação para ver o que este desafio exige de nós. Para ver, por exemplo, que pedimos demasiado do mundo nos últimos setenta anos. Convertemos o mundo e toda a vida nele em simples recursos da prosperidade humana, e assim temos minado, extraído e tirado coisas dele. Mas, como é óbvio, a vida não se desenvolveu neste planeta só para que os humanos pudessem prosperar.

JN e MC  A politização do debate sobre o Antropoceno não nos permite explorar essa imaginação?

DC  Na verdade, ela presume uma soberania humana demasiado grande. A partir do momento em que vemos o planeta, passa a estar também em jogo a nossa condição de criaturas.

[...]

*Tradução de Ana Macedo

1. Os ensaios sobre as alterações climáticas e o Antropoceno serão publicados nos livros The Planet and the Human: The Anthropocene as Present (University of Chicago Press); The Holocene Lost? Provincializing Europe in a Warming World (University Press of New England).